Atualmente, é crescente a preocupação dos consumidores com a qualidade dos alimentos que são inseridos na dieta, visto que a alimentação é um dos fatores que desempenha importante papel na saúde e qualidade de vida. A função intestinal adequada e a saúde também estão intimamente relacionadas, uma vez que o intestino envia informações por meio de vias complexas para o sistema imunológico e para o cérebro.
A continuidade e eficiência dessa comunicação entre o intestino e cérebro são fatores que contribuem para a homeostase, isto é, para a condição de equilíbrio entre as funções biológicas essenciais para a manutenção da saúde. Alterações nas comunicações cérebro/intestino promovem desequilíbrios de parâmetros fisiológicos, e portanto, estão relacionadas ao surgimento de diversas doenças (Margolis et al., 2021).
Em meados do século 20, pesquisadores observaram que o estado emocional do indivíduo influenciava a taxa de digestão, demonstrando que o cérebro afetava o intestino e que, portanto, existia um eixo cérebro-intestino. Mais recentemente, com o avanço das técnicas experimentais de imagens, as interações cérebro-intestino puderam ser visualizadas comprovando que os estímulos intestinais ativam as principais regiões do cérebro envolvidas no controle das emoções.
Além disso, os cientistas verificaram que o microbiota intestinal, isto é, os trilhões de microrganismos presentes no intestino, também participam de maneira fundamental na comunicação intestino-cérebro. Os microrganismos intestinais se comunicam com o sistema nervoso central (SNC) por meio de canais de sinalização neurais, endócrinos e imunológicos. Ao mesmo tempo, o SNC também pode afetar diretamente a microbiota intestinal, assim, surgiu o conceito do eixo microbiota-intestino-cérebro (Margolis et al., 2021; Cryan & Dinan, 2012).
Dessa forma, a escolha de alimentos que contribuem para o bom funcionamento intestinal é essencial. Os produtos lácteos fermentados são reconhecidos como alimentos que promovem o bom funcionamento intestinal em razão das bactérias láticas presentes. Neste artigo, iremos abordar o papel dos leites fermentados para a saúde intestinal.
Segundo a Instrução Normativa n° 46 (MAPA, IN N°46/2007) “entende–se por leites fermentados os produtos adicionados ou não de outras substâncias alimentícias, obtidas por coagulação e diminuição do pH do leite, ou reconstituído, adicionado ou não de outros produtos lácteos, por fermentação láctica mediante ação de cultivos de microrganismos específicos. Estes microrganismos específicos devem ser viáveis, ativos e abundantes no produto final durante seu prazo de validade.” Conforme a legislação os leites fermentados podem ser, iogurte, kefir, kumys, coalhada.
A elaboração de leites fermentados é mediada por bactérias láticas, bifidobactérias e leveduras. Entre os microrganismos participantes da fermentação, possuem vários gêneros: Lactobacillus, Lactococcus, Streptococcus, Leuconostoc e Pediococcus (Melini et al., 2019). A fermentação da lactose presente no leite por estes microrganismos leva a alterações no sabor, aroma e textura dos produtos lácteos, que são bastante apreciadas pelos consumidores.
A fermentação desempenha um importante papel na formação de compostos bioativos e melhora a digestibilidade das proteínas, pois durante a fermentação pode ocorrer proteólise pelas enzimas microbianas. Além disso, os microrganismos podem apresentar atividade probiótica, desde que sejam ingeridos em quantidades adequadas (em média de 107 - 108) e que estejam metabolicamente viáveis no intestino para conseguirem desempenhar suas funções (Frías et al., 2016; Rizzol e Biver, 2018; Melini et al., 2019).
Cabe ressaltar ainda que os leites fermentados, normalmente apresentam menos efeitos indejesáveis para os intolerantes à lactose, já que possuem menor concentração de lactose (que foi fermentada) e as próprias bactérias láticas fornecem a enzima (lactase) para a hidrólise da lactose em glicose e galactose (Ibrahim et al., 2021).
O consumo regular de leites fermentados tem se mostrado uma maneira eficiente de modular a microbiota intestinal. A regulação desta microbiota é muito importante, pois essas bactérias que ajudam a manter a integridade da barreira da mucosa intestinal, inviabilizam a colonização da mucosa por bactérias patogênicas, auxiliam na digestão e favorecem a ativação de defesas imunológicas (Matsuoka et al., 2018, Hevia et al., 2015). É importante lembrar que outros fatores também podem influenciar na composição da microbiota intestinal, genética, como o uso de antibióticos e a dieta (Wen & Duffy, 2017).
O bom funcionamento do intestino é influenciado pela manutenção da microbiota intestinal, pois alteração pode contribuir para o mau funcionamento da comunicação cérebro/intestino, podendo promover algumas disfunções, como os transtornos mentais, há indícios que a depressão está relacionada com a microbiota intestinal (Rieder et al., 2018; Liang et al., 2018).
Além disso, dados emergentes sugerem que alterações na microbiota intestinal podem ser fatores de risco para doenças neurodegenerativas, como esclerose múltipla e distúrbios neuropsiquiátricos, visto que foi encontrada alteração na microbiota intestinal dos pacientes quando comparada com os controles saudáveis (Zheng et al., 2019; Blacher et al., 2019; Rutsch et al., 2020). Ademais, as alterações na função gastrointestinal têm sido associadas a ocorrência na doença de Parkinson, sendo que os sintomas gastrointestinais podem preceder os sintomas neurológicos (Bove e Travagli, 2019; Margolis et al., 2021).
Figura 1. Representação esquemática do eixo intestino-cérebro.
Fonte: autoras.
Diante do que foi discutido neste artigo, fica claro que os leites fermentados, além de serem saborosos e nutricionalmente ricos, também podem ter um grande impacto na sua saúde!
Referências
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