Sem muitos segredos, todos nós sabemos que as enzimas fosfatase e peroxidase são indicadoras estratégicas da eficiência do processo de pasteurização. Porém, vários métodos para a pesquisa enzimática estão disponíveis. Hoje temos a disposição tiras colorimétricas, kits de reagentes e os testes oficiais por exemplo. Mas será que todos eles possuem a mesma confiabilidade? Confira as respostas nesse artigo!
Antes, vamos retomar a teoria de algumas enzimas. A fosfatase alcalina e a peroxidase estão naturalmente presentes no leite. Por isso o leite cru é caracterizado por conter as duas enzimas. Ambas são destruídas durante o aquecimento e esse processo de inativação não é dependente da composição ou da origem do leite, por isso as enzimas são usadas como indicadoras universais da pasteurização.
A mais sensível é a fosfatase, a qual é inativada em temperaturas entre 60ºC e 85,6ºC, temperaturas levemente maiores às necessárias para destruir os patógenos não formadores de esporos mais resistentes do planeta Terra, como a Coxiella burnetii e o Mycobacterium tuberculosis por exemplo. Por isso a pasteurização garante totalmente a inocuidade do leite. Por sua vez, a inativação da peroxidase só começa de 70ºC em diante, sendo completamente inativada em temperaturas próximas dos 80ºC. Portanto, leites corretamente pasteurizados são caracterizados pela ausência de fosfatase e presença de peroxidase.
Para avaliar essas enzimas no leite, o método mais rápido é a tira colorimétrica. Basta imergir as tiras na amostra de leite e após alguns segundos é possível verificar a presença da fosfatase ou da peroxidase através de mudanças na coloração. Mas outros testes também são possíveis, como exemplo os testes oficiais descritos na Instrução Normativa 68 do Ministério da Agricultura.
Para peroxidase, o teste oficial é bem simples e rápido, apenas observando a coloração após sobrepor uma coluna de guaiacol sobre a coluna da amostra de leite em um tubo de ensaio e adição de algumas gotas de água oxigenada. Caso haja peroxidase na amostra de leite, essa enzima vai “quebrar” a água oxigenada e liberar oxigênio, que oxida o guaiacol alterando a coloração para salmão.
Para fosfatase, o teste oficial é mais complicado e se baseia em uma reação colorimétrica proveniente da interação entre um fenol e uma quinona. O fenol é resultante de uma reação enzima-substrato entre a fosfatase e um sal (fenil fosfato dissódico).
Para facilitar a análise e evitar o preparo de reagentes, muitos laticínios e laboratórios utilizam kits comerciais para a detecção de fosfatase alcalina. Esses kits são voltados para análises clínicas de soro ou plasma e baseados no mesmo princípio, mas alguns componentes químicos são diferentes. Por exemplo, nos kits comerciais o substrato é a timolftaleína ao invés do fenil fosfato dissódico. Por isso pode haver diferenças no desempenho.
Foi exatamente isso que nós comparamos: o desempenho dos kits comerciais para a detecção de fosfatase e das tiras colorimétricas para detecção de fosfatase e também peroxidase. Essa pesquisa foi publicada na Revista do Instituto de Laticínio Cândido Tostes.
Para isso, adicionamos diferentes porcentagens de leite cru ao leite pasteurizado em 6 concentrações:
(1) Amostra de leite pasteurizado com 0% de leite cru;
(2) Amostra de leite pasteurizado com 1% de leite cru;
(3) Amostra de leite pasteurizado com 2% de leite cru;
(4) Amostra de leite pasteurizado com 5% de leite cru;
(5) Amostra de leite pasteurizado com 10% de leite cru e
(6) Amostra com 100% de leite cru.
Cada uma dessas concentrações foi submetida ao teste para a pesquisa de fosfatase alcalina pelo kit comercial e pelas tiras colorimétricas. Repetimos esse procedimento 38 vezes e cada análise era repetida três vezes para garantir a confiabilidade dos resultados. Além disso, 80 amostras de leite pasteurizado do comércio foram avaliadas para a presença de peroxidase pelo método oficial e pelas tiras colorimétricas. Tanto para fosfatase quanto para peroxidase, a proporção de resultados positivos e negativos foi comparada entre si.
Os resultados foram extremamente interessantes! As tiras colorimétricas para fosfatase alcalina foram muito mais sensíveis quando comparadas ao kit de reagente, identificando pequenas quantidades de leite cru adicionado ao leite pasteurizado. Para termos uma ideia, todas as tiras já indicaram a presença de fosfatase nos leites pasteurizados adicionados com apenas 1% de leite cru. Em comparação, o kit de reagentes identificou a presença da enzima em apenas 1 tira, ou seja, em apenas 2,63% dos casos.
Surpreendentemente, o desempenho do kit de reagentes para fosfatase não foi tão satisfatório assim. O kit só foi capaz de detectar a presença da fosfatase a partir da adição de 5% de leite cru ao leite pasteurizado.
Bom, mas talvez os pesquisadores não fossem tão bons assim para detectar mudanças de cor. Para minimizar esse tipo de erro, analisamos as alterações de cor por um espectrofotômetro, um aparelho capaz de avaliar minimamente diferenças na intensidade de uma onda luminosa. Além disso, tínhamos mulheres na nossa equipe, seres fantásticos que entre outras coisas são capazes de diferenciar o bege do nude. Mesmo assim, o espectrofotômetro (e as mulheres também) não indicaram alterações na cor nas amostras com 1% e 2% de leite cru avaliadas pelo kit de reagentes.
Portanto, o kit de reagentes pode não conseguir detectar a presença de fosfatase mesmo quando o leite pasteurizado estiver contaminado com quantidades de até 2% de leite cru. Mas qual será o impacto desse resultado?
Considerando-se a quantidade máxima a de micro-organismos permitida no leite cru de 300 mil UFC/mL, a presença de 1 a 2% desse leite no leite pasteurizado pode representar a inclusão de até 6 mil bactérias/mL. Esses valores se tornam ainda mais expressivos quando consideramos que vários patógenos também podem estar presentes, como Staphylococcus aureus, Campylobacter jejuni, Salmonella spp, Yersinia enterocolitica, Listeria monocytogenes e Escherichia coli. Ou seja, isso representa um grande impacto na saúde pública!
Para a peroxidase, tanto o teste oficial quanto as tiras obtiveram o mesmo desempenho.
Portanto, podemos concluir que as tiras colorimétricas para avaliar a presença das enzimas fosfatase e peroxidase possuem ótima sensibilidade e podem ser usadas como alternativas aos métodos oficiais. Porém, o desempenho do kit comercial para fosfatase alcalina desenvolvidos especificamente para análises clínicas de soro e plasma não foi satisfatório, e seu uso não pode ser estendido para as análises de leite cru.
Que tal deixar nos comentários sua própria experiência com esses testes? Ou ainda, quais testes você utiliza aí na sua indústria ou laboratório? Também convido a todos a curtirem a fan page do Mestrado em Ciência e Tecnologia de Leite da UNOPAR. Até a próxima!
Referências bibliográficas
Seixas, F. N., Fagnani, R., Rios, E. A., Pereira, J. R., Tamanini, R., & Beloti, V. (2014). Comparação de métodos para detecção de fosfatase alcalina e peroxidase em leite. Revista do Instituto de Laticínios Cândido Tostes, 69(1), 17-24. DOI 10.14295/2238-6416.v69i1.302.