O Brasil ocupa posição de destaque na produção mundial de proteína animal. Para conquistar tal patamar, pesquisadores, técnicos e produtores buscam solucionar os desafios da pecuária leiteira, concentrando atenções na exploração máxima do potencial genético animal, tanto no aspecto produtivo quanto reprodutivo. Entretanto, atualmente, uma nova frente de pesquisa vem avançando e se destacando nesse cenário, a do bem-estar animal (BEA), associada ou não aos aspectos produtivos.
O avanço nos estudos sobre o BEA vem aguçando o senso crítico da população para o sofrimento dos animais, conjuntamente às exigências constantes do mercado consumidor, como a qualidade dos alimentos e a segurança alimentar, a preocupação com a preservação do meio ambiente e as boas práticas na produção animal.
Entretanto, para que o BEA possa ser discutido de forma precisa, mencionado legalmente e para que faça parte de discussões públicas, faz-se necessário um conceito claro e bem definido deste assunto. E para que seja passível de comparação em situações distintas e avaliado especificamente, faz-se necessário uma avaliação objetiva. Assim, o projeto Welfare Quality® (2009) tem “desenvolvido um sistema para habilitar a avaliação global de bem-estar e a conversão padronizada das medidas de bem-estar dentro de simples informação”.
Esse projeto tem como objetivo associar BEA com a qualidade do produto final. Além disso, os protocolos de avaliação são ferramentas de grande valia para sublinhar pontos que requerem atenção dos produtores, e para informar aos consumidores sobre o “status” de bem-estar dos animais de produção.
Em trabalho realizado pelo Núcleo de Pesquisa em Ambiência da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (NUPEA/ESALQ/USP), três unidades produtoras de leite localizadas no Estado de São Paulo foram avaliadas quanto ao nível de BEA. Cada propriedade pertence a um nível de produtividade distinto, de acordo com o quadro 1.
Fonte: Adaptação de IBGE. Tabulações especiais do Censo Agropecuário 2006. Rio de Janeiro. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2011
Tanto para a inspeção do ambiente quanto para a inspeção dos animais, foi aplicado o protocolo adaptado para as condições de criação de vacas leiteiras em pasto do Welfare Quality® (Garcia, 2013), logo após os animais serem ordenhados pela manhã e voltarem para seus piquetes.
As medidas avaliadas com base nos animais foram: alteração do tegumento, corrimento ocular, corrimento nasal, corrimento vulvar, respiração dificultada, diarreia, escore de condição corporal, escore de sujidade, claudicação, comportamento agonístico, distância de esquiva (figura 1) e avaliação do comportamento qualitativo.
Figura 1. Avaliação do teste de esquiva para vacas leiteiras. O objetivo do avaliador é aproximar-se até tocar o focinho do animal, registrando a distância de fuga (distância entre a mão do observador e o focinho do animal).
Já as medidas com base nos recursos foram: número dos pontos d’água, funcionalidade, fluxo e limpeza.
Por fim, foi aplicado ao gerente ou responsável pela unidade um questionário abordando os seguintes aspectos: número anual médio de animais mantidos na unidade animal, acesso à pastagem (dias/ano e horas/dia), número médio de partos e frequência de partos distócicos, número de vacas leiteiras e novilhas (se mantidas com vacas leiteiras) diagnosticadas com síndrome da vaca deitada, número de vacas leiteiras ou novilhas (se mantidas com as vacas leiteiras) que morreram na propriedade ou foram submetidas à eutanásia nos últimos 12 meses, se os animais foram descornados e se o procedimento foi realizado na própria propriedade e qual o método utilizado, se os animais tiveram a cauda cortada.
As possíveis categorias de BEA são “Excelente”; “Bom”; “Aceitável” e “Inaceitável”, conforme seguem as pontuações na tabela 1.
Tabela 1. Categorias quanto ao nível de bem-estar da propriedade. Adaptado de Welfare Quality® Assessment Protocol for Cattle, 2009 (Garcia, 2013).
Os valores para cada princípio e a respectiva categoria de BEA obtida por cada unidade de produção de leite avaliada são apresentadas no Quadro 2.
Quadro 2. Escores de princípios e categorias de BEA para cada unidade de produção animal avaliada.
A propriedade 1 obteve categoria final de BEA “Aceitável”, pois atingiu pelo menos 10 pontos em todos os princípios de BEA e ao menos 20 pontos em 3 desses princípios. As causas que afetaram negativamente na avaliação final dessa unidade animal foram: número significativo de vacas magras no rebanho, aferidas pela avaliação de Escore Corporal (EC); insuficiência de sombra para os animais no pasto; animais apresentando alterações no tegumento, tais como inchaços e lesões; mochamento (eliminação dos botões córneos) de animais jovens sem a utilização de anestésicos e/ou analgésicos e por fim, a presença de comportamentos inapropriados, segundo o protocolo. Este último ponto apresentou possíveis problemas quanto à interação entre animais, por conta de um número acentuado de cabeçadas e deslocamentos, e a relação humano-animal, verificada pelo teste de esquiva, o qual evidenciou certa dificuldade de aproximação das vacas. Esse último ponto pode nos revelar possíveis problemas de manejo, como emprego de violência ou maus-tratos por parte dos manejadores.
A propriedade 2 obteve categoria final de BEA “Bom” pois recebeu ao menos 20 pontos em todos os princípios e 55 pontos ou mais em pelo menos 2 princípios de BEA. As principais deficiências encontradas nessa propriedade e que de alguma forma prejudicaram na avaliação final foram: número considerável de vacas magras, número reduzido ou ausência de bebedouros no pasto, ocorrência de partos dificultados (distocias) em número considerável nos últimos 12 meses e presença acentuada de carrapatos nos animais.
Por fim, a propriedade 3 obteve categoria final de BEA “Aceitável” pois, assim como a propriedade leiteira 1, atingiu pelo menos 10 pontos em todos os princípios de BEA e ao menos 20 pontos em 3 desses princípios. As causas que afetaram negativamente na avaliação final dessa propriedade foram: elevado número de vacas sujas; ausência de sombreamento natural e/ou artificial adequados; maioria das vacas apresentando alterações de tegumento, tais como lesões e inchaços; um número considerável de vacas com problemas de casco (laminite); elevada porcentagem de vacas com diarreia, valores de CCS no leite acima dos limites permitidos pelo protocolo e ocorrência de partos distócicos acima dos respectivos limiares de alarme; mochamento de animais jovens sem a utilização de anestésicos e/ou analgésicos e por fim, a avaliação para o princípio de comportamento apropriado, o qual também apresentou problemas semelhantes aos identificados na propriedade 1. Tais problemas podem ter sido ocasionados por falhas de manejo e atitudes incorretas dos manejadores ou funcionários que cuidam das vacas. Logo, a relação humano-animal e ao estado emocional dos animais no campo obtiveram avaliações abaixo dos parâmetros estabelecidos pelo protocolo.
De acordo com os resultados encontrados nessas avaliações, pode-se afirmar que a classificação final dessas propriedades variou de aceitável a bom, em relação à qualidade do bem-estar dos animais. Entre essas propriedades não foi verificada relação direta entre o nível de produtividade e o nível de BEA.
Dentre os fatores que mais influenciaram na redução dos níveis de BEA pode-se elencar: vacas magras, presença elevada de alterações de tegumento, ocorrência de partos distócicos acima dos parâmetros do protocolo, deficiência na provisão de sombreamento, valores de CCS no leite acima dos limites permitidos pelo protocolo, procedimentos inadequados de mochamento sem utilização de anestésicos ou analgésicos, a frequência elevada de cabeçadas e deslocamentos, que podem refletir insuficiência de recursos na propriedade tais como pontos de água e alimentação, e a relação humano-animal, a qual foi insatisfatória, de acordo com as determinações do protocolo.
Em especial, o item que associado à relação humano-animal, pode ser visualizado de maneira mais ampla. Normalmente, a grande maioria dos investimentos, sejam eles em BEA, genética ou nutrição, que objetivam incrementar a produção de leite, são quase que exclusivamente voltados aos animais, tornando-os, cada vez mais, máquinas produtoras de leite. Entretanto, um fator fundamental dentro desse processo produtivo que merece total atenção, e que muitas vezes é esquecido ou negligenciado, é o trabalhador, o funcionário ou “peão” que está em contato direto com os animais da propriedade diariamente. Logo, são agentes responsáveis pela produção de leite e estão diretamente ligados ao sucesso da propriedade.
Desta maneira, é interessante que propriedades rurais desenvolvam ações para assegurar, além do BEA, o bem-estar do trabalhador (BET), já que um depende do outro. Neste mesmo sentido, Dessen (2005) observa que o trabalho é de extrema importância para a vida dos indivíduos, contribuindo para sua sobrevivência e adaptação ao mundo. Como uma parcela significativa da vida do indivíduo é passada no ambiente de trabalho, torna-se essencial que este se sinta bem em relação a esse ambiente. Assim, a probabilidade que ele desempenhe sua função com qualidade e promova melhorias na produtividade e no BEA é maior.
Alguns pesquisadores (HEMSWORTH & COLEMAM, 1998; KROHN et al., 2001; BOIVIN et al., 2003; SANT’ANNA & PARANHOS DA COSTA, 2007; HONORATO et al., 2012) vêm observando a importância da relação entre humanos e bovinos para que se tenha sucesso em um programa de BEA. Apesar das dificuldades encontradas no cenário da bovinocultura leiteira, como escassez de ambiente propício para o BET ou pouca difusão de informação técnica àqueles que trabalham diretamente com bovinos, ações que possam gerar mudanças na relação humano-animal, que se conectem ao BEA e à produtividade, podem estar intimamente ligadas ao BET.
Portanto, verificadas as avaliações de BEA realizadas nessa pesquisa, as principais deficiências apresentadas pelas propriedades e a relação existente entre BEA e BET, já sugeridas por alguns pesquisadores, sugerem-se mais trabalhos de forma a esclarecer essas relações e assim, promover melhorias e crescimento, tanto em aspectos produtivos quanto em questões gerencias e de qualidade de vida, dos animais e dos trabalhadores.
Bibliografia:
BOIVIN, X, et al. Stockmanship and farm animal welfare. Animal Welfare, v.12, n.4, p.479-492, 2003.
COLEMAN, G.J. et al. Modifying stockperson attitudes and behaviour towards pigs at a large commercial farm. Applied Animal Behaviour Science, v.66, p.11-20, 2000.
DESSEN, M. C. Bem-estar Pessoal nas Organizações: o Impacto de Configurações de Poder e Características de Personalidade. Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília, Brasília, 2005.
GARCIA, P. G. Sistema de avaliação do bem-estar animal para propriedades leiteiras com sistema de pastejo. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo, Piracicaba, 2013.
HEMSWORTH, P.H.; COLEMAN, G.J. Human-livestock interactions: the stockperson and the productivity and welfare of intensively farmed animals. London: CAB International, 1998. 140p.
HONORATO, L.A.; Hötzel, M.J.; GOMES, C.C.M.; SILVEIRA, I.D.B.S.; MACHADO FILHO, L.C.P. Particularidades relevantes da interação humano-animal para o bem-estar e produtividade de vacas leiteiras. Ciência Rural, Santa Maria, v.42, n.2, p.332-339, 2012.
KROHN, C. C. et al. The effect of early handling on the socialization of young calves to humans. Applied Animal Behaviour Science, v.74, P. 121-133, 2001.
SANT’ANNA, A.C.; PARANHOS DA COSTA, M.J.R. Avaliação do Bem-Estar de Animais de Produção. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE BIOÉTICA E BEM-ESTAR ANIMAL, 2010, Belo Horizonte, MG. Anais...Recife: Conselho Federal de Medicina Veterinária, 2010. p.29-35.