O ponto de partida é que raras vezes no mundo se viu um crescimento no consumo per capita como o Brasil teve nos últimos 10 anos, em que a quantidade por pessoa subiu quase 40 kg (figura 1), o que representa uma enormidade de mercado criado, isso sem contar o crescimento da população nesse período, que agregou mais de 20 milhões de novos consumidores potenciais.
Além do crescimento em volume, tem havido alguma sofisticação do mercado, refletido na taxa de crescimento de dois dígitos no mercado de queijos e de quase isso no de iogurtes.
O setor de alimentos no Brasil foi dos que menos sentiu a crise de 2008 e há uma percepção geral de que é um setor promissor, visto que há aumento de renda nos países emergentes como o Brasil, a ser traduzido em maior consumo de alimentos, bem como de alimentos de valor agregado.
Figura 1. Consumo per capita de lácteos no Brasil, 2000-2009 (não temos os dados oficiais de produção em 2010, mas estimamos que o consumo tenha dado novo salto, para mais de 159 kg/pessoa/ano)
Mesmo com esse cenário positivo para alimentos e para os lácteos, o setor de laticínios tem passado por algumas dificuldades. A mídia trouxe, nos últimos anos, algumas notícias de grandes empresas que iniciaram processos de expansão e que terminaram ou falidas ou sendo adquiridas por outras empresas, não raro com capital governamental para dar a liga necessária para a continuidade das operações. Em empresas com portfólio mais diversificado, as notícias indicam que o segmento de lácteos se mostrou menos atrativo do que outros. Ainda, apesar do mercado favorável em relação a aumento de volume e das prospecções até então feitas, nenhum grande grupo internacional investiu no setor.
Em 2011, a situação não melhorou para a indústria, salvo produtos específicos, como queijos, que estão tendo um ano melhor (UHT também não está ruim agora). Os preços da matéria-prima têm subido mais do que os derivados no atacado, principalmente do leite em pó, às voltas com o problema da falta de exportação, do mercado interno estagnado e das importações (figura 2).
Figura 2. Variação dos preços ao produtor e à indústria, usando janeiro de 2007 como índice 100 (valor real)
Esse cenário para a indústria poderia significar um grande estímulo à produção, visto que, à primeira vista, é o produtor quem mais tem ganho. Porém, que números encontramos ao analisar os ganhos de produção nesse ano? Pelo Cepea, a captação de janeiro a julho, no país, foi 2,2% mais baixa do que no ano passado. Isso mesmo considerando preços 11% mais elevados - como já muito se comentou no MilkPoint - um dos preços mais altos do mundo, em dólar (veremos se isso mudará agora, com a desvalorização do real). Os custos, no entanto, estão 15% mais altos. A situação não é tão boa para o produtor, mas por outro lado não é tão ruim a ponto de gerar uma queda dessa magnitude na captação. Pelo menos, não deveria.
A figura 3 é uma simulação que fazemos a partir dos dados do ICPLeite, da Embrapa Gado de Leite, que dá a variação porcentual do custo a cada mês. No intuito de procurar transformar em Reais, nós adotamos arbitrariamente um valor de custo para julho de 2007, que consideramos de R$ 0,525/Litro. A partir daí, fomos aplicando a variação do ICPLeite e chegamos a R$ 0,786/litro em agosto de 2011. O objetivo aqui não é definir um custo absoluto, mas sim analisar os valores relativos, de uma maneira mais palpável para o produtor. Pela figura 3, os momentos em que a curva azul fica acima da laranja indicam resultado positivo, o oposto ocorrendo quando a linha azul fica abaixo da linha laranja. Percebe-se que, se não tivemos os grandes picos de 2009 e 2010, também não tivemos os vales que normalmente sucedem estes períodos mais rentáveis, que levam ao aumento da produção e redução da demanda e explicam os períodos de queda.
Em resumo, o que quero dizer é que a situação não deveria ser tão ruim a ponto de gerar uma queda na produção, como aparentemente ocorre, sugerindo algum problema mais crônico também na produção (a frustração da safra do Sul certamente tem sua contribuição, mas não só ela, como temos discutido a respeito de Goiás, São Paulo e Minas Gerais).
Figura 3. Simulação de rentabilidade do leite em Minas Gerais, utilizando como base os dados do ICPLeite da Embrapa Gado de Leite
Eis, então o mistério: o mercado é vigoroso, mas as empresas não navegam em um mar de rosas, mesmo com o governo aportando recursos significativos para viabilizar algumas delas (aliás, há quem diga que esse investimento virou "preço de leite", com as empresas buscando matéria-prima para garantir escala, não resolvendo a situação básica de rentabilidade); a produção, mesmo em um ambiente de escassez de leite, não mostra a força que tinha antes.
São as importações de leite, dirão alguns. Sem dúvida, este é o tema mais discutido no setor, junto com a questão tributária entre os estados. É evidente que as importações têm uma parcela da culpa, ao trazer para dentro do país entre 3 e 4% do nosso consumo, o que chega a representar 50% do crescimento do mercado em um determinado ano.
Mas daí a considerarmos que todos os problemas do setor decorrem do leite importado, ou que esse cenário de queda na oferta e má rentabilidade das indústrias e produtores é fruto exclusivo desse processo, é simplificar por demais a situação. E, além disso, as importações podem ser vistas em parte como conseqüência de uma situação, e não apenas a sua causa.
Que tal irmos um pouco adiante? É hora de nos desbruçarmos sobre a realidade do setor, analisarmos a sua competitividade de maneira mais ampla e traçarmos uma agenda de mais longo prazo, ao invés de apenas combater esse ou aquele vilão do momento, como tem sido nossa característica. Como tornar a cadeia do leite estruturalmente mais rentável? Essa é a pergunta que deveria nortear as lideranças setoriais.