O Filme é velho. Você já o viu antes. Várias vezes. E o verá novamente nos próximos anos. O enredo: pátio das montadoras abarrotado, lojas das revendedoras vazias, ameaça de demissões, início de comoção nacional. Num crescendo, a notinha das páginas de economia se transforma em reportagem e, de repente, é a manchete do dia. Em todos os jornais, rádios e TVs só se fala numa coisa: haverá demissões. Todos desolados. Eis que surge o final feliz: as alíquotas do IPI sobre os carros são reduzidas. Alegria geral. Porquê isso acontece?
O símbolo da industrialização brasileira é o carro. Começou com JK. Na ditadura virou ícone da classe média. Collor traduziu sua decisão de abrir a economia, chamando-o de carroça. Itamar pediu o retorno do fusca como símbolo da volta dos bons tempos. No primeiro governo de FHC os carrões importados representaram modernidade. No segundo, foram exemplo de confiança do capital externo, com a vinda de novas montadoras.
O argumento para apoiar o setor automobilístico é a sua importância na geração de emprego e renda, e o seu forte poder de encadeamento. Explicação: quando aumenta a venda de veículos, ganham os trabalhadores e as montadoras. Imediatamente, para fazer frente ao aumento de demanda, as montadoras aumentam as encomendas junto a seus fornecedores. Consequentemente, ganham essas empresas e os trabalhadores a elas vinculados. Como as empresas fornecedoras das montadoras necessitam de produtos e serviços de outras empresas, estas também ganham, juntamente com os seus trabalhadores. No limite, como uma pedra que cai num lago, ondas de crescimento ocorrem até que atinja toda a economia. Mesmo setores não vinculados ao carro se beneficiam, pelo crescimento da renda e do emprego em toda a sociedade.
Isso é verdade? Sim. Mas não somente para carro. Vale para todos os setores, em graus diferentes. Um economista chamado Leontief resolveu estudar esta questão. Ele assumiu que os recursos são limitados numa sociedade. Então, quando se define pela produção de um bem, outros possíveis bens deixarão de ser produzidos. É como a poesia de Cecília Meireles: ou isso ou aquilo. Ele criou a Matriz insumo-produto. Exemplificando: se cresce a produção de carro, algo deixará de ser produzido. Geladeiras, por exemplo. Ganhou Prêmio Nobel por isso.
A partir de Leontief, os governos têm elaborado continuamente suas matrizes de insumo-produto. O sentido prático: é possível um governo prever que impacto irá gerar na economia, em termos de emprego, renda e tributos, se um setor for estimulado a aumentar suas vendas. Quando o governo americano decidiu proteger o aço no ano passado, a gritaria foi geral naquele país. O argumento que deu base às manifestações contrárias foi a matriz insumo-produto. A explicação: foi possível provar que o governo estava estimulando um setor que não daria retorno em termos de emprego, num momento em que a economia americana estava patinando. Outros setores deveriam merecer mais atenção.
O Brasil também tem sua matriz insumo-produto. Quem a elabora é o IBGE. Ela retrata toda a economia brasileira, em 42 setores. Um dos maiores especialistas do mundo no uso desse instrumental é brasileiro. É professor da USP e da Universidade de Illinois, nos EUA. Juntamente com o Prof. Guilhoto fiz uma análise de impacto na geração de emprego para esses 42 setores da economia brasileira. Queria medir a importância do setor de leite e derivados em relação aos demais setores.
Veja a tabela 1. Ali é apresentada a geração de emprego, quando cada setor vende R$ 1 milhão. Consideremos o setor Serviços Privados Não Mercantis como exemplo, que corresponde à contratação de empregadas domésticas, dentre outros. Se houver um crescimento na demanda deste setor de R$ 1 milhão serão gerados 592 empregos permanentes, por um período de um ano neste setor. Ocorre que este setor aumentará a demanda de produtos e serviços ofertados por outros setores e, com isso, irá gerar mais 5 empregos permanentes. Com o aumento da massa salarial gerada por estes 597 empregos (592+5), haverá um crescimento na economia, que irá gerar mais 144 empregos em setores que não se relacionam diretamente com este setor. No final serão gerados 741 empregos permanentes na economia brasileira...
Comparemos agora o setor de laticínios com as montadoras de automóveis. A cada R$ 1 milhão em venda de leite e derivados, 7 empregos são gerados nos laticínios. Mas nos setores que lhe são fornecedores ou deles dependem são gerados 109 empregos. No restante da economia mais 81. Ao final, são 197 empregos gerados. E nas montadoras? Com um montante de vendas de R$ 1 milhão somente 102 empregos são gerados. Os laticínios ficam em 12o lugar, enquanto as montadoras em 38o.
Mas poderiam argumentar que as montadoras geram renda. Também simulamos esta condição, embora não seja mostrada aqui. Pois bem! Os laticínios ficam em 28a posição, enquanto as montadoras em 39a. E quanto ao tal efeito encadeador, ou seja, a capacidade de um setor puxar uns setores e empurrar outros quando cresce? Bem, o que encontramos é uma similaridade entre os laticínios e as montadoras: ambos geram mais efeito em setores que lhe são fornecedores quando crescem e muito pouco em setores que lhe compram produtos. Mas o leite ganha! Quando aumentam as vendas, o efeito para trás nos laticínios o coloca em 5a posição, contra 17a para as montadoras. Já o efeito para frente coloca os laticínios em 33o, contra a posição 40 obtida pelas montadoras.
As montadoras receberam, somente este ano, perto de R$ 800 milhões de empréstimos do BNDES, a taxas facilitadas. Mais que os setores campeões na geração de emprego e renda apresentados na tabela. E não geraram nenhum emprego novo. Além disso, a renda gerada pelas montadoras está longe de contribuir para a redução dos desequilíbrios regionais. Os setores campeões, como o leite, sim, pois estão espalhados pelo Brasil.
Com a redução do IPI, o governo perderá R$ 380 milhões em arrecadação. Isso eqüivale a 20% dos recursos destinados ao Fome Zero. Ademais, não há garantias que a redução do IPI seja totalmente repassado para o consumidor. A teoria econômica ensina que, no oligopólio, parte dos ganhos com a redução é retida pelas empresas.
Porquê governos sempre reduzem alíquotas em tempos de crise nas montadoras? Porquê este tratamento não ocorre com o leite quando está em crise, como em 2001?
Há um somatório de forças. As montadoras são grandes clientes da mídia. Ademais, estão em São Paulo, onde tudo repercute mais. Uma foto de um trabalhador desconsolado na primeira página da Folha de São Paulo, ou a imagem aérea de estoques de veículos na TV lhe atinge na plenitude. Faz você e eu comovidos. A cena final do velho filme: a pressão sobre o governo. Como resistir?
Quadro 01. Emprego Gerado por Setores. Choque de R$ 1 milhão. Brasil. 1996