Boa intenção não garante acerto. Zelo excessivo, também não. Pode-se desproteger, com a intenção de proteger. Pode-se deseducar, com o objetivo de educar. Propósitos nobres podem resultar em ações nefastas, destruidoras...
Não. Este não é um artigo de auto-ajuda, para pais em conflito e problemas na educação dos filhos. Mas as afirmações acima são inevitáveis e surgem depois de se conhecer o Projeto de Lei n. 6915/2002, que tramita no Congresso Nacional. Esta proposição, de princípios salutares e elogiáveis, visa regulamentar a comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância. Em essência, objetiva inibir o desestímulo à amamentação infantil. Enfim, proteger o bebê contra interesses comerciais. Dito assim, propósito mais nobre pode haver? Claro que não! Mas...
O Projeto de Lei estabelece que leites desnatados e semidesnatados tenham, na região frontal da embalagem, ou seja, naquela parte que fica visível na prateleira de supermercado, um destaque com os seguintes dizeres: O Ministério da Saúde adverte: Este produto não deve ser usado para alimentar crianças, a não ser por indicação expressa de médico ou nutricionista. O aleitamento materno evita infecções e alergias e é recomendado até os 2 (dois) anos de idade ou mais. O Projeto de Lei define criança como menores de 12 anos. Para leite integral, mesmo que enriquecido por vitaminas e ferro, o texto somente é alterado no que diz respeito à faixa etária, ou seja, quando afirma que "este produto não deve ser usado para alimentar crianças menores de 1 (um) ano de idade..." O restante continua o mesmo texto.
A Teoria Econômica define motivos para a regulamentação do Estado sobre a atividade econômica. Fiquemos no que parece ser o fato motivador deste Projeto de Lei. Quando é claro para o Estado que há assimetria de informação entre os agentes econômicos, ou seja, quando um agente tem mais e melhor informação que outros, o Estado intervém, visando equilibrar a relação, forçando o lado que detém vantagens tornar públicas informações privilegiadas. Um exemplo: a necessidade de divulgação de balanço para empresas de capital aberto visa proteger os acionistas minoritários. Outro exemplo: remédios sem tarja, com tarja vermelha ou com tarja preta visam informar o consumidor da gradação de risco a que está submetido. Um exemplo do mundo lácteo: os selos de inspeção e certificação, como o SIF.
Quando fui secretário municipal em Juiz de Fora-MG, uma das responsabilidades do cargo era a de gerenciar a merenda escolar das redes municipal e estadual. Um dos produtos que introduzimos no cardápio foi o leite fluido. Comprávamos 1,4 milhões de litros/ano, com o propósito de estimular a geração de emprego e renda regional, além, é obvio, de distribuir proteína e caloria saudáveis, a baixo custo. Um dos fatos que me surpreendeu profundamente foi a reação contrária das diretoras das escolas quanto ao uso do leite. As justificativas eram várias e frágeis. Mas o motivo era um só. É que as escolas viviam na penúria, com problemas para cobrir gastos triviais, e encontraram na venda de refrigerantes uma fonte segura de receita. E tinham investido em freezers. Ora! Como, de uma hora para outra, suprimir uma receita necessária para a o dia-a-dia, e ainda com frustração do investimento feito em ativo fixo?
Dez anos se passaram. Não sei se a realidade mudou. Será que a venda indiscriminada de refrigerantes e salgadinhos nas escolas públicas e privadas, para alunos de baixa e alta rendas ocorria somente em Juiz de Fora? O fato é que nunca tomei conhecimento de ações da secretaria municipal de saúde visando proteger as crianças, desestimulando-as de tomar refrigerante. Nem muito menos tive conhecimento de uma declaração sequer de um vereador posicionando-se contrário a essa prática. Transpondo para o plano federal, as autoridades de saúde e do legislativo, têm se dedicado a proteger as criancinhas contra os fast foods e refrigerantes, com a mesma tenacidade que investem contra o leite?
Embora já explorado em detalhes e com abordagem científica nesta coluna quinzenal, sempre é bom lembrar que leite é uma das poucas atividades da economia brasileira que reúne três características caras: a) presença em todo o país; b) geradora de emprego em vários segmentos dos setores secundário e terciário, ou seja, forte encadeamento na economia; c) emprega mão de obra com pouca educação formal e que, quando abandona a atividade, engrossa as estatísticas de desemprego estrutural, ou seja, aquela parcela da população que, mesmo que a economia venha a crescer a uma improvável taxa chinesa de 15% ao ano, ainda assim continuará desempregada.
O apoio ao Projeto de Lei citado, não garante acerto, embora eivado de boa intenção e muito zelo. Desprotege, querendo proteger. Deseduca, com o objetivo de educar. Tem propósito nobre, mas redunda em ação nefasta sobre um setor que recebe histórica interferência do Estado por meio políticas públicas, que o penaliza continuamente. Visando estimular a amamentação infantil, o Poder Público brasileiro (Legislativo e Executivo) generaliza e extrapola a sua intenção na ação e está prestes a cercear indevidamente o espaço de centenas de cooperativas e pequenos e médios laticínios que, por não produzirem derivados lácteos de valor agregado, têm no leite fluido sua única fonte de sobrevivência econômica. É punir ainda mais um setor que, antecipando-se ao Estado, prepara-se para implantar procedimentos de qualidade, por meio da Instrução Normativa 51 que é, essencialmente, um ato de inclusão, pois preserva a competitividade do produto nacional no mercado internacional. Ao preservar a competitividade, preserva emprego e renda. Por isso é ação de inclusão social!
Se vai cercear o consumo, o melhor seria que a embalagem de leite viesse com a seguinte tarja: não beba leite, criança. Com texto menor, sobraria mais espaço para que as empresas exercitassem um dos pressupostos de mercado, ou seja, a colocação de sua marca em destaque, na própria embalagem do produto que comercializa.