Nos últimos dias participei de dois importantes eventos: reunião da câmara setorial do leite de Minas Gerais e reunião com a diretoria da Embrapa-Brasil. Em ambas, um assunto ocupou grande espaço: assistência técnica. Fico com a impressão que realmente estamos remodelando nossas cabeças, abandonando o Consenso de Washington, que pressupõe que o mercado tudo pode e tudo resolve. Estamos a caminho do Consenso de Buenos Aires. Refiro-me não necessariamente ao teor do documento que os presidentes Lula e Kirschner assinaram, que diz respeito a pagamento de dívidas. Mas à idéia que o mercado é relevante, embora tenha suas graves limitações. Pensar assim é ser moderno. É pensar como americanos, europeus e japoneses, que assim estruturaram suas sociedades. Sabem que o homem, em sua trajetória evolutiva, criou duas mega-instituições, ambas necessárias e complementares: o mercado e o Estado.
Enquanto a cadeia do leite se estruturava na década passada, a ênfase foi tamanha quanto à necessidade dos agentes serem competitivos, que os palestrantes esqueceram de focar o Estado. É aquele velho modelo dicotômico e simplório, no qual desde pequeno nos doutrinaram: feio-bonito, céu-inferno, forte-fraco, rico-pobre, mercado-Estado. Como até 1991 a atividade leiteira vivia tutelada pelo Estado, o novo cenário deveria ser, então, o anti-Estado, ou seja, o mercado.
Nos anos 60 e 70 o Brasil estruturou um ótimo serviço de Assistência Técnica oficial. Com capilaridade e com técnicos motivados. Nos anos oitenta, esta rede foi solapada. A abertura política universalizou o atendimento em saúde e educação e assegurou direitos antes inexistentes. Logo, aumentou a demanda por recursos do Estado. Paralelamente, a economia começou a patinar, comprimindo a arrecadação de tributos. Além disso, a conta do crescimento econômico ocorrido nas duas décadas anteriores foi apresentada, ou seja, dívidas externa e interna. Resultado: cobertor curto, em termos de finanças públicas.
Minas Gerais, berço da Assistência Técnica oficial, foi também onde primeiro começou sua desarticulação. Baixos salários e não reposição de pessoal somente não a dizimou, porque as prefeituras assumiram parte do custo deste serviço. Já os laticínios que tinham seu próprio sistema, ou demitiram os técnicos, ou os reposicionaram para serem monitores/informantes de mercado, frente a uma competição acirrada na captação. Especificamente, as cooperativas, com problemas de caixa, não tiveram dúvida: suprimiram este vital serviço.
A partir deste vazio, a Prefeitura de Juiz de Fora implementou o Proleite, 1995. Na época, eu era o Secretário de Agropecuária e Abastecimento do município. O Proleite foi considerado um dos vinte melhores programas de desenvolvimento econômico realizado por governos municipais, estaduais e Organizações Não Governamentais, em 1996, em concurso de Gestão Pública e Cidadania, promovido pelas Fundações Ford e Getúlio Vargas e considerado por estas instituições passível de ser reproduzido em outras regiões do país.
O Proleite objetiva o desenvolvimento da pecuária leiteira regional, considerando ações que combinem assistência técnica, fomento agropecuário e organização de produtores. Os produtores formaram dez grupos de doze participantes, tendo-se como critério a proximidade entre as suas propriedades. Para cada grupo ficou disponível um técnico agrícola, que faz uma visita quinzenal, de no mínimo três horas, a cada um dos produtores. Ao término da visita, o técnico preenche um formulário, descrevendo como esta se deu, e avalia se o recomendado na visita anterior foi acatado e em que proporção. Estabelece também as recomendações a serem implementadas até a próxima quinzena. Estas recomendações naturalmente são diferentes para cada propriedade e dependem da estrutura ali existente e das condições potenciais de resposta de cada produtor. Mensalmente, o produtor recebe a visita de um engenheiro agrônomo, para atividades de reforço e supervisão ao trabalho desenvolvido pelo técnico agrícola. Mesmo procedimento se dá com o médico veterinário, a cada dois meses e, em nenhuma hipótese este se dedica a atividades curativas.
Cada grupo de 12 produtores existente tem o compromisso de se reunir mensalmente, em data acertada entre seus participantes. Em cada mês, um produtor recebe a visita dos outros onze, portanto. Nesta visita, com a presença do técnico agrícola e do engenheiro agrônomo responsáveis pela assistência técnica ao grupo, o produtor anfitrião apresenta aos demais o seu sistema de produção, percorrendo o estábulo, a capineira e outros setores da propriedade. Após cerca de duas horas de visita à propriedade, todos se reúnem em um local apropriado e os técnicos apresentam os pontos positivos e negativos daquele sistema de produção. Esse é um momento de amplo debate e troca de informações técnicas. As conversas amistosas, ao final, levam a um ambiente de confiança crescente entre os participantes, possibilitando espaços para discussões de problemas comuns, notadamente relativos à comercialização.
Cada técnico agrícola se responsabiliza em prestar assistência técnica a, no máximo, dois grupos. Cada engenheiro agrônomo e médico veterinário se responsabilizam por, no máximo, quatro e oito grupos, respectivamente. Os técnicos vinculados ao Proleite foram selecionados previamente em número até duas vezes superior àqueles que iriam participar no início do programa, e passaram por um treinamento de 30 dias, na Embrapa-Gado de Leite. Ao término desta etapa, foram selecionados os técnicos que iriam participar do programa, tendo como variável de decisão o desempenho apresentado nas questões teóricas e práticas do treinamento. Os demais formaram grupo possível de ser aproveitado, caso ocorressem problemas com os primeiros selecionados, que os impedissem de dar continuidade ao trabalho.
Os técnicos atuam na concepção de prestadores de serviços. Isto significa que não se estabeleceu nenhum vínculo empregatício. Também não há disponibilização de meio de transporte ou concessão de diárias para a realização das visitas. Isto porquê o contrato de prestação de serviços considera pagamento por visita realizada, em dia e hora acertados com o produtor, podendo ser inclusive aos sábados e domingos, se ambos estão de acordo. Não há também estabilidade para o técnico como prestador de serviços. Caso 60% dos produtores atendidos por um técnico demonstre insatisfação com o seu desempenho, este é desligado do Programa. Vale registrar, que também o produtor pode ser desligado, se a avaliação do grupo for favorável ao técnico e não for perceptível melhoria de desempenho na propriedade do participante.
Como forma de valorização e comprometimento do produtor quanto à qualidade do trabalho desenvolvido pelos técnicos, há um pagamento por visita realizada. Além de reduzir o custo total do Programa, esta estratégia assegura o comportamento fiscalizador por parte do produtor-beneficiário, que externaliza o seu descontentamento, quando não se considera satisfatoriamente atendido. Esta mesma estratégia é adotada em relação às atividades de fomento desenvolvidas, como a construção de silos e montagem de áreas para pastagens cultivadas, por exemplo.
O papel desempenhado pela Embrapa Gado de Leite é o de atuar na consultoria permanente, quanto a dúvidas surgidas e não solucionadas por estes, quando em suas visitas a propriedades.
Um dos pontos estratégicos do Programa é dispor de uma fundação privada no gerenciamento de recursos e ações. Sem este mecanismo, tornar-se-ia improvável implantar a lógica de remuneração diferenciada entre os técnicos, com base no número de visitas realizadas. Por outro lado, o Programa não está sujeito a um conjunto de legislações existentes que, na prática, inviabiliza a sua condução por entidades públicas.
O desembolso necessário para a operacionalização do Programa é de R$ 130,00 por propriedade, a preços de abriu de 2001, cabendo a cada produtor arcar com R$ 25,00. O restante é assumido pela Prefeitura.
Os resultados obtidos em seis anos de condução do Programa são altamente satisfatórios, conforme tabela 01. Todos os indicadores apresentaram melhorias substanciais. Além disso, o nível de organização dos produtores é um dos ganhos relevantes do Programa. Mesmo com a mudança de condução política na Prefeitura em 1996, não houve solução de continuidade, pois todos os candidatos comprometeram-se previamente com sua manutenção. Ainda na gestão 1993-96, como suporte ao Programa, foi criado um Seviço Inspeção Municipal de Produtos de Origem Animal, reconhecido pelo Sebrae-MG, como importante mecanismo de estímulo à inserção da produção de derivados de queijo no mercado formal, com garantia de qualidade. Por outro lado, no presente momento, o nível de organização dos produtores já permitiu a estruturação de coleta a granel em tanques comunitários. Foram criadas onze associações de produtores, que negociam o leite protegidos por contratos formais com laticínios.
Como o Proleite, outras interessantes experiências estão disponíveis: Educampo e Mais Leite são alguns dos exemplos. Palestras e cursos são fundamentais e dão resultados. Mas têm o seu limite de retorno. Entendo que existem tecnologias que exigem o acompanhamento de um técnico especializado para darem certo. Pastejo rotacionado, por exemplo. Por outro lado, despesas com Assitência Técnica não é gasto. É investimento. No levantamento de casos de cooperativas de sucesso no mundo que procedi para OCB/CBCL, constatei que todas têm nesse serviço um importante mecanismo de fidelização do produtor. Será que estamos no limiar da revalorização da Assitência Técnica, reestruturada em novas bases?