O título deste artigo não é uma simples metáfora, ironizando a atual crise do setor lácteo nacional. Na verdade, retrata fielmente uma triste realidade. As estatísticas apontam que existem no Brasil 9,3 milhões de famílias e 44 milhões de pessoas com nível de pobreza extrema e que representam o universo da população que recebe menos de US$ 1,00/dia, referência adotada pelo Banco Mundial para categorizar os miseráveis e que tecnicamente chamamos de "pessoas abaixo da linha de pobreza". O Banco Mundial utiliza essa referência originalmente para analisar a situação dos países pobres da África.
Essa população miserável corresponde a 28% da população do país e representa, fazendo-se uma análise demográfica, 19% da população das regiões metropolitanas, 25% da população de áreas urbanas não-metropolitanas e 46% da população rural, ou respectivamente em termos numéricos: 9 milhões, 20 milhões e 15 milhões em cada uma destas áreas de residência. Em termos regionais, a porcentagem de miseráveis se distribui da seguinte forma, 50% no Nordeste, 26% no Sudeste, 10% na Região Sul, 9% na Região Norte e 5% na Região Centro-Oeste. A estimativa de renda média dessa população pobre é de R$ 49,00/mês. Mas um dado preocupante é que uma das localidades onde a pobreza mais aumenta é justamente nos grandes conglomerados metropolitanos da Região Sudeste. Mas o que isso tudo tem a ver com o leite??
Para responder a essa questão, vamos ao cerne básico da crise pela qual passa o setor lácteo nacional. As evidências apontam que, independentemente do problema de cartelização das indústrias de laticínios, efetivamente há um problema de mercado, ou seja, excesso de oferta e demanda estagnada. É interessante notar que algumas alternativas para a crise sugeridas por "insiders"e lideranças do setor são por exemplo:
- reduzir a produção (enxugar a oferta) via retirada do fornecimento de concentrado, descarte de vacas, etc
- exportação de leite (aumentar a demanda)
É interessante notar que tais alternativas prevalecem justamente num país com alta demanda interna reprimida por alimentos de uma forma geral e por leite de uma forma específica. Os estudiosos da questão da fome no Brasil apontam que há uma correlação direta entre o nível de renda do cidadão e a carência alimentar, e todos os estudos apontam que a horda de 44 milhões de miseráveis brasileiros se alimenta muito mal, e mais do que isso, há uma epidemia crônica de fome, que as vezes se manifesta de forma quantitativa (fome orgânica) e as vezes de forma qualitativa (deficiências protéicas, de minerais - cálcio e ferro, por exemplo - e vitaminas). As estatísticas também apontam que os níveis de carência alimentar e indigência vêm se mantendo estáveis nos últimos anos, ou seja, o país não consegue reintegrar os 28% da população miserável ao que alguns chamam de mercado e que eu particularmente prefiro chamar de dignidade mínima do cidadão, ou seja, o direito de consumir uma dieta minimamente aceitável tanto sob o aspecto quantitativo quanto qualitativo.
E é nesse cenário que insiro a questão da crise do leite. Basicamente se dispuséssemos de uma estratégia para inserir uma grande parcela da população pobre brasileira no mercado de alimentos, certamente isso representaria uma reativação da demanda, fato altamente salutar para o setor agroindustrial. O que não posso conceber como solução para esse tipo de crise é que se pense em reduzir a produção de alimentos justamente num país que tem tanta gente desnutrida. Ë muito simplista para o futuro do país. Precisamos é alimentar mais pessoas!
Por outro lado, lógico que também não posso aceitar que se remunere em apenas R$ 0,10/litro de leite o produtor ou US$ 0,04, como escutei recentemente de alguns produtores. Isso é um absurdo, pois este seria o preço do leite mais baixo do planeta. E além do mais, nunca vejo o reflexo desse preço aviltado do leite chegando barato nos supermercados. Ou seja, tem algum safado tirando proveito da situação, mata o produtor de um lado e espolia o consumidor pobre do outro.
Enfim, tenho plena consciência de que este não é um problema de fácil solução, isto é, integrar uma massa de descamisados - apenas parafraseando um ex-presidente que não deixou saudade.
O problema da miséria e da fome, ou da baixa demanda de alimentos como preferem alguns, é um resultado direto do desemprego, dos baixos salários e da conseqüente agudização da desigualdade social. Além disso, no Brasil vem ocorrendo um fato muito perverso e bem documentado nos últimos anos, que é o aumento expressivo das despesas não alimentares (moradia, transporte, medicamentos, educação, tarifas públicas, combustíveis, etc..) das famílias mais pobres, sendo que muitas vezes esses aumentos não se refletem nas taxas de inflação. A conseqüência mais lógica desse fenômeno é a redução dos gastos familiares com a alimentação e nesse particular os lácteos são muitos sensíveis, ou seja, aquele iogurtinho das crianças é um dos primeiros itens a serem eliminados das compras mensais.
A relação de renda/emprego com o consumo de alimentos e especialmente dos alimentos protéicos é muito bem documentada por estudos e análises históricas. Sempre que a renda do pobre aumenta, a sua dieta se modifica de mais energética para mais protéica. Em termos objetivos, o pobre que comia somente macarrão e farofa passa a comer uma carninha e a tomar um leitinho. Isso ocorreu, por exemplo, no Plano Cruzado e no início do Plano Real, quando o consumo de lácteos explodiu, e passou de um patamar de 100 litros/habitante/ano para uma faixa de 130 litros/habitante/ano.
Em resumo, julgo que a melhor saída estrutural para a crise do setor lácteo no médio prazo seria uma aceleração do crescimento econômico, e mais importante do que isso, uma distribuição mais eqüitativa da renda. Isso viabilizaria a expansão da produção brasileira de leite, que, aliás, acho muito salutar.
Mas quais as estratégias para viabilizar essa proposta? Pois bem, estes são outros 500 (anos?). Nesse sentido, gostaria de discutir com os leitores dessa coluna no meu próximo artigo uma proposta elaborada pelo Instituto Cidadania, que tem o nome de "Projeto Fome Zero", e que foi recentemente lançado a nível nacional, e que tive a oportunidade de participar das discussões finais. É um projeto no mínimo interessante de ser estudado e que propõe a distribuição de "cupons de alimentação" para as famílias pobres (modelo americano dos "food stamps"), expansão da merenda escolar, estímulo a agricultura, fomento à produção para auto-consumo, regulamentação mais severa da concentração do varejo, criação de canais alternativos e populares de distribuição de alimentos, etc...A versão completa do projeto para aqueles que quiserem se adiantar à minha próxima coluna encontra-se disponível no site www.icidadania.org.br