Wilson Zanatta é médico veterinário e produtor de leite. Mas é mais conhecido como fundador e sócio-majoritário dos Laticínios Bom Gosto, do RS. A empresa surgiu em 1993, com apenas 4 funcionários e, em 2008, com 900 funcionários, espera faturar nada menos do que R$ 700 milhões por ano, a partir de uma captação de 2 milhões de litros de leite por dia, volume que o coloca como um dos cinco maiores captadores de leite do mercado brasileiro. No ano passado, com investimentos do BNDES, a Bom Gosto se expandiu para além do RS, com investimentos no Uruguai e aquisições em Minas Gerais. Zanatta deu essa entrevista exclusiva ao MilkPoint, falando sobre o crescimento da empresa, sobre sua visão ampla do setor leiteiro e seus desafios, e sua perspectiva para a atividade no futuro.
MilkPoint: Como surgiu a Bom Gosto?
Wilson Zanatta: Sempre tive a idéia de ter uma agroindústria, de carne ou leite, e transformar a matéria-prima produzida na região em um produto acabado, e optei pelo leite, imaginando que o estado tivesse um grande potencial, o que vem demonstrando. Embora para mim o leite ainda seja o "patinho feio" do agronegócio brasileiro, uma vez que é a atividade com a menor tecnologia aplicada, é, em contrapartida, o segmento que mais tem a crescer. No momento em que colocarmos melhores condições para os animais produzirem, ou seja, comida e manejo, podemos triplicar a produção de leite com o mesmo número de vacas ordenhadas. Portanto, é um setor que promete, tem muito a fazer, e basta apenas começar.
Bem, voltando ao Bom Gosto, o laticínio começou em outubro de 1993, com quatro funcionários. Hoje somos uma empresa com 900 funcionários, e chegando a um volume de 2 milhões de litros de leite processados por dia. A história da Bom Gosto se deu em função da afinidade que eu tenho com o setor e da visão que eu tinha há 20 anos, de que o Brasil seria um grande produtor e um grande exportador de leite, como com certeza vai ser. Foi isso que me fez pensar que leite é um belo investimento e que teria um futuro promissor.
MKP: O que é, hoje, a Bom Gosto?
WZ: No ano passado, conseguimos uma parceria com o BNDES, que tem uma participação de 23% dentro da empresa (os outros 77% são da minha propriedade). Fizemos duas aquisições, do Laticínios Da Matta, localizado na Zona da Mata, em Minas Gerais e da Nutrilat, do Rio Grande do Sul.
Somando essas empresas, chegamos a um faturamento de R$ 550 milhões no ano de 2007. Estamos projetando um faturamento de R$ 700 milhões para 2008, e com uma linha bastante diversificada de produção. Hoje 50% do nosso faturamento é de leite longa vida - no ano passado era 75% - e temos leite em pó (na fábrica da ex-Nutrilat, que agora é Bom Gosto, com capacidade para 400 mil litros diários), leite condensado e queijos.
Estamos adquirindo uma torre de secagem de 600 mil litros diários para a fábrica de Tapejara, no RS, que será instalada até o começo de 2009; é um equipamento importado da Holanda, "top" de linha. Adquirimos um bom equipamento para produzir um bom produto.
Temos também um projeto no Uruguai, na província de San José, que consta de uma planta com capacidade para processar 1 milhão de litros em 5 etapas. A primeira é a construção de uma torre de secagem com capacidade para processar 400 mil litros de leite. Terá ainda leite longa vida e queijos.
MKP: E porque a opção pelo Uruguai?
WZ: A opção pelo Uruguai é que aquele país tem uma matéria-prima de qualidade muito superior à do Brasil, e um mercado mundial já conquistado, com acesso a mais países do que o Brasil. Dessa forma, acreditamos que, estando no Uruguai, poderemos exportar para um número maior de países.
Tenho também um elo de amizade muito grande com produtores uruguaios. Há dez anos eu importo animais uruguaios, e o pessoal me cobrava um investimento lá. Agora, com a parceria com o BNDES, me encorajei a fazer. A idéia é começar no segundo semestre de 2009.
MKP: E como está sendo a repercussão no Uruguai? Porque lá a Conaprole tem cerca de 70% do mercado.
WZ: A repercussão no Uruguai é muito boa porque lá qualquer investimento já abrange o país inteiro. O grande negócio do Uruguai é o agronegócio, e como isso está em evidência hoje no mundo, com todos os produtos supervalorizados, o país está tendo uma mudança de ritmo muito forte nesses últimos anos. Os preços do boi e do leite dobraram, os produtores de leite do Uruguai que sempre trabalharam com margem muito apertada estão ganhando dinheiro por lá, que há muito tempo não viam. Estão bastante entusiasmados, e vai haver uma resposta muito rápida na produção de carne e de leite no Uruguai.
O projeto no Uruguai é desafiador porque muda tudo. Uma coisa é fazer um projeto dentro do Brasil, onde se conhece a legislação. Lá, as coisas são diferentes, começando pela língua. A legislação e os costumes são também totalmente distintos. É um desafio em dobro, mas eu gosto de desafios.
MKP: No setor lácteo, muitas empresas têm crescido, mas o crescimento que a Bom Gosto anunciou realmente surpreende.
WZ: Com certeza. No setor, nós devemos estar liderando [em relação ao crescimento] aqui no Brasil, porque em 2000 nós faturávamos R$ 4,5 milhões e o que acabamos de anunciar é um recorde, com certeza. E foi um crescimento sustentado, uma organização industrial, financeira, e em política leiteira. Também neste ano vamos investir forte no melhor posicionamento da nossa marca no mercado, que era uma coisa que eu precisava fazer.
Fazer isso em pouco tempo não é uma tarefa fácil, mas conseguimos, e nunca tivemos problemas fiscal, ambiental, operação "Ouro Branco" [operação da Polícia Federal que detectou, em outubro, leite adulterado em duas empresas]. A Bom Gosto nunca foi prejudicada em função da credibilidade e do trabalho sério que faz.
MKP: O BNDES participa da administração da empresa ou a gestão é sua?
WZ: O banco não participa do conselho, mas sempre o convidamos para as reuniões do Conselho. Acho que nós conseguimos credibilidade o suficiente para nos deixar um pouco livres para tocar o negócio. Mas eu gosto da participação, utilizar a "expertise" que o banco tem, porque como participa de várias empresas, em vários segmentos, sempre pode nos oferecer dicas interessantes. Não é somente o aporte de dinheiro, e sim um toque mais profissional em termos de gestão, de governança corporativa, que a empresa precisa ter para ter um crescimento sustentável. Eu utilizo o banco neste sentido.
Eu estava um pouco preocupado antes de fazer o negócio, mas eu provei que, realmente, o banco está confiando no trabalho que temos feito, e tanto é que, quando a Bom Gosto entregou o projeto do pedido de parceria, entre a liberação e aprovação, não durou mais de três meses, foi um tempo recorde de aprovação.
MKP: Em que momento você optou pela estratégia de crescimento, a ponto de colocar a Bom Gosto entre as principais empresas do país no setor de lácteos?
WZ: Eu acho que todo empresário que se preze tem que ter o crescimento como primeiro plano em suas estratégias. Não há como tocar uma empresa, seja em qualquer segmento, no leite ou em qualquer outro, sem que se pense em crescimento. Isso é uma premissa básica para ter sucesso, pensar em crescer e utilizar todas as oportunidades que o mercado lhe oferece. Às vezes o empresário pode pensar em se manter em determinado patamar no mercado, mas na verdade, o que está ocorrendo é uma redução em sua participação, pois os outros continuam a crescer.
Nós estamos vivendo em uma fase de fusões, aquisições e abertura de capital. Embora estejamos passando por um momento turbulento em razão da crise norte americana, essa turbulência logo passará. Em outras épocas, com o rendimento que o setor conferia, eu não seria auto-suficiente para crescer em sintonia com as necessidades do setor. Eu busquei uma parceria para poder fazer frente a essas necessidades. Foi a forma que eu encontrei para crescer e, quem sabe, abrir capital em bolsa de valores , me tornando uma marca forte.
Eu admiro, no segmento de carnes, o crescimento de suínos e frango em especial. O segmento de bovinos está no mesmo caminho, de consolidação, de marcas fortes e empresas com volume, afinal, é uma commodity, e não há outra maneira de obter um bom retorno que não seja conseguir criar escala, recuperando as baixas margens que o setor produz. A Bom Gosto fez essa estratégia, e está dando certo. Eu creio que hoje a Bom Gosto é o quinto player em termos de leite no Brasil, o que em 14 anos é um feito histórico e que nos orgulha muito, o que só foi possível com a abertura de capital [para o BNDES].
MKP: Você acha que essa movimentação que está ocorrendo no mercado, com aquisições, vai de fato reestruturar o setor?
WZ: Sem dúvida. Em todo o mundo o leite é desenvolvido em fábricas grandes. Há uma tendência a se juntar. Não é possível que o Rio Grande do Sul tenha cerca de 300 laticínios registrados e Minas Gerais tenha em torno de 1.000. Isso é uma coisa que não se sustenta, e com certeza acarretará em uma concentração no mercado, o que é algo que já é perceptível. Eu acredito que em cerca de 5 anos haverá no máximo 15 a 20 marcas de longa vida em todo Brasil.
As transformações tendem a ser mais rápidas, haja vista que o ocorrido com o leite nos últimos 6 meses não havia ocorrido nos últimos 10 anos. O discurso mudou. O que se falava antes, começou a acontecer. Ninguém pode negar que neste último semestre de 2007 grandes movimentos foram feitos. Agora no inicio de 2008 houve uma redução nos negócios, em função da virada de ano e dessa turbulência externa ao Brasil, mas eu acredito que vai retomar forte no segundo semestre.
MKP: Quais são suas expectativas para o mercado no ano de 2008?
O grande potencial [do leite] está na América do Sul, em especial na região Sul, em virtude do clima mais ameno e frio, onde a vaca se adapta melhor. Outro fator relevante é que nesta região o leite não sofre a influência e concorrência da cana-de-açúcar, caracterizando-se por propriedades menores, ou seja, o leite se adapta perfeitamente.
MKP: Você acha que esse ambiente cria uma situação de desafio para as cooperativas?
WZ: Eu já fui presidente de uma cooperativa, mas por não fazer mais parte prefiro não criticar. No entanto, eu só vejo uma possibilidade para as cooperativas, que é unirem-se, através de fusões, por exemplo, para ganharem força, caso contrário não conseguirão se manter competitivas. As cooperativas que atuam somente em operações de captação e repasse de leite estão em melhor situação do que aquelas que operam na industrialização. Estamos em uma época que exige um dinamismo muito forte, marcas fortes, e entre as cooperativas isso não ocorre, há uma dificuldade em se tomar decisões.
MKP: Quais são os desafios a serem superados pelo setor daqui para frente?
WZ: O produtor sempre atuou de forma discreta em relação ao leite, sendo esta atividade meio marginalizada, como fonte secundária de renda. No entanto, em muitos casos, ela está se tornando a principal atividade como fonte de renda. Isso é um ponto positivo, pois o produtor passa a ver a atividade com outros olhos.
Um de nossos gargalos é a qualidade. A genética dos animais ainda tem muito o que melhorar, mas merece atenção a questão da alimentação dos rebanhos, com um planejamento nutricional para o animal para o ano inteiro. Há épocas em que sobra pasto, acarretando em um excesso de alimento, ao contrário de boa parte do ano, em que falta alimento. Nessa situação, o animal prede peso e deixa de reproduzir. Isso gera prejuízos para o setor.
Outro grande gargalo é o fato de o produtor estar se profissionalizando sem que a indústria possua um parque industrial adequado. Por exemplo, o parque industrial deve ser capaz de não precisar fazer leite longa vida no momento em que esse mercado esteja auferindo prejuízos, e sim fazer o leite em pó e estocar. Desse modo, preservaria o mercado, não jogando-o para baixo, com até R$ 0,10 ou R$ 0,15 de prejuízo por litro de leite, o que faz com que a indústria segure o preço ao produtor para que não ocorra prejuízo em outra época. Isso não é bom para o setor, pois a capacidade industrial não está devidamente preparada e o produtor é obrigado a produzir em épocas na qual ele poderia estar reduzindo custos e produzindo menos. Nessa situação, seria adequado, em uma época em que o produtor está com bastante pasto, se preparar com silagem e outros alimentos para a época de entressafra, em que falta comida, o que contribuiria para uma maior estabilidade nos preços.
Como dito anteriormente, o leite está bastante atrasado em relação aos demais setores do agronegócio brasileiro; há muito a ser feito. De fato, estamos entrando em uma fase de profissionalização do setor, que em cerca de 5 anos resultará em alteração no discurso atual. A dificuldade em acessar alguns mercados ainda decorre da falta de credibilidade do Brasil no exterior e por não ser reconhecida a qualidade do produto brasileiro. O manejo deve ser bem cuidadoso, desde a rastreabilidade do rebanho, a ordenha e alimentação, além de um cuidado especial na forma como esse leite é armazenado, transportado e industrializado. Isso possibilita o acesso a mercados mais exigentes, ao contrario do Iraque e do continente africano, que aceitam esse produto de menor qualidade, mas pagam menos.
MKP: Como você avalia os efeitos da operação "Ouro Banco" no setor?
WZ: A operação Ouro Branco foi uma espécie de divisor de águas; daqui para frente proporcionará ao consumidor mais segurança em consumir um produto de melhor qualidade. A operação serviu de alerta a todos os órgãos de fiscalização e as indústrias, de que quem não agir com seriedade pagará caro por isso. As marcas que são sólidas e possuem credibilidade já estão ganhando com isso, e ganharão mais. A operação Ouro Branco, por um lado, foi ruim, pois provocou uma redução no consumo, mas a médio e longo prazo a operação pode ser considerada boa, uma vez que ajudará a consolidar o setor.
"A operação Ouro Branco foi uma espécie de divisor de águas; daqui para frente proporcionará ao consumidor mais segurança em consumir um produto de melhor qualidade"
MKP: Você acha que a imagem do leite foi afetada?
WZ: Em um primeiro momento sim, mas as vendas já se recuperaram. Houve também um aumento na preocupação por parte dos órgãos de fiscalização e das indústrias do setor em se auto-fiscalizarem, como através de auditorias independentes ou selos de qualidade, a exemplo da própria Bom Gosto, o que fará com que o consumidor se sinta cada vez mais seguro em consumir leite, acarretando em um aumento no tamanho do mercado. A operação Ouro Branco foi prejudicial ao setor, mas ao mesmo tempo pode ser encarada como algo que foi necessário para o bem estar do setor a médio e longo prazo.
MKP: Você acha que a repercussão que a operação obteve é um indicativo de que o consumidor valoriza a qualidade quando tem acesso à informação?
WZ: Com certeza. A operação serviu como alerta às indústrias que não agem com seriedade, pois nessa situação não irão se manter no mercado.
MKP: O mercado interno brasileiro é o principal mercado para os produtos nacionais, e deve continuar a ser por um bom tempo. Entretanto, apesar do consumo interno ter aumentado, tal aumento não foi linear e ficou abaixo do que poderia ter sido. Quais são suas perspectivas para aumentar o mercado interno?
WZ: Anteriormente ao Plano Real, o Brasil possuía um consumo per capita de leite em torno de 100 litros/habitante/ano; com o Real, o consumo médio subiu para 130 litros/habitante/ano, e caminhávamos para alcançar 140 litros/habitantes/ano em 2007. Com a operação Ouro Branco, houve uma estabilidade no patamares de anos anteriores. A nível mundial e no Brasil, a medida em que há um aumento do poder aquisitivo das pessoas - e o mesmo tem ocorrido em todo o mundo - os consumidores diminuem o consumo de carboidratos e passam a consumir mas proteínas, como as carnes e leites. O consumidor só tem acesso a produtos como iogurte, um bom queijo e uma boa carne caso ele tenha renda para consumir, trocando os carboidratos, como massas e arroz, por churrasco, queijo, leite ou iogurte.
Dizia-se que os chineses não consumiam leite porque não gostavam. Sabe-se que isso não é verdade, pois o fato é que eles não tinham recursos para o consumo dessas mercadorias. Observa-se que à medida em que o poder aquisitivo dos chineses aumentou, o mercado cresceu rapidamente. Os produtos lácteos têm apresentado elevação no consumo per capita. Entretanto, o consumo brasileiro ainda se encontra abaixo do que é recomendado pela FAO, que é de 180 litros/habitante/ano. Deve-se considerar que em um mercado com cerca de 190 milhões de habitantes ainda há muito o que crescer; o tamanho da população é tão relevante que qualquer alteração no poder aquisitivo e no consumo é bem significativa.
Por muito tempo o mercado interno será preponderante. Porém, as vendas externas passam a ser importantes como reguladoras, e o que ocorreu com produtos como o frango, suínos e bovinos, os quais tornaram-se importantes na pauta de exportação, pode ocorrer com o leite, e condições de solo e clima para que isso ocorra o Brasil apresenta, o que provoca otimismo ao setor.