Agronegócio versus agricultura familiar?

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O Brasil é um país em que chavões e falsos conceitos são marretados com tanta freqüência que praticamente se tornam verdades absolutas. Um dos exemplos mais notórios é a falsa dicotomia que contraporia o agronegócio à agricultura familiar. O primeiro é comumente apontado como um setor eficiente, exportador, que advoga o livre comércio e seria supostamente comandado pelos grandes produtores rurais e por grandes corporações de insumos agropecuários e processamento de alimentos. Na outra ponta estaria a agricultura familiar, representada pelos pequenos produtores e pequenas agroindústrias a eles acopladas, que seriam melhores empregadores de mão-de-obra e distribuidores de renda, mas que careceriam de subsídios e proteções permanentes, justificados pelas suas externalidades sociais e ambientais.

Essa falsa divisão não tem o menor fundamento. Para começar, é necessário rever o conceito de "agribusiness" desenvolvido por Ray Goldberg, em 1957, nos EUA, e traduzido, no Brasil, como "complexo agroindustrial" ou "agronegócio" por Ney Bittencourt, Ivan Wedekin e Luiz A. Pinazza, nos anos 1980, com enorme repercussão nos meios empresarial e acadêmico. O agronegócio nada mais é do que um marco conceitual que delimita os sistemas integrados de produção de alimentos, fibras e biomassa, operando desde o melhoramento genético até o produto final, no qual todos os agentes que se propõem a produzir matérias-primas agropecuárias devem fatalmente se inserir, sejam eles pequenos ou grandes produtores, agricultores familiares ou patronais, fazendeiros ou assentados.
A agricultura familiar é, portanto, apenas um segmento central do agronegócio, na medida em que representa boa parte da produção agropecuária: 84% da farinha de mandioca, 97% do fumo, 67% do feijão, 58% da carne, 52% do leite, 49% do milho, 40% das aves e ovos, 32% da soja e 31% do arroz. Em artigo publicado no jornal Valor Econômico, em 14/6, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Miguel Rossetto, se vale das estatísticas acima, retiradas do já antigo Censo Agropecuário 1995/96, para pleitear a necessidade de maior proteção para os agricultores familiares, por meio de subsídios diretos e proteções de fronteira, com base no conceito de "soberania alimentar".

Se subsídios talvez sejam, de fato, necessários para manter a agricultura familiar brasileira, poucas coisas seriam mais nefastas para ela do que a ampliação do protecionismo internacional travestida no conceito de "soberania alimentar". Vejamos:

Se a idéia da soberania alimentar se espalhar, traduzida, por exemplo, em tarifas mais altas, produtos excluídos e novas salvaguardas no contexto da Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC), mercados fundamentais para o País poderão se fechar nos países desenvolvidos e em desenvolvimento. Vale lembrar que, nos últimos quatro anos, nossas exportações agrícolas cresceram 70% para os países desenvolvidos e a impressionante cifra de 205% para os países em desenvolvimento, sendo que as duas regiões já praticamente se igualam em sua importância relativa.

O Brasil exporta US$ 30 bilhões e importa apenas US$ 3,2 bilhões em produtos do agronegócio, posicionando-se como exportador líquido em quase todos os produtos da "agricultura familiar" citados pelo ministro. Um dos exemplos mais notórios de mudança radical nos padrões de comércio vem do setor lácteo, que buscou proteção doméstica quando éramos importadores líquidos num mercado altamente distorcido pelo protecionismo. Hoje, porém, o Brasil já é exportador líquido de lácteos e vem sendo apontado, juntamente com Argentina, Austrália e Nova Zelândia, como um dos principais ganhadores da liberalização do setor. Nesse novo contexto, abrir o mercado mundial é uma estratégia bem mais interessante para os produtores do que fechar o mercado interno.

Não há nenhuma ameaça real pesando sobre a agricultura familiar nas atuais frentes de negociação internacional. A Alca e o Acordo União Européia-Mercosul estão parados e a Rodada de Doha vai, no caso dos países em desenvolvimento, produzir cortes menores nas tarifas consolidadas na OMC. Nossas tarifas agrícolas foram consolidadas em 35% e 55% na OMC, sendo que hoje aplicamos tarifas da ordem de apenas 11%. Ou seja, (improváveis) cortes profundos nas tarifas consolidadas não afetarão o nível corrente de importações do País. Além disso, 65% das importações agrícolas brasileiras entram no Brasil com tarifa zero ou muito baixa, devido aos acordos preferenciais no âmbito do Mercosul e com outros países latinos. A Rodada de Doha não vai alterar esse quadro.

O setor agrícola já recebe apoio da sociedade brasileira por meio de taxas de juros subsidiadas nos créditos de custeio e de investimento. No caso da agricultura familiar, os juros nominais dos programas de governo variam entre 1% e 7,25% ao ano, além de um generoso bônus para "bons pagadores" que pode chegar a 46% do montante principal.

Com a vitória em dois contenciosos agrícolas importantes e a liderança do G-20, o Brasil é um dos países que mais têm lutado contra os subsídios e proteções internacionais à agricultura. O País não deveria ter discurso ambíguo na matéria. Principalmente, não tem cabimento pleitearmos o direito de aplicar em casa as piores práticas que estamos solenemente condenando nos outros países.

Se já é difícil convencer Genebra, Washington, Bruxelas e outras capitais de que merecemos um espaço adicional para crescer no mercado agrícola mundial, a tarefa torna-se virtualmente impossível se Brasília não tiver clareza quanto aos reais interesses de longo prazo do agronegócio brasileiro como um todo. Para isso basta perguntar aos agricultores familiares se eles preferem uma pequena e inútil proteção adicional sobre o US$ 1,2 bilhão importado de países fora da região de comércio preferencial ou ampliar os US$ 30 bilhões hoje exportados. O Brasil precisa ter posição única e definitiva sobre a matéria. O comércio exterior teria tudo para ser uma das poucas áreas de convergência de interesses das nossas antigas idiossincrasias agrícolas. Mas, infelizmente, somos obrigados a constatar que mesmo esta área não está imune a opiniões díspares e ambigüidades.
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Marcos Sawaya Jank

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Sergio Caetano de Resende
SERGIO CAETANO DE RESENDE

BELO HORIZONTE - MINAS GERAIS - PRODUÇÃO DE LEITE

EM 05/08/2005

O raciocínio do nobre articulista está correto, mas apresenta premissas erradas.



Os pequenos produtores e aqueles da agricultura familiar produzem em torno de 80% do total, tanto de leite quanto de carne, e recebem o valor mínimo usado no cálculo do preço médio divulgado pela mídia e usado nas negociações.



Os grandes produtores recebem, no mínimo, 20% a mais no preço da carne e do leite. Estes produtos advindos dos grandes produtores, teoricamente, têm maior qualidade e menor custo de processamento.



Como os pequenos produtores compõem a imensa maioria, e são hiposuficientes, o sistema remuneratório da carne e do leite, no Brasil, deverá sofrer intervenção do Estado, para interromper essa imoral transferência sem causa de riqueza dos pequenos produtores rurais para o restante da cadeia estabelecida fora da porteira.
Tenax Pre Moldados
TENAX PRE MOLDADOS

MINEIROS - GOIÁS - REVENDA DE PRODUTOS AGROPECUÁRIOS

EM 02/08/2005

O difícil é ser pequeno com os preços atuais das comodities agrícolas.



Dependendo de onde está localizada a pequena propriedade as opções são poucas e é dificílimo se manter no negócio, por exemplo, num interiorzão onde o produtor pode produzir apenas alguns grãos e bovinos de carne ou leite.



Já se a propriedade for melhor localizada no sudeste, por exemplo, o produtor ainda tem opção de ter granja ou hortifrutis que podem lhe render mais e mantê-lo no negócio.
Adriano Ruppenthal
ADRIANO RUPPENTHAL

BARRA DO GARÇAS - MATO GROSSO - PROFISSIONAIS DE CIÊNCIAS AGRÁRIAS

EM 21/07/2005

Sou natural do estado de Santa Catarina, região do Extremo Oeste, onde se concentra exatamente a categoria de produtores citados pelo Sr. Markos S. Jank no artigo Agronegócio versus Agricultura Familiar, do dia 05/07/2005.



Muito interessante a matéria levantada pelo Sr. Markos S. Jank, que condiz muito claramente com a teoria adotada por países como Estados Unidos da América, Canadá e a maioria dos integrantes da União Européia, dentre outros.



Imagino que essa posição venha em decorrência da fonte de boa parte de seus conhecimentos adquiridos após anos de dedicação e estudos, no exterior.



Longe de querer (e poder) argumentar com dados estatísticos concretos, sempre me questionei muito a respeito de onde encontrarmos a atividade agropecuária auto sustentada, isto é, sem pesados investimentos do estado para viabilizar a atividade, permitindo um padrão de vida pelo menos regular/médio aos seus produtores, nos países chamados desenvolvidos? Eu não conheço nenhum.



A retórica tem sempre sido essa: não se deve subsidiar a atividade econômica sob hipótese alguma, o que deve prevalecer é a economia de livre mercado.



Desde que isso aconteça aqui, pois o que se verifica nestes países é absolutamente o oposto, com bilhões e bilhões de dólares sendo empurrados sobre os produtores, garantindo, assim, sua renda e padrão de vida lá na fazenda, criando situações onde o que se estimula é o alto consumo de concentrados, no caso dos confinamentos e de maneira geral na pecuária como um todo, e às vezes, até mesmo o desperdício.



Voltando à nossa situação de produtores em regime de livre mercado, e voltando há mais ou menos 15 anos atrás, quando cheguei em Barra do Garças, estado de Mato Grosso, lembro que havia um grande frigorífico de porte internacional, onde, nos dias em que se abatiam lotes de animais precoces, o que se via era algo parecido com uma corrida do ouro: seperavam-se caixas e caixas de cortes nobres destinados à diretoria, de tão raro que era o produto.



Naquela época se dizia que a qualidade do nosso boi era muito baixa, levávamos 4 a 5 anos, quando não mais, para acabarmos um boi, e se dizia também, que tudo melhoraria com o aumento da produtividade, via melhoramento genético, sanitário e de manejo.



Passados estes quinze anos, o boi precoce é uma rotina em qualquer frigorífico do Brasil. E como estamos? Enfim, ouvindo exatamente a mesma conversa de outrora, com um detalhe a mais: as exportações vão alavancar a atividade agropecuária.



Estamos há pelo menos 4 anos aguardando esta virada, apesar te estarmos assistindo ao aumento dessas exportações dia-a-dia. E, no entanto, a situação dos produtores vai de mal a pior, não tão pior para os mega-produtores, que tem na escala uma certa compensação pela baixa lucratividade. Mas quantos são estes?



A continuarmos nesse ritmo, deverão existir talvez uma dúzia deles daqui há mais 10 ou 15 anos, e o resto deverá estar trabalhando para eles, ou, na pior das hipóteses, morando na Rocinha, no Morro do Alemão, ou outra destas.



Será que é isso que podemos esperar? Quem sabe não poderíamos adotar uma política que vem dando certo há mais ou menos uns 60 anos na América do Norte e Europa...



Obviamente não sem antes nos certificarmos da eficiência desta prática, naturalmente...



Tem algum "trem" errado nessa história, diria o matuto...
marcelo baptista da silva
MARCELO BAPTISTA DA SILVA

OUTRO - SÃO PAULO - PROFISSIONAIS DE CIÊNCIAS AGRÁRIAS

EM 15/07/2005

Na maioria dos casos o grande problema da agricultura familiar é a baixa produtividade, acredito que investimentos em tecnologia e assistência técnica têm retorno mais elevados e por maiores períodos.



Em nossa região temos exemplos práticos de propriedades que passaram de 500litros de leite/hectare/ano para 3500 litros de leite/hectare/ano, adotando práticas adequadas e usando recursos subsidiados com taxas de 4% ao ano.



Med. Vet. Marcelo Baptista da Silva

Casa da Agricultura de Nazaré Paulista - CATI

Breno Augusto de Oliveira
BRENO AUGUSTO DE OLIVEIRA

OUTRO - MATO GROSSO - PROFISSIONAIS DE CIÊNCIAS AGRÁRIAS

EM 12/07/2005

Com bastante excelência o prof. Marcos colocou a grande importância da agricultura familiar na mesa dos brasileiros, os números produtivos são bastante expressivo, demonstrando o tamanho da contribuição dos produtores familiares á segurança alimentar do país.



Porém se não houver colaboração do agronegócio para a mantença destes experientes profissionais no campo com sustentabilidade, em um futuro bem próximo as cidades estarão no mínimo mais violentas e com os recursos ambientais totalmente esgotados nos campos do Brasil.



Atenciosamente,



Breno Augusto de Oliveira

Consultor - GESTAR/CONFRESA-MT
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