Faz parte do trabalho de muita gente estudar e tentar prever variáveis econômicas de diversos segmentos. A análise de mercado é muito importante para nortear estratégias de gestão no intuito de aproveitar as oportunidades na alta e minimizar riscos na baixa.
É uma tarefa extremamente complexa e normalmente não se confirma exatamente como o previsto, mas pode dar importantes direcionamentos. No setor lácteo as variáveis são numerosas e muito dinâmicas. Em determinado momento uma variável impacta mais, em outro período o mesmo índice interfere menos.
O setor é caracterizado por ter vários micro mercados que formam o todo, e cada um com as suas peculiaridades: são produtos refrigerados líquidos ou queijos, produtos “carga seca” fluidos ou concentrados, na forma de pó ou pasta, doces, etc. São distintos em tempo de processo, estoque de giro, shelf life, valor agregado, volume de participação, volatilidade dentre outras características.
Para desenhar as tendências é preciso cruzar históricos desses setores secundários e criar correlações coerentes com o único produto comum a todas aplicações que é o leite in natura.
Os principais fatores que determinam se um mercado sobe ou cai são aqueles básicos da lei maior de mercado: Oferta e Procura (demanda), e no leite basicamente funcionam assim:
São vários fatores, alguns não representados nesses diagramas, que determinam se o volume disponível ficará maior ou menor que a demanda. Ou que levam a demanda a ficar maior ou menor que o volume disponível.
Estamos saindo do momento em que os preços do leite no campo atingiram recorde histórico. Alguns derivados também alcançaram seus recordes, outros não. A movimentação de volume de leite entre os derivados através dos vasos comunicantes funcionou como sempre, buscando aplicar mais matéria-prima aos produtos de melhor posicionamento pontual.
Assim como o leite e alguns de seus derivados, os principais componentes da alimentação animal também alcançaram índices recordes que elevaram substancialmente o patamar de custo de produção. Essa não foi uma preocupação tão alta até o momento porque os preços de leite acompanharam a tendência levando boa rentabilidade ao negócio. O índice “Receita Menos Custo de Ração” analisado pelo Milkpoint Mercado aponta resultado recente de margens atrativas.
Passamos por um momento de exceção onde uma considerável injeção de recursos governamentais nos últimos meses impulsionou o consumo de alimentos. O auxílio emergencial e a mudança de comportamento do consumidor com as medidas de isolamento, distorceram de forma quase que imprevisível o mercado do leite. Uma rápida e bem feita mudança de canais de varejo levou a meses sequenciais em alta de preços e vendas.
Segundo dados da Nielsen, o consumo de Lácteos marcou crescimento de 5,3% no primeiro semestre do ano.
Com preços subindo e margens consistentes, foi inevitável aumento na produção interna também provocada por estímulo. O índice de Captação de Leite do Cepea (ICap-L) que já apresentava crescimento em três meses consecutivos marcou 3,88% em agosto e, ao que tudo indica, apresentará novo crescimento no consolidado de Setembro. Esse número reforça a ideia que o que de fato interfere na formação de preços não é o custo, mas o impacto que as margens efetivamente causam na disponibilidade de leite. Essa semana, o professor Wagner Beskow publicou um texto em suas redes sociais extremamente elucidativo sobre essa realidade.
Voltando aos fatos recentes, alguns derivados de grande participação descolaram abruptamente das suas curvas de preços comuns, tiveram seus estoques muito reduzidos e, assim, elevaram com muita força os preços do leite spot (leite negociado entre as indústrias de laticínios). A partir daí o estímulo às importações foi imediato.
Somente nos meses de julho, agosto e setembro, o saldo negativo da balança comercial ficou em 58 milhões de litros internalizados a mais do que o total dos primeiros seis meses do ano. Para o mês de setembro, o volume importado se aproxima de 7% do total estimado disponível no Brasil. Em outubro, segundo informação de Valter Galan do Milkpoint Mercado, devemos ter o maior nível de importações em um mês dos últimos 13 anos.
O Auxílio Emergencial – que chegou a representar aproximadamente 51 bilhões de reais por mês de transferência direta de recursos federais para a população – foi reduzido para 16,7 bilhões após a prorrogação no início de setembro com menor valor. Ainda é um recurso importante, mas que pode ser superado negativamente pela perda de capital circulante com o desemprego. Desde de maio, o total de desocupados saltou de 10,1 milhões de pessoas para 13,5 milhões, um aumento de 33% conforme dados divulgados pelo IBGE. Além dessa perda de renda temos a mudança intensa nos hábitos de consumo, com a flexibilização a população reduz o direcionamento de recursos aos alimentos e volta a aplicá-los em outras atividades e setores.
Com a menor renda que se combina com maior disponibilidade de leite, tanto pelo aumento da produção interna quanto pelo crescimento forte das importações, estamos diante de um movimento consolidado de queda nos preços.
Altas e quedas em um produto com a complexidade do leite são normais, esse é um mercado que não se estabiliza completamente nunca. Pode a matéria prima ter se estabilizado em determinado momento, mas sempre haverá algum derivado em queda ou alta. A normalidade se perde quando a referência se perde.
Em discussão sobre mercado a dois meses, afirmei que o produtor deveria ter cautela no momento de maior alta de preços. Claro que sei que em momentos de alta recorde o mercado naturalmente vai se motivar a produzir mais, o que me referi como cautela foi na gestão financeira. Estava claro em minhas análises que o setor havia perdido a referência nas altas, e ter produto disponível passou a ser a principal preocupação de produtores e indústrias.
A cautela sugerida era na gestão conservadora dos recursos alcançados com preços e margens recordes. Um mercado quando perde a referência para cima, fica com baixíssima sustentação quando a tendência verte para baixo. Assim, como não se via o pico, agora não se tem noção do piso.
O custo de produção sobe de forma preocupante, mas como afirmei, só se reflete em uma tendência direta sobre os preços de leite quando provoca efetivamente redução na oferta. A possível falta de insumos básicos para a alimentação animal pode provocar uma aceleração na redução dos volumes, mas por hora a produção segue em crescimento e ainda com margens interessantes. O tempo em que o alto custo de produção precisará para arrefecer a oferta de leite pode aproximar perigosamente o “céu do inferno”.
Os novos preços de atacado do leite UHT, por exemplo, se aproximam da realidade de março, quando as cotações estavam entre 2,95 e 3,05. Nesse mesmo período o leite ao produtor atingiu média CEPEA Brasil de R$ 1,4527, valor completamente impensável para a realidade de custos de produção atual.
A pandemia fez com que o setor perdesse a referência de seus preços e custos e isso pode fazer com que a reacomodação do mercado seja extremamente perigosa e traumática.
Parece clichê um analista de mercado sugerir cautela, vemos isso com muita frequência, afinal cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém. Essa palavra até rende questionamentos, afinal bons gestores precisam sempre ser cautelosos. Mas a euforia existe e pode dizimar um projeto sólido rapidamente quando se torna o norte de gestão do negócio.