A relação entre produtores de leite e indústrias de laticínios no Brasil é um tema de complexa análise e com certeza de grande polêmica. Para entender melhor os motivos que levam a uma relação conflituosa em sua maioria, precisamos voltar um pouco atrás na história recente do leite no Brasil e entender os mecanismos que norteiam esse complexo setor.
A indústria nacional, começou a ser organizada basicamente por estruturas cooperativistas, mobilizadas por produtores e incentivadas por programas governamentais que tinham forte interferência no mercado leiteiro nacional. Também eram muito comuns nesse período, microindústrias regionais - em geral queijeiras - controladas por pessoas ligadas à produção primária, além de grandes empresas multinacionais que até hoje se mantêm em posições de liderança e relevância no setor industrial. No sul do país, organizações cooperativistas tinham forte influência de imigrantes, que traziam uma cultura mais evoluída em relação ao que tínhamos de conhecimento sobre pecuária de leite, além de ter senso de gestão e organização diferenciados.
Com toda essa diversidade, a organização industrial laticinista encontrou um mercado regulamentado, engessado, com políticas de tabelamento de preços que só vieram a cair em 1991. Essa realidade atrasou o desenvolvimento do setor como um todo. Já o produtor de leite brasileiro, tinha um perfil original ainda mais diverso. Em regra geral, eram grandes fazendas criadoras de gado de dupla aptidão, que tinham a produção de leite como renda complementar e com baixa produção média (por vaca) e total (diária).
Com o fim do tabelamento, em menos de uma década surgiu uma nova demanda, que vinha carregada de muito pessimismo e descrédito: a necessidade de granelização do leite. Estradas ruins, má distribuição de energia, baixa qualidade do leite dentre outros argumentos marcaram um processo que tinha necessidade de ser realizado, mas com muita resistência do setor em sua maioria.
Surpreendentemente, o processo de granelização se deu de forma natural e descomplicada. Logo após esse desafio se firmou como tendência a concentração na indústria e na produção primária. Esse processo, motivado pela necessidade de ganho em eficiência e tecnologia, permanece em curso na atualidade. É constante o movimento de fusões e aquisições no setor industrial e o crescimento de produção média diária no campo com redução no número total de produtores.
Analisando brevemente esse recente histórico do leite no Brasil, e sendo ele de melhorias substanciais (apesar do atraso), por que não temos uma boa relação comercial consolidada nos principais elos da cadeia produtiva?
A cadeia do leite possui grande complexidade, tanto na produção primária como na industrialização e distribuição dos produtos finais ao mercado varejista.
Olhando para a produção primária
O produtor de leite, tem que ser um bom conhecedor de ciências agrárias e sociais, além de entender sobre gestão, sanidade, reprodução e qualidade do leite. Precisa analisar seus índices e traçar tendências para ciclos de produção em que deve considerar: produção de forragens, compra de grãos (commodities que têm suas características de mercado próprias), tendências de preços do leite e necessidade de investimentos. Isso para resumir.
A missão da indústria não é menos desafiadora:
Adquire uma matéria-prima perecível que varia no mercado dia a dia, mas que tem fluxo de negociação mensal. Transforma essa matéria-prima em diversos tipos de produtos, perecíveis ou não e tem que planejar como colocá-los no mercado em diferentes momentos: com estoques baixos e com estoques crescentes. Além disso, a responsabilidade de alocar os produtos no varejo é de sua total responsabilidade, mas quem determina se vai produzir mais ou menos são os produtores (seus fornecedores), não havendo forma muito eficiente de prever tendências de disponibilidade a longo prazo.
O setor industrial deve ainda: desenvolver novos produtos, estudar nichos de mercado, promover melhorias de qualidade do leite, administrar excessos, gerir riscos ambientais, criar rede de clientes e fornecedores e monitorar concorrentes. Também foi uma análise resumida. Se as atividades são tão complexas, não seria mais razoável melhorar a relação, estabelecer parcerias mais estreitas, aumentando a fidelização e tornando tudo mais transparente?
Para que haja um processo de fidelização comercial em qualquer setor, algumas premissas precisam ser bem definidas:
1 – Saber quais são as condições (necessidades) importantes para o parceiro na negociação e definir se os objetivos das duas partes são compatíveis para uma relação de maior tempo;
2 – Ser transparente e confiar que tem transparência equivalente da outra parte;
3 – Entender que vão haver momentos em que a parceria pode ser desvantajosa, mas que no médio e longo prazo ela traz segurança, vantagens competitivas e possibilidade de crescimento para o seu negócio.
Afinal, onde podemos melhorar?
Indústrias e produtores têm objetivos comuns. Como dito acima, a complexidade de se produzir leite, operar a sua logística, produção e distribuição é tão grande que somente falando a mesma língua o setor produtivo pode garantir melhor ganho e sustentação para os seus principais elos.
Na regrinha 1 evidenciada acima, é possível entender que os produtores precisam saber qual a qualidade do leite e as condições de logística e produção a indústria compradora almeja. Um bom exemplo: um produtor tem teor de sólidos altos em seu leite produzido, e tem uma indústria de queijos finos e outra de UHT na região. Qual tem mais perfil para estabelecer parceria? Logicamente a indústria queijeira terá maior benefício em seu leite, podendo ser um ponto forte da negociação.
Já a indústria tem que saber o que o seu produtor precisa para crescer e se estabelecer de forma segura e sustentável. Qual auxílio técnico ela pode dar em processos de gestão, qualidade do leite, boas práticas e genética? Quais são as prioridades desse produtor no momento da negociação e para o futuro? Você produtor ou você indústria já perguntaram para a outra parte o que ela precisa, qual é o seu projeto, onde quer chegar? No que posso te ajudar?
Na premissa 2, um grande problema que precisa ser melhorado no setor lácteo: as partes precisam de transparência. O mercado prega peças e o calo aperta em alguns momentos. É da nossa cultura alguns produtores não aceitarem notícias ruins e não entenderem onde está o problema de mercado em determinado momento, em uma clara posição de negação da realidade. Essa postura ainda é resquício do recente período de tabelamentos, em que a participação dos produtores no mercado era somente de produção, ficando a cargo do governo decidir os rumos de preços do produto. Também, temos algumas indústrias que seguram as informações quando são ruins até o último momento, trazendo insegurança aos seus produtores e a sensação de que foram prejudicados após terem vendido o seu produto sem firmar previamente as condições. O mínimo que se espera em uma relação transparente é uma discussão madura e profissional sobre tendências de mercado a curto prazo, que posicione as duas partes quanto às estratégias a serem tomadas.
Além disso, a grande maioria das indústrias tem análises de tendências a médio e longo prazo. Por que não conversar com seus produtores? Em especial na Verde Campo, temos operado com previsões e nossos parceiros produtores têm se adaptado a receber informações antes do fornecimento, podendo assim afinar o planejamento de forma mais segura.
Por incrível que pareça, já nos deparamos com um produtor que alegou que a nossa informação antecipada, quando ruim, prejudicava o mercado. Ele certamente está entre os produtores que citei acima que não estão preparados para manter uma relação com conceitos bem estabelecidos de transparência.
O item 3 é com certeza o que mais promove desentendimentos e cancelamentos de parcerias. O mercado de leite tem grande diversidade na aplicabilidade da matéria-prima em relação ao produto final. Grande parte do leite é destinado ao envase no formato UHT e a produção de leite em pó que tem prazos de validade altos e é mais susceptível a grandes variações. Outra parte vai para queijos de grande giro como muçarela e prato, que também sofrem variações mais intensas. Já uma terceira parte está dividida em queijos finos, produtos refrigerados como iogurtes, bebidas e cremes - que têm curvas menores de variação para cima e para baixo. Ainda temos os sorvetes que também têm boa utilização de lácteos. Essa diversidade segue em regra as mesmas tendências altistas e baixistas, porém, em tempos e intensidades diferentes.
Um exemplo de caso muito comum: uma indústria de UHT precisa realizar baixas antes de um queijeiro em uma mesma região. Determinado produtor dessa indústria cancela o fornecimento iniciando com o queijeiro, que naquele momento ainda não operou a baixa. Porém, a fábrica de queijos precisa logo no mês seguinte reduzir os preços da matéria-prima por conta da queda acentuada nos preços do queijo. Quando a tendência se inverte para alta, o leite UHT que é um produto mais reativo sobe primeiro, propiciando aos produtores da indústria de UHT a alta de preços mais cedo. O produtor do nosso exemplo fica naturalmente com a impressão que fez mal negócio. Na realidade, como ele não completou o ciclo de mercado em uma empresa, não tem como ele saber se fez bom ou mal negócio, mas, se ele ficar trocando de parceiro a cada variação, certamente a sua imagem ficará prejudicada e a sensação de estar negociando mal vai piorar cada vez mais.
Como diria meu avô “urubu é preto em qualquer lugar”
A má relação entre produtores e indústrias é tão maléfica ao mercado que atitudes simples e com maior transparência poderiam evitar fortes crises como vivemos hoje, ou ao menos minimizá-las. Não temos nenhuma ação que ajude a regular a oferta de leite de acordo com a demanda do mercado interno. Será que se os produtores soubessem a 100 dias atrás que teríamos excedentes tão prejudiciais eles não teriam nenhuma ação estratégica para, pelo menos, não aumentar tanto o volume de leite disponível em um período tão curto?
Será que se a indústria ‘capitaneasse’ um projeto sério de estímulo a melhoria da qualidade do leite e os produtores topassem tal compromisso, nós não teríamos uma válvula de escape para exportar excedentes sem contaminar o mercado interno com preços baixos?
Precisamos de discussões sérias de setor que levem à evolução na relação entre produtor e indústria. É necessário entender que condições e tendências precisam ser discutidas de forma clara entre esses dois elos para conseguirmos ter o mínimo de planejamento setorial e pensarmos o leite de forma eficiente no Brasil.
As duas partes exercem papel de importância e complexidade equivalentes e o sucesso de uma, depende da plena saúde da outra.