O setor lácteo brasileiro, assim como em alguns outros países do mundo, é caracterizado por uma relação de conflito perene na cadeia produtiva.
Esse cenário se agrava muito em momentos de crise, como estamos passando. Surgem discussões setoriais, acusações e dúvidas sobre a distribuição de margens na cadeia.
Interações onde os arroubos emocionais se sobressaem a razão, provocam um contexto de desinteligência inevitável. Como a palavra mesmo sugere, o clima de conflito tira toda a possibilidade de análise crítica do problema e de possíveis soluções do ponto de vista setorial.
Isso tudo já seria preocupante o bastante por si só, mas temos um outro problema estrutural que agrava ainda mais a situação.
O setor brasileiro é essencialmente especulativo. Relações curtas baseadas em barganha e especulação imperam em detrimento de parcerias consolidadas, nas quais um elo procura sentir a dor do outro e dividir o peso do fardo a ser carregado.
Está muito claro que a força negocial troca de mãos sucessivamente de acordo com a demanda de mercado, e nas relações especulativas, o sentimento de se compensar dos momentos mais frágeis está sempre vivo na cabeça das indústrias e produtores. Uma queda de braços interminável se estabelece, onde ganhos pontuais quase sempre se sucedem de perdas na sequência.
Temos um raro momento em que os dois elos da cadeia produtiva estão fragilizados. Produtores e indústrias não podem reclamar dos resultados do ano de 2020, principalmente no pós-pandemia. Já em 2021, andamos de lado o ano todo. Nesse momento, as principais commodities do leite estão entre 12% e 15% mais baratas que no mesmo período do ano passado e o leite produtor mais de 7% menos valorizado em valores deflacionados.
Chegamos a um cenário de esgotamento, onde a indústria opera com meses sequenciais de margens aparentes variando de nulas para negativas, e os produtores, que saíram de um ano com margens recordes, agora estão muito apreensivos com um aumento galopante em todos os itens de custos que envolvem uma produção de leite.
Mas como “em casa que falta pão, todos brigam e ninguém tem razão”, a indústria se queixa que não consegue cair os preços da matéria-prima nos níveis que os derivados caíram, aumentando assim o buraco da sua operação já combalida nos últimos 13 meses. Os produtores, por sua vez, reclamam que a indústria está insensível, abaixando os preços em um momento que os custos sobem. O fato é que toda operação precisa de margem para que se distribua resultados e se consolide crescimento perene.
O melhor cenário para o produtor é sempre quando a indústria está ganhando dinheiro, invariavelmente quando o leite está valorizado. E vice-versa, produtor ganhando dinheiro fica firme na atividade, pronto para produzir leite em qualidade e volume suficiente para suprir a indústria.
Dessa vez, sobrou até para o Conseleite. Estamos falando de um método matemático, que nada mais é que um indicador do que seria o valor de referência para gerar margens equivalentes a produtores e indústrias, e que, na verdade, nem é seguido por ninguém como decisão de formação de preços.
Tanto não é referência de precificação que existe uma diferença, há mais de um ano, de aproximadamente R$ 0,50 entre o valor realmente pago (Cepea) em comparação com os Conseleites. Se revoltaram com a estrutura do índice, pedindo revisão de custos que já são realizadas de tempos em tempos, e que, muito provavelmente, não trará mudança significativa nos valores.
Os custos subiram demais na produção, mas também subiram proporcionalmente na industrialização: milho, soja, adubo, energia, embalagens, insumos químicos e fretes têm forte influência do dólar, em um setor que vende seu produto em real ao mercado interno, sofrendo com todas as mazelas econômicas que impactam o consumo do Brasileiro.
A desinteligência cria uma cortina de fumaça sobre os temas estruturantes que realmente deveriam ser debatidos: financiamento de estoques, medidas de planejamento da oferta, plano nacional de exportação de lácteos, assistência técnica, sanidade, qualidade do leite...
A briga constante abre espaço para políticos e representantes oportunistas, que sempre falam o que o sensibilizado quer ouvir, tirando proveito pessoal sem agregar nada de solução.
Países que não têm a abundância do nosso mercado interno, como a Nova Zelândia, por exemplo, conseguem estabelecer uma relação profissional entre produtor e indústria, mapeando seus problemas e criando soluções eficientes. Precisamos começar a pensar o mercado, não aguentamos mais brigas, precisamos de inteligência de mercado.
Nosso foco tem que ser atender o consumidor, entendendo o seu comportamento. Empurrar produto uma época e não ter produto para atender o mercado em outra não é o melhor cenário. A oferta de leite no Brasil está sempre conectada com a influência do estímulo, que vem da viabilidade ou da inviabilidade pontual. Margens sobem, leite sobe de volume logo em sequência, margens caem, leite logo tem redução de volume produzido. Entre esses momentos cíclicos, muita gente boa vai ficando pelo caminho.
É necessário trazermos todos para a mesa, sem conflitos, discussões rasas ou resquícios do passado. O setor é de quem produz e beneficia, e temos que prezar pelo bem dos nossos negócios.