Aquele ano de 2003 mostrou-se promissor desde janeiro. Para ler o artigo clique aqui. Os preços recebidos pelo produtor estavam em alta e crescendo. De acordo com o Cepea/USP, há dez anos o preço foi de R$ 0,469, um preço estimulante para a época. O resultado é que a produção cresceu continuamente e acima do consumo. A quantidade produzida pela primeira vez empatou com a quantidade consumida, e aquele 2003 foi um ano histórico, o primeiro de autossuficiência brasileira na produção de leite! O setor lácteo vivia otimismo, prestes a atuar no mercado internacional, desta vez como exportador. Então, era chegado o desafio da melhoria da qualidade do leite! Em dez anos, o que mudou?
Os preços ao produtor hoje estão 23,7% maiores, já que R$ 0,469 equivale a R$ 0,796 (contra o preço médio de R$ 0,985 de hoje). A produção nacional cresceu 48,6%, enquanto que a população cresceu 10,2%, ou quase cinco vezes menos. Como éramos autossuficientes em 2003, devíamos estar com excedente de leite no mercado interno e atuando no mercado internacional. Mas, isso não ocorreu por dois fenômenos: câmbio desfavorável e mercado interno favorável.
Em 2003, o dólar estava cotado em R$ 2,97. Em dez anos, a inflação brasileira acumulada foi de 70,1%, medida pelo IPCA e a americana foi de 40,4%. Logo, grosso modo, para que o câmbio se mantivesse neutro, a cotação deveria ser R$ 3,84, mas está em R$ 2,13. O resultando é que, em dez anos, o preço do leite brasileiro ficou mais caro quando medido em dólar. Em valores correntes, há dez anos o produtor recebia o equivalente a US$ 0,269 (ou US$ 0,376 deflacionando em dólar) e agora recebe US$ 0,463. Portanto, perdemos competitividade via câmbio valorizado.
Por outro lado, o salário mínimo cresceu 85% acima da inflação do período, o nível de desemprego é bem menor que há dez anos e os programas de transferência de renda, como bolsa família, cresceram substancialmente. A conclusão é que o mercado interno cresceu, empurrado pelo crescimento da renda per capita dos mais pobres, compensando a perda de mercado externo. O resultado é que a produção cresceu mais que a população e menos que consumo e a produção brasileira não tem dado conta da aquecida demanda nacional. Ué, o que tudo isso tem a ver com qualidade de leite?
Na vida, tudo é resultado do binômio estímulo e condicionamento. O instigante livro Freakonomics (disponível em português), traz vários exemplos sobre como estímulos impulsionam nossas ações. Aos três anos, a filha de um dos autores do livro ainda não tinha aderido ao peniquinho. A mãe já tinha feito de tudo, procurado médico, psicólogo e educador, sem resultados. Ele, então, aplicou a lógica econômica. Disse para a filha que toda vez que ela fizesse cocô e xixi no peniquinho ganharia a sua balinha preferida. Imediatamente, a filha adotou a nova prática e colocou as fraldas em desuso. Já o livro Fora de Série mostra que todo vencedor é resultado de condicionamento de ações. Ninguém nasce ótimo. O ótimo é conquistado com dedicação, com o exercício da rotina. A lição que tiramos é que o estímulo (positivo ou negativo) direciona o caminho a ser seguido e leva ao condicionamento, que resultará em comportamento (vencedor ou perdedor).
A matriz de estímulos à melhoria da qualidade do leite tem como ponto central o consumidor. Ele é motor das transformações. Acontece que fomos exportadores líquidos durante pouco tempo, entre 2004 a 2008 e para países pouco exigentes em termos de qualidade. Portanto, o mercado externo não funcionou como estimulador de mudanças quanto à melhoria de qualidade. Já no mercado interno, o consumidor está satisfeito, pois considera leite como sinônimo de qualidade implícita. Mesmo com as operações Ouro Fino e Leite Compen$ado o consumidor ainda acredita que não há diferença de leite entre as marcas. Ele revela preferência para marcas quando compra feijão, arroz, açúcar, café e fubá. Mas, leite é tudo igual... Falta informação ao consumidor.
Se o consumidor não exige melhorias, a indústria brasileira não se movimenta e não passa estímulo explícito ao produtor. Esta foi uma década de involução na organização da indústria de laticínios, que viu reduzir a sua já frágil capacidade de coordenação da cadeia produtiva. As contradições no comportamento das empresas deixam o produtor sem saber qual é a regra do jogo. O número de empresas de laticínios que adotaram políticas sérias a favor da melhoria de qualidade do leite pode ser contado com os dedos de uma mão, apenas. Pois, estas empresas foram prejudicadas. Foram vistas como intransigentes pelos produtores, já que as suas concorrentes, num período de escassez de leite como tem sido, valorizam o produto pouco valorizado e até mesmo recusado pelas empresas que levam qualidade a sério. Portanto, numa época em que quase todas as empresas estão com sérios problemas de caixa, em que a margem líquida está curta, em que o preço do leite está elevado e o produtor é disputado, qualidade não figura como prioridade para a indústria de laticínios.
Portanto, se a indústria não é pressionada pelo consumidor, logo ela não pressiona o Governo a favor de marcos legais e por adoção de fiscalização intensa. E ação de Governo é, em essência, resultante da ação de grupos de interesse ou pressão. Sob este aspecto, O Governo oferta mais do que é demandado. Em 2008, por exemplo, pela ação do Professor da UFPR, Newton Ribas e do pesquisador da Embrapa Gado de Leite, Cláudio Nápolis, o MAPA adquiriu R$ 12 milhões em equipamentos para a RBQL – Rede Brasileira de laboratórios de Qualidade de Leite, tornando-a mais arrojada, confiável e eficiente.
O fato é que neste intervalo de dez anos que separam os dois artigos, coincidentemente publicados no dia dos namorados, o número de propriedades monitoradas cresceu substancialmente, superando as 250 mil. Também expandimos e melhoramos a RBQL. Mais que isso, criamos competência e expertise sobre o assunto. Escrevo este artigo daqui do Congresso Brasileiro da Qualidade do Leite, o quinto realizado nestes dez anos. Este ano, mais de duas centenas de trabalhos científicos foram apresentados. Então, o que falta para efetivamente termos um salto quântico na qualidade?
Falta estímulo e condicionamento, nesta ordem. Para a cadeia ser estimulada, é preciso que o consumidor a estimule. Para isso, o consumidor precisa receber informação que o leve a desconfiar do produto que compra. Sem informação ao consumidor, não haverá pressão. Sem pressão, não teremos nem estímulos, nem treinamentos eficazes que levem ao condicionamento da maioria dos produtores de leite, rumo ao leite de melhor qualidade. Passados dez anos, baixa qualidade e até fraude, pelo visto, compensam.