Há cinco décadas a Inglaterra, Holanda, Nova Zelândia e EUA já usavam sistema de discriminação de preços ao produtor. O leite destinado para o consumo fluido tinha um preço mais elevado que o destinado para transformação em derivados. Com forte fiscalização do Governo, o objetivo claro era preservar a renda do produtor, já que a maior parte era destinada ao consumo na forma fluida.
Então, no final dos anos setenta, o Brasil resolveu copiar esta política, introduzindo a discriminação de preços. Mas, é claro que não foi para beneficiar o produtor. Sob o argumento que seria importante desestimular a sazonalidade de produção, foram criados dois preços: o leite cota e extra cota. Na prática, caiu o preço médio anual pago ao produtor sem que nenhuma mudança houvesse na sazonalidade, que continuou intensa.
Nos anos oitenta a inflação saiu do controle das autoridades econômicas. Como o preço do leite era tabelado pelo Governo e o peso do produto no cálculo da inflação era (e ainda é) elevado, os meus colegas economistas do Ministério da Fazenda criaram uma novidade, nunca descrita nos livros de macroeconomia. Eles resolveram usar o leite como instrumento de combate à inflação!
Resolveram segurar continuamente os reajustes de preço do leite. Entretanto, essa política desestimulou todo um processo de adoção de novas tecnologias que estava acontecendo. Naquele momento o Brasil começava sua vitoriosa transformação tecnológica no campo. Soja, milho, carnes, algodão.... O leite também. Mas, graças aos economistas do Governo da época, o setor passou a ser nada interessante para investimentos em tecnologia, pois o controle de preços não permitia que esses investimentos se pagassem.
Começava ali a descapitalização do setor e o empobrecimento de famílias e regiões outrora economicamente dinâmicas, como a Zona da Mata de Minas Gerais, até então a bacia leiteira de maior produção do Brasil. O atraso da modernização do leite brasileiro, em sua origem, tem as digitais dos economistas do Ministério da Fazenda! Foram eles que, nos anos oitenta, criaram o primeiro e imenso desestímulo à modernização do setor lácteo e, assim, amealharam pobreza. E, o que é pior: fizeram escola!
O resultado dessa política foi claro. Nos anos oitenta a produção de leite patinou e até mesmo nas grandes cidades o perigoso consumo de produto clandestino, via mercado informal, era imenso. A produção cresceu muito pouco e não foi pela melhoria de produtividade, mas por incorporação de terras e vacas. Consolidou-se, assim, a nossa dependência mundial às importações. Os economistas do Governo condenaram o Brasil à condição de quinto maior importador de lácteos do mundo, nos anos oitenta! Passamos a ser matriz de geração de riqueza e emprego no exterior.
Nos anos noventa, a economia perdeu parte da proteção contra importados e a nossa moeda ficou propositalmente valorizada. Você certamente se lembra da chamada âncora cambial. Neste ambiente, várias culturas sofreram forte impacto desfavorável quando foram submetidas à competição externa, como foi o caso do algodão e do arroz. Já o setor lácteo nacional ficou livre das amarras do Governo. A política de tabelamento de preços, cujo discurso era para proteger o produtor, foi abandonada. O produtor de leite, estupefato, no primeiro momento reclamou da decisão do Governo. Afinal, isso aconteceu de chofre, sem aviso, num ambiente em que o leite importado chegava aqui a preços 3,5 vezes menos do era comercializado no país de origem.
Mas, o setor soube competir com o produto importado a preços subsidiados e num ambiente de câmbio supervalorizado. O setor lácteo fez a produção crescer mais que o consumo e promoveu substituição de importação em plena economia aberta e em franca competição com os produtos importados! Mais que isso, em 2004 atingiu a autossuficiência e chegamos a ser exportadores!
O Plano Real está completando 19 anos neste mês de julho. Nestes 19 anos a população brasileira cresceu 27,7% e o PIB cresceu mais que o dobro, ou seja, 69,2%. Portanto, é evidente que ficamos mais ricos em termos per capita. Além disso, com a inflação sob controle, o consumo ficou mais acessível.
Pois, veja você! Neste mesmo período a produção brasileira de leite cresceu 86,2%. Cresceu mais que o PIB e mais do que três vezes o crescimento da população! Portanto, ao ser abandonado pelos economistas do Governo, que deixaram de controlar o preço do leite, o setor começou a cumprir a sua nobre missão de gerar emprego e renda, que são os principais derivados da atividade leiteira! Se você é economista, calcule o efeito multiplicador de emprego e renda da matriz insumo-produto da nossa economia e confirmará esta afirmação.
Sem a intervenção de governo prejudicando os produtores, a produção de leite cresceu via aumento de produtividade e segurou a inflação. Entregou resultados que as políticas públicas distorcidas dos anos oitenta não entregaram. Em 19 anos de Plano Real a inflação brasileira, medida pelo IPCA, foi de 333%. Pois, neste mesmo período, o aumento acumulado do preço do leite ao consumidor não passou de 274%. Agora, compare a evolução de preços de outros itens de custo de vida do brasileiro, apresentados na Tabela 01. Ali estão itens fundamentais para todos nós consumidores. Veja, por exemplo, que o item Transporte Público ficou duas vezes mais caro que o Leite!
Vamos analisar o comportamento recente dos preços. Na Tabela 02, perceba que os Cereais acumularam elevação de preços de 34,9% em 2012, ou quase cinco vezes a inflação acumulada, medida pelo IPCA. No primeiro semestre deste ano de 2013 este grupo teve inflação acumulada em quase três vezes o IPCA. No acumulado de 18 meses chegou a um aumento em mais de cinco vezes o registrado pelo IPCA. O grupo Legumes foi ainda pior. Somente no primeiro semestre teve aumento de preços da ordem de 52,0% para uma inflação de 3,2%! No acumulado de 18 meses chegou a 91,3%, ou dez vezes o acumulado com a variação do IPCA. Óleos, Farinhas e Massas, Hortaliças e Verduras são itens que tiveram aumento de preços quatro vezes maiores que a inflação do período. Já Frutas, foi de 2,5 vezes. Portanto, quem tem a missão de controlar a inflação fica a pensar: com tudo isso puxando a inflação para cima, onde podemos controlar os preços?
Agora, veja a trajetória dos preços do grupo Leite e Derivados. Ao longo de 2012 o IPCA acumulou acréscimo de 5,8%, enquanto que Leite e Derivados teve acréscimo de 5,7%. Neste mesmo período o Índice de Custo de Produção de Leite (ICPLeite) da Embrapa registrou acréscimo de 22,4%! Portanto, os custos cresceram quase quatro vezes mais que o crescimento do preço de Leite e Derivados no varejo.
Já no primeiro semestre de 2013 os preços de Leite e Derivados no varejo subiram bem mais que a inflação, conforme mostra a tabela. E, no acumulado de 18 meses, o preço do grupo Leite e Derivados subiu o dobro que a inflação. Mas, de acordo com a Embrapa, o custo de produção subiu 18,5%, praticamente o mesmo percentual da elevação de preços no varejo.
A imprensa informa que iremos facilitar a entrada de leite no Brasil (para ler a matéria, clique aqui). Evidentemente, é uma medida inócua, pois os preços do leite estão elevados em todo o mundo. Se o objetivo é controlar a inflação via intervenção no mercado de leite, os impactos no IPCA não serão obtidos. Mas, uma notícia dessas contribui para desorganizar o setor. Afinal, a maioria dos produtores de leite tem mais de 50 anos e se lembra da nefasta intervenção do Governo nos anos oitenta. Que estímulo há para se investir em expansão da oferta de leite? Ainda mais num ambiente como o atual, em que custo de produção está subindo... Em junho, por exemplo, enquanto o IPCA foi de 0,26% o ICPLeite foi de 0,42%.
Então, é muito provável que daqui a poucos meses, economistas do Governo comemorem a aparente eficácia da sinalização feita em prol da importação de leite como mecanismo de controle de inflação. Mas, é evidente que os preços iriam cair naturalmente, como é da tradição e se os preços internacionais permitirem. Então, deverão comemorar uma aparente consequência sem relação de causalidade com a política do Governo. Portanto, comemorarão um evento que nós, economistas, tecnicamente chamamos de correlação espúria!
O fato é que o leite é o produto com preços mais distorcidos do agronegócio mundial. Por outro lado, o setor de Leite e Derivados é o mais atrasado em termos de organização, dentre as grandes cadeias produtivas do agronegócio brasileiro. E isso é consequência! Afinal, ter de lutar contra os artificialismos do comércio de lácteos e contra as discriminações de políticas públicas tira toda a energia do setor. Então, basta apenas mais uma sinalização de interferência discriminatória contra o setor, como atual, para que a desmotivação tome conta e comece a desestabilizar todo o processo de tentativa de organização da cadeia.
É muito bom que setores do Governo estejam muito empenhados em atuar junto a esta cadeia, que reúne o maior contingente de pobres do meio rural brasileiro. É inegável o belíssimo esforço que tem sido feito para tornar o crédito acessível via Pronaf. É mais que oportuna a decisão de apoiar a transferência de tecnologia, com o anúncio da criação da ANATER. É muito sólido o resultado obtido com os programas de aquisição de alimentos e de merenda escolar... Enfim, todas estas políticas públicas são essenciais, inteligentes e focadas... Mas, corremos o risco de ter o resultado de tudo isso anulado com a notícia de que o passado que não deu certo pode estar se transformando no espelho do futuro próximo!