A discussão em torno da bebida láctea sem sabor, trazida à tona pela proposta de alteração do Regulamento Técnico de Identidade, visando, entre outros itens, limitar o mínimo de proteína, colorir dois terços da embalagem com a cor laranja e incluir um corante na bebida, tornando mais clara a sua diferenciação do leite puro, tem ocupado boa parte do debate envolvendo produtores e indústrias nos últimos dias.
As entidades que representam as indústrias, como era esperado, protestaram frente à proposta apresentada em reunião da CNA, argumentando que tal procedimento estaria estigmatizando o produto, impedindo a competição e limitando o lançamento de bebidas mais em consonância com o reduzido poder aquisitivo do brasileiro (clique aqui para ler o artigo assinado pelos dirigentes das entidades). De acordo com a indústria, melhor para o setor que o consumidor compre a bebida láctea, que afinal contém em sua totalidade ingredientes lácteos, do que se abasteça com suco de laranja ou refrigerantes, argumento difícil de ser refutado, caso este efeito de substituição de fato ocorra como colocado.
A discussão em torno da bebida láctea sem sabor se dá por não ser claro para muitos (incluindo o consumidor, argumentam as entidades de produtores) se esta representa uma nova categoria, uma alternativa láctea ao consumo de bebidas concorrentes, ou se representa simplesmente um substituto ao leite, comprado até por engano, porém de pior valor nutricional e contribuindo para a redução dos preços por parte de quem não utiliza o produto. Como o posicionamento do produto no mercado (embalagem, termos utilizados, etc) em muito se assemelha ao leite, além da ausência de marketing de massa esclarecendo do que se trata, dá-se razão a quem acredita na substituição pura e simples do leite. Daí a proposta, adequada ou não, de corrigir esta possível confusão, que não deve ser de interesse de ninguém que trabalha com seriedade no setor: como consumidor, ficaria bastante irritado (com o supermercado, com o fabricante) ao descobrir que comprei gato por lebre. Nesse aspecto, seria muito oportuno se tivéssemos à disposição uma pesquisa junto ao consumidor para saber de maneira mais concreta o que motiva o consumo destes produtos. Isso evitaria posições parciais e facilitaria a busca por soluções. Pode até ser que o bicho não seja tão feio como parece.
Um ponto convergente, que em si representa uma evolução, é que todos são a favor da utilização do soro de leite (ou soro de queijo, como é utilizado na língua inglesa). Como exposto no artigo escrito pelo presidente da Comissão de Pecuária de Leite da CNA, ninguém prega o descarte do soro (clique aqui para ler o artigo). A questão é como utilizá-lo da melhor forma possível, de modo a maximizar o valor obtido pelo produto.
Antes de entrar nesta questão, é importante reconhecer que o argumento relacionado à falta de renda da população, que vem tendo seu já reduzido poder de compra ainda mais achatado, de fato é válido e justifica que a indústria sempre busque soluções mais econômicas e que façam com que o consumo de lácteos aumente a despeito da conjuntura desfavorável.
Porém, se a busca pelo menor custo fosse a única variável, ainda teríamos os saquinhos de plástico dominando o mercado de leite fluido, exatamente o oposto do que ocorre hoje, com inegável predomínio do leite longa vida, com processamento e embalagem sabidamente mais caros. Sob esta ótica, não parece um contra-senso que, ao darmos ao consumidor soluções mais atrativas e convenientes no que se refere à embalagem e apresentação, tenhamos de oferecer uma solução "mais em conta" justamente no conteúdo? Ou o conteúdo é o que menos importa?
Mais do que a questão da renda, já reconhecida como importante, este episódio revela como ainda somos incipientes na valorização do nosso produto. Enquanto a argumentação reside no aproveitamento de um resíduo poluente de rios e na falta de renda da população, tornando interessante o uso de um produto que custa R$ 0,06 o litro, veja o que diz a matéria "15 maneiras de comercializar o soro", reproduzida do site www.extraordinarydairy.com, que tem a proposta de trazer soluções para a indústria de lácteos, visando agregar valor.
Eliminar as velhas abordagens das proteínas do soro e valorizá-las pela incrível substância que realmente são foram as palavras de Mike Niehues durante o Encontro Anual de 2003 do Institute of Food Technologists (IFT), em Chicago, EUA. Ele revelou como promover a proteína do soro a indústrias de alimentos como solução para os atuais desafios de consumo.
"Iniciemos pela derrubada da linguagem do produto. Logicamente, proteína do soro é produzida na fabricação de queijo e caseína", disse Niehues. Mas esta é uma maneira antiga de olhar para o soro.
O pessoal de marketing poderia divulgar como os atletas têm adotado proteína do soro e promover seus benefícios para todos os consumidores, incluindo crianças e pessoas em dietas especiais, indicou Niehues: "Atletas podem cumprir um papel significativo na popularização desses ingredientes para o grande público".
Ele elencou alguns pontos enfatizando as propriedades nutricionais, farmacêuticas e funcionais do soro. Entre os benefícios a serem transmitidos aos consumidores, citou o cálcio para construção óssea e dos dentes - em 100 gramas de proteína de soro concentrada, há 500 mg de cálcio -; a sensação de saciedade proporcionada pela substância; a lactose, açúcar natural com baixo índice glicêmico relativo, benéfico para portadores de diabetes; aminoácidos de cadeia rarmificada, que ajudam na construção muscular, auxiliam no seu metabolismo e reduzem a fadiga; e uma alternativa para reposição de gordura e carboidrato.
Indicou também vantagens para o mercado de fabricantes de alimentos, ressaltando propriedades do soro como nutriente, seu sabor, textura, blending, emulsificação, adesão, solubilidade, aceitação e aumento dos atributos sensoriais em produtos como os cárneos.
De acordo com Niehues, os consumidores estão mais conscientes quanto a saúde e nutrição, mas não estão dispostos a sacrificar sabor e textura. A proteína do soro teria muito a oferecer. "Precisamos conversar sobre isso. Educá-los para isso", incentivou.
Ou seja, o soro é precioso! Aí está a diferença: enquanto nós identificamos como principal vantagem do soro a sua porção líquida, como ingrediente barato, que contém 95% de água, os americanos o valorizam exatamente pelo oposto, os 5% de nutrientes que podem ser explorados com valor agregado infinitamente superior, como ingrediente saudável para atletas, saciador de apetite, possuidor de propriedades farmacêuticas, etc.
Os exemplos de não valorização da qualidade e de não otimização do valor agregado proliferam não só no leite, mas também em outros produtos de nossa agropecuária. Basta lembrar do café, que somente recentemente abriu caminho para produtos premium, da carne bovina, idem. Voltando ao leite e à proposta de identidade da bebida láctea, não seria interessante se fosse criado um selo do tipo Leite Puro, a ser utilizado nas embalagens dos leites convencionais, não acrescidos de soro? Claro que isso teria diversas implicações e desafios operacionais, mas o objetivo aqui é muito mais passar o conceito de que raramente buscamos soluções que valorizem nossa matéria-prima, mesmo quando temos esta intenção.
Creio que devemos pensar nisso para que, no futuro, possamos ter os lácteos cada vez mais valorizados. Não sou contra a bebida láctea sem sabor como solução de curto prazo, desde que devidamente identificada (caso haja confusão significativa pelo consumidor, o que não sabemos hoje pela ausência de informações isentas). Porém, comparando com o que vem ocorrendo lá fora, devemos reconhecer que definitivamente não estamos fazendo o melhor uso deste ingrediente para maximizar a receita das indústrias e dos produtores e, de forma semelhante, não estamos caminhando no sentido de valorizar, junto ao consumidor, os produtos lácteos.