A primeira oportunidade foi o evento Leite Competitivo, que organizamos em fevereiro último e que abordou a questão em São José do Rio Preto, SP, talvez o epicentro da expansão da indústria sucro-alcooleira. A outra foi nessa semana, em apresentação muito consistente feita pelo produtor Roberto Jank, em reunião da Leite Brasil.
Um primeiro aspecto é que a área de cana vai crescer, sem sombra de dúvida. O etanol é a principal matriz energética limpa em um ambiente que se direciona cada vez mais para o controle da emissão de gases. E o Brasil é o país, no mundo, com a maior capacidade de produção de etanol a custos muito competitivos. Para se ter uma idéia dessa competitividade, basta dizer que, mesmo com o câmbio do jeito que está, conseguimos produzir etanol de cana a um custo de US$ 0,22/litro, quando o concorrente mais próximo, o etanol de milho no EUA, que tem aquecido os preços do grão no mercado mundial, não sai por menos de US$ 0,30/litro, 36% mais caro. Em outras palavras, o câmbio que tem afetado demais o agronegócio como um todo, leite inclusive, ainda gera margem de competitividade para o etanol, o que ajuda a explicar o frisson e os investimentos em torno desse segmento.
Mas não é só isso. A competitividade tende a melhorar ainda mais, pois a possibilidade de hidrólise de celulose do bagaço de cana para produção de álcool pode aumentar a produtividade por área em 50%, a partir dos atuais 6.500 litros/ha/ano. Não é pouca coisa.
Portanto, a cana vai crescer. Quanto? Hoje, existem pouco mais de 6 milhões de hectares de terra para cana, sendo que cerca de 3 milhões são destinados à produção de etanol. Algumas estimativas apontam que, em um espaço de 10 anos, seriam necessários mais 6 milhões de hectares (leia artigo sobre essa expansão clicando aqui ). Em uma primeira análise, não é uma área significativa considerando que temos 340 milhões de hectares agricultáveis, sendo cerca de 100 milhões ainda disponíveis. Porém - e concordo com o Roberto em sua apresentaçao - é preciso cuidado nessa conclusão, por uma série de razões, a começar pela geografia do crescimento.
Ao analisarmos as regiões em que mais cresce a cana-de-açúcar (ver figura 1), fica evidente que tanto os projetos existentes como as novas usinas se localizam principalmente no Oeste Paulista, Norte do Paraná, Triângulo Mineiro, Goiás e Mato Grosso do Sul, regiões que concentram também parte muito significativa da produção de leite, especialmente no Triângulo Mineiro e sul de Goiás, conforme ilustra a figura 2, apresentada pelo Prof. Alexandre L. Mendonça de Barros, no evento Leite Competitivo.
A figura 3 mostra a localização de alguns dos novos projetos de laticínios no país, ficando claro a confluência das duas atividades, a exceção do RS, que concentra investimentos em leite, mas não ainda em cana. Sendo mais claro, a cana cresce onde o leite está hoje e, mais do que isso, onde o leite espera crescer, se considerarmos que a localização de novos laticínios tem como base uma expectativa de oferta de leite no futuro.
Figura 1. Plantas atuais (em preto) e novas plantas (em amarelo). Fonte: NIPE-UNICAMP, adaptado de apresentação de Roberto Jank
Figura 2. Concentração da produção de leite, a partir dos dados do IBGE.
Figura 3. Localização de novos laticínios ou ampliações de laticínios existentes (Elaboração: MilkPoint)
Portanto, a cana-de-açúcar não crescerá nos grotões desse Brasil afora, mas sim nas regiões com melhor infra-estrutura, com boa topografia, solo corrigido, estradas, ferrovias e perto dos centros consumidores. Onde há também muito leite. A logística é um aspecto crucial nessa cultura, tanto que os arrendamentos variam significativamente em valor a medida que se afasta da destilaria; tanto que quando uma nova planta é constituída, todo o entorno tende a ser afetado, pois é necessário suprimento em larga escala e com boa logística.
Resta saber, portanto, se o leite poderá fazer frente à cana-de-açúcar. Hoje, consegue-se arrendar para cana-de-açúcar no Oeste de SP a valores entre R$ 800 e R$ 1000/hectare/ano. Ao contrário do que ocorre com outras culturas, em função da necessidade de logística favorável, mesmo áreas muito pequenas, como 2 a 3 hectares, são arrendadas, o que afeta a produção de leite, em grande parte baseada em pequenas áreas.
Mas o arrendamento não é a única alternativa. Se o produtor quiser renda ainda maior, pode se tornar fornecedor, se responsabilizando pelo plantio e condução da cultura, tendo um prêmio de até cerca de 2,5 vezes esse valor. E já surge toda uma infra-estrutura de serviços para viabilizar essa tarefa: equipes terceirizadas de plantio, colheita, tratos culturais, facilitando a vida do produtor e reduzindo seus riscos.
É possível obter com o leite mais do que esses valores? Como vimos no evento Leite Competitivo, sim, é possível e há exemplos disponíveis. Para isso, é preciso alta produtividade por área. Uma lucratividade de R$ 2.500/ha/ano, por exemplo, equivale a R$ 0,10/litro de margem, a 25.000 litros/ha. Impossível, não é. Difícil e trabalhoso, sem dúvida. Entra aqui o custo de oportunidade do trabalho e os riscos envolvidos. É compreensível que um produtor opte racionalmente por uma atividade que permita a mesma remuneração, ou até um pouco menos, desde que tenha menos trabalho e riscos associados. Logicamente nem todos tomarão essa decisão, mas seria esperado se boa parte o fizesse.
O leite vai então ser empurrado para outras áreas, como apontou a enquete recém feita pelo MilkPoint (leia matéria sobre a enquete clicando aqui), em que 66% dos votantes acreditam nesse desfecho? Ou, como optaram 30%, é possível competir, desde que de forma intensificada e com profissionalismo?
Antes disso, é necessário ponderar que essa análise está sendo feito em um momento de extremo otimismo e até certa euforia com a produção de etanol. Hoje, o produto não é ainda uma commodity globalmente comercializada e tem havido oscilações de preços ainda difíceis de se manejar. Há quem diga que nesse ano sobrará álcool no mercado, reduzindo os preços. Assim, é preciso alguma cautela antes de achar que estamos diante do novo Eldorado (mesmo porque o Eldorado é lenda...). Também, a enquete talvez tenha omitido uma alternativa a ser explorada: a da consorciação das atividades, seja pelo plantio de culturas anuais (principalmente leguminosas) em áreas de reforma, que poderiam ser usadas para alimentar os animais, seja pela maior disponibilidade de bagaço de cana que poderia ser retornada ao produtor de leite/carne, inclusive prevista hoje em vários contratos de arrendamento, seja pela diversificação, com redução de riscos, intensificando parte da área com a produção de leite e arrendando o restante para cana.
De qualquer forma, considerando as hipóteses testadas na enquete, acredito que ambas as tendências estão corretas. Haverá uma pressão nas áreas tradicionais, sujeitas à forte concorrência com a cana, para a profissionalização, como apontou o Prof. Luiz Gustavo Nussio no evento Leite Competitivo. Conforme mostrou o Roberto, a citricultura paulista, líder mundial, também vem sentindo os efeitos: perdeu 30% da área e dos produtores, mas não produção: a produtividade cresceu de forma a manter a competitividade com a cana, pelo menos até agora. Paralelamente, considerando o potencial de crescimento da produção brasileira de leite e as tendências mundiais para o mercado de lácteos, é esperado que haja expansão da atividade em novas áreas, onde o custo de oportunidade é mais baixo. Vale lembrar que, em muitas dessas áreas, o fator fundiário e social também exerce seu papel: como tem dito o Prof. Luis Fernando Laranja, parece haver uma correlação muito forte entre crescimento da produção de leite e reforma agrária, dadas as características semelhantes ao assalariamento representadas pela pequena produção de leite.
Portanto, não será surpresa se, em algumas das principais regiões produtoras, o leite passe por uma profunda reestruturação, com redução do número de produtores e aumento da produtividade. Se esse será um processo no final das contas bem sucedido, vai depender de aspectos como a valorização desse leite por parte dos compradores (é possível destiná-lo a produtos frescos, que requerem consumo imediato e leite de alta qualidade?), o estabelecimento de relações de mais longo prazo entre compradores e fornecedores de leite e a própria situação de mercado do produto concorrente, no caso a cana-de-açúcar. Embora não seja objetivo desse artigo, há que se considerar também o posicionamento do governo em relação à questão: até que ponto a concentração em uma única atividade, que tende a liberar grande contigente de mão-de-obra, é a melhor alternativa, considerando-se os impactos sociais? É possíve, ou desejável, fazer algo no sentido de fomentar um maior equilíbrio nesse processo, estimulando atividades socialmente mais estruturantes, como o leite, que gera muito emprego e renda? Essa é uma outra questão, que mereceria uma discussão mais ampla.
Governo a parte, acredito que a indústria de laticínios está diante de um significativo desafio: como garantir o suprimento de leite para suas plantas localizadas nas regiões onde a cana cresce? A imagem que me vem à cabeça é daqueles navios encalhados na areia, em locais que antes abrigaram lagos. Estamos longe disso ainda, mas se não houver ação nesse sentido, há o risco real de ter de se buscar leite distante, pagando um frete que pesará na competitividade final da indústria. Ou desativar indústrias, algumas delas recém construídas. O que efetivamente vem sendo realizado nesse sentido?