A Rússia, um dos grandes produtores de leite, apresenta estagnação da produção, assim como a União Européia, responsável por 25% da produção mundial de leite. A Austrália, em função de secas, também patinou na produção nos últimos anos. Por isso e pelo fato do Brasil já ser um grande produtor mundial, o crescimento da produção de leite não deve ser menosprezado.
Figura 1. Crescimento da produção de leite nos últimos 25 anos no Brasil (Fonte: IBGE, elaborado por Equipe MilkPoint)
Na semana passada, após uma palestra a respeito das tendências de mercado, um produtor me questionou a respeito desse crescimento. Segundo ele, o contínuo e significativo crescimento verificado nos últimos anos não era motivo de comemoração, uma vez que representava muito mais a falta de opção econômica do que a atratividade real da atividade. Ele argumentou ainda que quanto mais tecnificado o produtor, maior o prejuízo, e que a quantidade de leilões de liquidação de rebanhos era uma prova de que a atividade não ia bem, uma vez que os liquidantes são via de regra produtores tecnificados.
Essa argumentação tem em parte origem na percepção do leite ser uma atividade marginal, que cresce onde nada mais pode ser explorado. O escritor (e humorista) Eduardo de Almeida Reis, definiu em um de seus livros o que configura uma bacia leiteira. Segundo ele, uma região que não se presta a nenhuma outra atividade agrícola tem todas as condições para se tornar uma "bacia leiteira".
Tirando os exageros, parte da argumentação do produtor descontente com a minha visão positiva a respeito do crescimento da atividade, procede. Vamos estudar a hipótese de que, em muitas regiões, a atividade leiteira cresce mais pela falta de opções do que pela criteriosa seleção, entre várias alternativas disponíveis e viáveis.
É plausível considerar que o leite é uma boa alternativa quando se pensa em um pequeno produtor disposto a trabalhar e que não tenha muito capital para investir. Pode ser explorado em pequenas áreas, apresenta baixo risco comercial (sempre haverá por perto alguma linha de leite), o risco tecnológico nos sistemas a pasto é reduzido (compare com horticultura ou fruticultura intensivas), o fluxo de caixa mensal é atraente e há emprego de mão-de-obra familiar, representando uma forma interessante de ocupação e renda para a população rural. Isso ocorre nas regiões oeste do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, assim como no norte do Mato Grosso e outras fronteiras. A Figura 2 mostra o crescimento de 1994 a 2004 da produção em diversos estados, ficando claro que o desempenho dos estados de fronteira é maior do que o dos estados mais tradicionais como SP e MG.
Figura 2. Crescimento porcentual da produção de leite de 1994 a 2004 (Fonte: IBGE, elaborado por Equipe MilkPoint)
O crescimento desse produtor de pequeno porte, muitas vezes utilizando mão-de-obra familiar, embute uma distorção, representada pelos custos desta mão-de-obra que não é encarada pelo produtor como um desembolso, mas sim como a sobra ou lucro da atividade.
Os dados do Diagnóstico do Leite em MG trazem boas informações a esse respeito. Analisando-se os vários estratos de produção, concluiu-se que nos estratos de menor volume de leite por dia o uso de mão-de-obra familiar é maior (61,51% em produtores abaixo de 50 litros x 44,64% em produtores com mais de 1000 litros diários). Nesses estratos de menor produção, o custo operacional efetivo, ou seja, o desembolso ou custeio por litro de leite, é muito menor, como mostra a tabela 1. Por outro lado, o custo total, ao se incluir mão-de-obra familiar, depreciações e juros sobre o capital investido, fica bem superior para os produtores de menor volume de leite. O efeito prático disso é que, no curto prazo, se esses produtores receberem valores que cubram o desembolso, por exemplo R$ 0,30/litro de leite, de acordo com os dados de 2005, permanecerão na atividade, às vezes com a ilusão de estar ganhando dinheiro. O mesmo valor recebido por um produtor de grande porte, que além de tudo tende a ser mais tecnificado, isto é, com mais despesas variáveis (logicamente visando maior produtividade) não é suficiente para remunerar as despesas correntes, sendo desestimuladora à produção. Em outras palavras, o leite cresce em determinadas regiões e situações porque a contabilidade correta do ponto de vista econômico não é adotada.
Esse processo pode estar sim na raiz de parte do crescimento do leite, especialmente em regiões não tradicionais, onde a atividade é marcadamente familiar ou extensiva. Antes de darmos então razão aos argumentos do nosso produtor, vale a pena refletir um pouco sobre a questão. Pois bem, o leite cresce nas fronteiras pela falta de opção. E daí?
Dois países - China e Índia - cuja economia mais cresce no mundo, hoje celebrados em qualquer artigo sobre globalização, tem como base de suas vantagens comparativas uma enorme oferta de mão-de-obra que se dispõe, pela falta de opção, a trabalhar em troca de salários (sob nossa análise) baixos e em jornadas exaustivas em indústrias, resultando em produtos de baixo custo que são exportados para os quatro cantos do mundo. Pode-se argumentar que os salários são reduzidos e que as condições de trabalho muitas vezes são desumanas e que o ideal seria salários maiores e melhores condições de vida, mas o fato concreto é que esses milhões de trabalhadores estão em melhor situação hoje do que antes, quando não dispunham dessa opção. Muitas das críticas nesse sentido, inclusive, vêm de países que estão perdendo mercado, sendo os argumentos às vezes mais baseados em um protecionismo disfarçado do que em uma preocupação genuína com as condições de trabalho.
Em última análise, a falta de opção é um dos aspectos que tem feito China e Índia crescerem suas economias a taxas muito elevadas, assim como a falta de opção pode ter ajudado o leite brasileiro crescer, a ponto de ter injetado algo próximo a R$ 850 milhões a mais na economia somente no elo produtivo, em 2005, considerando um preço médio de R$ 0,50/litro. O leite, assim, passa a ser uma opção relevante para um grupo considerável de produtores rurais.
Tabela 1. Custos de produção de leite por estrato de produção (adaptado de Gomes, 2006)
COE = Custo operacional Efetivo; COT = Custo Operacional Total; CT = Custo Total
Mesmo reconhecendo que esta realidade tem sua parcela de responsabilidade no crescimento da produção, conferir a ela todo o crescimento é ignorar uma parte importante das mudanças que vêm ocorrendo no mercado. Primeiro, há produtores tidos familiares e de pequeno porte que estão produzindo com emprego de tecnologia e tendo lucro econômico, a ponto de competir com outras atividades. Estive recentemente no noroeste de SP e pude ver essa realidade. A leitura da entrevista de Artur Chinelato e André Luiz Novo, aliás recordista em cartas, também sinaliza isso (Clique aqui para ler).
Além disso, há também um outro aspecto que explica o crescimento da atividade, agora no grupo dos maiores produtores. Com a granelização e preocupação crescente com qualidade do leite, a disparidade de preços entre produtores aumentou, abrindo oportunidades para produtores de maior volume de leite e qualidade superior. No Boletim do Leite de junho/julho de 2006, do CEPEA/USP, verifica-se que no Rio Grande do Sul, por exemplo, os preços máximos atingiram R$ 0,553 ao passo que os mínimos, R$ 0,376 por litro. Há produtores de grande porte recebendo hoje algo em torno de R$ 0,65/litro de leite, isso quando os preços médios no Brasil estão na faixa de R$ 0,50/litro de leite. Essas diferenças de preços refletem os menores custos de transporte, os menores custos operacionais, a qualidade, a localização do produtor e o poder de negociação, entre outros. O ponto em questão é que à medida que o mercado diferencia produtores, o preço médio acaba ficando distante da chamada "moda", para utilizar o termo matemático correto. Quem recebe o leite nas faixas superiores está em outro negócio em comparação a quem está na base da pirâmide de preços.
Um termômetro de que os grandes produtores estão acreditando na atividade é o levantamento Top 100 do MilkPoint (clique aqui para ler). Desde que começou a ser realizado, em 2001, vemos ano a ano um aumento considerável da produção média e a intenção mais ou menos constante de cerca de 70% dos produtores em elevar a produção no ano seguinte. Ora, não se investe em uma atividade que não apresente potencial de retorno econômico - estes produtores não carecem da falta de opção de investimento!
Os leilões de liquidação são sempre utilizados como indicativo da permanente crise do setor. É preciso cautela ao analisar essa informação, pois os leilões acabam tendo visibilidade muito maior do que o número proporcional de leite que é perdido através deles. Há uma mudança de mãos, os animais não são enviados ao abate. Os leilões representaram e ainda representam um processo de transformação da atividade. Muitos dos que liquidaram eram produtores de leite de outra época, época em que era possível conduzir o negócio à distância e com índices de produtividade incompatíveis com uma atividade bem conduzida. Analisando as opções existentes, o valor da terra e o custo de oportunidade de seu trabalho e capital, optaram por encerrar a atividade, dando lugar a outro tipo de produtor. Hoje, minha percepção é que há muitas centenas de produtores de mil, dois mil, três mil litros de leite que estão investindo na atividade, silenciosamente. Vários laticínios em regiões tradicionais aumentaram a captação nos últimos anos apesar de terem reduzido o número de fornecedores.
A conclusão do artigo não é que o leite cresce porque está bom para todos. Sem dúvida a atividade passa ciclicamente por crises, como quase todas as commodities que operam em livre mercado. Sem dúvida nem todos estão e sempre estarão satisfeitos com a atividade. Sem dúvida muitos vão deixar de produzir leite nos próximos anos. Como qualquer atividade submetida à concorrência, o mercado não comportará a todos. Mas o fato é que o leite tem sido uma atividade interessante para distintos perfis de produtores, sendo prova disso a produção crescer a taxas consideráveis há anos, devendo continuar assim por um bom tempo ainda, desde que consigamos colocar essa produção no mercado.
PS: A propósito, a Índia é a maior produtora de leite do mundo, com cerca de 96 bilhões de litros de leite produzidos a partir de uns 70 milhões de produtores. A produção média é de 4 kg por produtor/dia e o pagamento é feito diariamente ao produtor, mediante a entrega e pesagem do leite. Segundo a FAO, a Índia é o país com maior crescimento previsto na produção de 2002 a 2010, com acréscimo de 27 bilhões de litros. O Brasil é o segundo do ranking, com mais 9 bilhões