O oposto, porém, pouco ocorreu. O norte-americano sempre foi bastante fechado em relação a conhecer e investigar outras realidades em produção de leite (e talvez em outras áreas também), o que até seja algo natural e compreensível, dada a pujança da economia do país e a própria produção científica no setor, fazendo os EUA parecer um "mundo dentro do mundo".
Tem-se, portanto, um país que teve um crescimento espetacular de produção de leite e eficiência produtiva da vaca e que irradiou tecnologia para grande parte do mundo. No entanto, essa evolução teve uma contrapartida: descarte elevado, acima de 35% das matrizes ao ano e custos de produção não competitivos quando comparados a outros países importantes (Nova Zelândia, Austrália, Argentina, Uruguai, Brasil, para ficar nos mais mencionados), indicando que existe um outro lado dessa moeda, e que parece estar cobrando seu preço hoje.
É o que parece sugerir a edição de dezembro passado da revista Hoard's Dairyman, a principal do setor nos EUA e que foi fundada em 1885 (!), tendo acompanhado e participado da evolução da cadeia do leite nos EUA, até atingir o ponto atual.
A primeira matéria que me chamou a atenção foi o artigo do renomado nutricionista Mike Hutjens, da University of Illinois. O Dr. Hutjens, que já esteve no Brasil algumas vezes (a primeira foi no 1º Interleite, em 1994), é um dos principais responsáveis pelo grande salto de produtividade das vacas americanas, uma vez que tem grande conhecimento em nutrição, é colunista da revista há muitos anos, é extensionista de mão cheia e palestrante de primeira qualidade. Formulação de dietas para rebanhos confinados, rações completas e aditivos são a sua especialidade.
Pois o Dr. Hutjens escreveu um artigo sobre a produção de leite na Nova Zelândia, onde esteve participando de eventos e de um treinamento para técnicos. Ele começa observando que o preço do leite na Nova Zelândia caiu nesse ano de US$ 0,197/kg de leite para US$ 0,141/kg e que ainda assim a atividade é viável, um alerta a seus patrícios, que dificilmente se viabilizam produzindo leite a menos de US$ 0,28/kg. Ele comenta também a já conhecida eficiência de produção de leite na Nova Zelândia, baseada na produção de componentes por área, à base de pastagens e de animais de porte menor, com o mínimo de investimentos e de mão-de-obra. Comenta também que o sistema tem lá seus pontos fracos, como o período de lactação de 220 dias e que há uma tendência de aumento da suplementação em determinados períodos estratégicos (inclusive de uma ração completa parcial), especialmente na Ilha do Sul, onde a produção de leite está crescendo mais, fruto de terras mais baratas e menor custo de oportunidade. Diz o Dr. Hutjens: "a população de vacas na NZ atingiu 3,5 milhões de animais, com meta de 5 milhões para os próximos 5 ou 8 anos (....) o leite dá dinheiro, é uma atividade agrícola economicamente viável e está substituindo a ovinocultura na Ilha do Sul".
Ele nota ainda a diferença da concentração de componentes no leite, entre a Nova Zelândia e os EUA: 4,2% de gordura na NZ x 3,7% nos EUA; 3,4% de proteína na NZ x 3,2% nos EUA. Ele observa que as fazendas na NZ estão aumentando o número de vacas, com exemplos de 900 a 1200 vacas em lactação, sem investimento em instalações, manejo de esterco ou depósitos para alimentos, fazendo com que o custo de produção seja baixo e avisa os produtores americanos: apesar dos desafios relativos ao aperfeiçoamento do sistema de produção, a indústria leiteira da Nova Zelândia está viva e é competitiva no mercado mundial.
Bem, considerando que raramente são publicadas matérias sobre a produção de leite em outros países nessa e em outras revistas do gênero nos EUA, e considerando que o Dr. Hutjens é um dos especialistas do setor, esse artigo pode ser um sinalizador de que o país está começando a se interessar mais sobre que existe do outro lado do muro (nota-se que, em outras atividades agrícolas, isso já vem acontecendo. Há algum tempo o produtor norte-americano de soja se interessa pelo Brasil, sendo comuns as caravanas de produtores que hoje visitam o Centro-Oeste).
Mas não foi a única menção que a revista trouxe de que talvez a coisa tenha ido longe demais no caminho da máxima produção por vaca. O editorial diz textualmente: "os antigos planos de pagamento do leite e a "corrida de cavalos" pela maior média de produção de leite nos fez enamorar pelo volume de leite. Foi fácil obtê-lo, aumentando o concentrado. (...) Se tivéssemos focado em componentes, nossas vacas e nossas contas bancárias estariam melhores hoje.". Subsidiando o editorial, a revista traz uma mesa redonda entre quatro produtores que, ao decidirem trabalhar com dietas com teor de forragem mais alto, estão mais felizes hoje, reportando menor custo de alimentação, menor utilização de mão-de-obra, melhor saúde do rebanho, maior longevidade das vacas, maior teor de componentes, melhor reprodução e menor gasto de medicamentos.
Não bastando a análise crítica proveniente da comparação entre sistemas de produção, há forças de mercado que forçam uma análise ainda mais profunda da forma de produzir leite nos Estados Unidos. Na Califórnia, Estado de maior produção de leite nos Estados Unidos, foi recentemente lançada uma campanha de valorização de queijos, mostrando como as vacas leiteiras são felizes e vivem em um ambiente confortável na Califórnia. Alguns exemplos dos temas utilizados pela campanha seguem abaixo (veja mais em www.realcaliforniacheese.com).
A campanha suscitou protestos de entidades que combatem a produção animal, como o incômodo P.E.T.A., já mencionado aqui (aquele mesmo que protestou no desfile da Gisele Bündchen), sob o argumento de que a propaganda era enganosa: a grande maioria do leite produzido na Califórnia em nada se assemelha às imagens que são passadas na campanha. Talvez fosse a forma como os californianos gostariam de produzir leite ...
A própria Hoard's Dairyman, em seu editorial, comenta: "A campanha das "vacas felizes" da Califórnia está dando o que falar. Os expectadores da TV observam vacas contentes em pastagens verdejantes e em estábulos rústicos. Os céticos se perguntam: não seria propaganda enganosa ? Afinal, apenas 10% dos rebanhos da Califórnia têm acesso ao pasto. (...)."
É interessante notar que todas as observações foram feitas a partir do contéudo da Hoard's Dairyman, uma publicação tradicionalíssima dos EUA, impressa em papel jornal e com a mesma cara há anos (só tenho os últimos 15 anos, sem alterações no layout e na proposta editorial). Ao mostrar que os extensionistas norte-americanos estão interessados em discutir a produção de leite em sistemas distintos como na Nova Zelândia, ao sugerir que talvez tenham ido muito longe na exploração da produção individual do animal e ao tentar associar a produção de leite a um ambiente com apelo crescente por parte do consumidor, mas que em pouco se assemelha à realidade (e reconhecer a inadequação desta associação), a produção de leite norte-americana parece avaliar-se, como se estivesse em um divã.