Não deixa de ser surpreendente uma atividade tida como pouco atrativa, em um estado considerado por muitos e pela estatísticas oficiais como carta fora do baralho no cenário futuro da produção de leite, reunir esse contingente de pessoas do país todo, para uma única sessão de palestras e debates sobre a sustentabilidade da atividade frente ao avanço de alternativas atualmente muito rentáveis. A surpresa foi tanta que o auditório lotou, superando as estimativas mais otimistas a respeito do público que compareceria ao evento.
Mas a surpresa não pára por aí. Em contraponto ao que normalmente se vê em eventos dessa natureza, ainda mais em São Paulo, o tom não foi de reclamação geral mas sim da busca de alternativas, fruto, é bom que se diga, do ótimo trabalho feito pelos palestrantes, que trouxeram visões realistas mas estimuladoras a respeito do que pode ser feito. Um participante me comentou, ao final do evento, que o astral foi muito positivo, em nada lembrando a choradeira que caracterizou a produção paulista nos últimos anos. E isso, lembremos, logo após um ano em que os preços do leite ficaram 8% mais baixos do que no ano anterior, sem considerar a inflação no período.
Esse exemplo nos mostra que há algo de novo acontecendo nesse setor, embora com menor visibilidade do que mereceria; casos de sucesso, técnicos afiados com as questões de mercado, produtores com uma visão pró-ativa. Isso, mesmo em regiões tidas como "decadentes".
Outro exemplo igualmente surpreendente. 29 de dezembro, Fórum Técnico de genética aqui do MilkPoint. Francesco Iaciancio, italiano, coloca lá da Itália a mensagem abaixo para ver se colheria alguma informação útil ao seu projeto:
Nos primeiros 3 dias, nenhuma resposta. Também, pudera, festas de final de ano, etc. No dia 02/01, a primeira postagem. Hoje, menos de 2 meses após, nada menos do que 73 mensagens (uma delas vindo do Diethelm Hammer, direto da Alemanha!) discutindo a melhor raça, índices de produtividade, sistemas de produção e por aí vai. Recorde absoluto do site. Não deixa de ser simbólico que a mensagem original tenha versado justamente sobre como começar a atividade leiteira, tendo gerado intensa discussão sobre a melhor forma de fazê-lo, tendo envolvido pelo menos 3 nacionalidades.
Quem quiser acompanhar a discussão que ainda rola, basta clicar aqui
Por fim, um terceiro exemplo. O penúltimo artigo de Paulo do Carmo Martins (clique aqui para ler), comentando a respeito do excesso de leite previsto para o Brasil, no futuro, e que gerou, além de recorde de leituras, nada menos do que 32 cartas, grande parte delas carregando não o antes tradicional tom lamurioso, mas sim a pró-atividade que envolve a necessidade de se fazer algo a respeito desse cenário.
Esses três exemplos quase que simultâneos nos oferecem uma oportunidade para refletir sobre alguns aspectos. Além das mudanças de percepção que vêm ocorrendo e que já foram comentadas, é sempre interessante constatar como a busca e a troca de informação é algo inerente ao setor, seja aqui, na Itália ou na Alemanha. Sou obviamente suspeito para falar, mas aposto que o leite é o segmento do agronegócio com o maior número de eventos, revistas, dias de campo, etc.
Parte dessa profusão de fontes de informação vem do fato justamente de... ser possível começar uma atividade leiteira em Goiás de diversas maneiras, com mais de uma raça, sistema de produção e escala e, mesmo assim, gerar valor, dentro da realidade de cada um! Essa amplitude de possibilidades contribui não só para que se intensifique a discussão - afinal, se apenas um modelo já conhecido fosse viável, não haveria muito a se comentar - mas também gera oportunidades para o empreendedorismo dentro do setor, criando novas soluções a partir dos conhecimentos técnicos, do mercado e da experiência de cada um. De certa forma, o leite permite como poucas atividades no agronegócio, ainda que muitas vezes surjam aberrações técnicas, a expressão da capacidade de inovação e adaptação das pessoas.
Claro, muitas vezes esse empreendedorismo é nutrido não só pela busca de melhores resultados técnicos e econômicos, mas também pelas preferências pessoais. Não por acaso a mensagem do Francesco tinha como questionamento principal a raça a ser explorada, prato cheio para discussões que vão muito além dos conceitos puramente técnicos, mas sim das preferências e experiências de cada um. Leite, não se pode esquecer, é uma atividade que estabelece uma relação mais do que simplesmente econômica com seus praticantes. Lógico que não se pode pensar em permanência na atividade em situação de prejuízo constante, mas, no caso do leite, a saída da atividade muitas vezes exige mais do que a existência de outras atividades mais rentáveis à disposição. Há a história da família, a genética... Conheço inúmeros produtores que venderam os animais e, alguns anos depois, recomeçaram a atividade comprando algumas vacas ou novilhas, recomeçando tudo de novo.... Existe, dirão os especialistas em estratégia, significtivas barreiras (sentimentais, no caso) de saída da atividade. Essa afinidade não é apenas típica de produtores, mas também de técnicos atuantes no segmento, o que contribui para que o aporte de conhecimento qualificado sempre continue, mesmo em épocas de crise.
Esses aspectos - indefinição do melhor modelo (ou mesmo ausência deste), espaço para empreendedorismo e existência de laços afetivos com a atividade são características que não podem ser ignoradas quando se analisa o dinamismo e o "charme" do setor.
Sem dúvida, parte importante do crescimento verificado pela atividade decorre do fato do leite ser uma alternativa relevante em áreas marcadas pela pequena propriedade, onde culturas anuais não mais suprem as necessidades econômicas das famílias de pequenos produtores. Também, é provável que os pagamentos diferenciados por volume e qualidade sejam um estímulo aos produtores mais tecnificados, principalmente em regiões com maior concorrência de laticínios. Basta ler o último Top 100 (clique aqui para ler) , que publicamos na semana retrasada, para perceber que os grandes produtores, como um todo, vão muito bem.
Porém, há provavelmente outros fatores que explicam o dinamismo e o crescimento da atividade, como os aqui apontados. Se sua relevância é considerável para o panorama geral da produção, difícil saber. Ante a impossibilidade de ter números concretos para sustentar a tese, fico com a observação de uma produtora de leite (recém-iniciada na atividade, diga-se de passagem, vindo de outras atividades do agronegócio) ao final do nosso "Leite Competitivo", em Rio Preto: "a conclusão que eu tiro disso tudo é que esse pessoal do leite é mesmo diferente".
(OBS: a continuação do artigo anterior - "Setor lácteo: redefinindo sua fronteiras", conforme prometido, fica para a próxima).