Os dados aqui apresentados foram compilados pelo consultor Raimundo Reis, da Leite e Negócios Consultoria, situada no Ceará. A tabela 1 mostra a situação da produção total de leite no Nordeste em 2002, a produção inspecionada, bem com a participação da produção destinada a programas do governo em relação ao total inspecionado. À época, cerca de 27% do leite nordestino era inspecionado, número bem abaixo do total brasileiro, de 61%. Do leite inspecionado, 12,2% ou 79 milhões de litros eram destinados a programas de governo, porém concentrados em apenas dois estados, Rio Grande do Norte e Pernambuco.
Tabela 1. Produção de leite total, inspecionada e destinada a programas sociais no Nordeste, em 2002
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A tabela 2 traz os dados de 2005 (os de 2006 ainda não estão disponíveis). É possível ver uma diferença significativa na evolução desses números. A produção total da região foi ampliada em 25,6%, número bem acima do crescimento da produção brasileira no mesmo período, de 13,5%. Já a produção inspecionada cresceu ainda mais: 46,3%, comparada ao crescimento de 22,8% da produção brasileira formal (que inclui o espetacular crescimento de 11,94% em 2005). Nesse período, a aquisição de leite para programas governamentais cresceu ainda mais: 150,2% em apenas 3 anos.
Nesse período, dos 300 milhões a mais de leite inspecionado produzidos, cerca de 118 milhões ou 40% foram adquiridos pelo governo, a ponto de representar, no total, 20,8% do leite inspecionado na região (curiosamente, os mesmos 20% da época do governo Sarney).
Tabela 2. Produção de leite total, inspecionada e destinada a programas sociais no Nordeste, em 2005
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A aquisição de leite em programas sociais permite, quando bem concebida e conduzida, beneficiar consumidores mais carentes e produtores rurais que, de outra forma, teriam poucas condições de permanecer no campo e, provavelmente, engrossariam a lista de desempregados nas grandes cidades. Os investimentos também são consideráveis. Consumindo R$ 1,3 bilhão desde 2003, o PAA serviu a 93,8 mil agricultores e pecuaristas e já distribuiu alimentos a 6,5 milhões de pessoas. Somente o Programa do Leite, exclusivo para o Semi-Árido, beneficia diariamente, segundo o MDS, 800 mil famílias e 25 mil produtores da região. Os programas também tendem a permitir uma distribuição mais igualitária da renda ao longo da cadeia, dando preferência a pequenas e médias unidades industriais (quando isso ocorre e é cumprido). A tabela 3 traz os preços de leite pagos em cada estado.
Tabela 3. Valores atualmente pagos pelo litro de leite ao produtor e % total recebida pelo produtor (informação do consultor Raimundo Reis)
Por outro lado, os programas sociais podem criar uma relação de excessiva dependência para a cadeia do leite, que pode colapsar caso ocorra alguma mudança drástica ou término do programa. Foi o que aconteceu no governo Collor, quando o Programa do Leite foi abruptamente encerrado. Muitas empresas nordestinas fecharam ou foram adquiridas por outras empresas (felizmente, para elas, foi a época da grande expansão da Parmalat).
Esse risco sempre existe à medida que o governo é o principal cliente. Vejam o caso da Paraíba, onde, de acordo com os dados, mais de 100% da produção inspecionada estadual é adquirida pelo programa. Se, por acaso, o programa fosse extinto, haveria o risco de grande retrocesso da atividade no estado. Em recente oficina do MDA que tive a oportunidade de participar no Ceará, reunindo integrantes de todo o Nordeste, notei que ao se discutir a ampliação do mercado de lácteos, quase sempre se mencionava a intensificação das compras governamentais como solução, o que é sempre perigoso ao se constituir em uma única alternativa e que está sujeita a questões políticas, como o passado já ensinou. Por isso, é importante que se crie estruturas de apoio (talvez o papel do Sebrae seja fundamental nessa questão) para que os produtores e pequenas e médias indústrias tenham maior conhecimento sobre mercado, desenvolvimento de produtos e marketing, para que busquem outras alternativas que não o fornecimento exclusivo ao governo.
Na balança, acredito que os programas sociais têm grande importância em regiões mais carentes e com menor infra-estrutura, não só fomentando o crescimento, como já vimos no início desse texto, como também estimulando a melhoria do ambiente institucional. Pela exigência do programa, os agricultores familiares foram inseridos no mercado formal, através da implantação de novas rotas pelos laticínios. Nesse ponto, talvez o pontapé inicial do desenvolvimento tenha de vir do governo. Vejamos novamente o caso da Paraíba. Em 2002, apenas 8,2% do leite era inspecionado. Já em 2005, esse número havia subido para 27,8%. Difícil acreditar que esse crescimento viria, em tão pouco espaço de tempo, pela ação exclusiva da iniciativa privada. Nesse período, a Paraíba cresceu 31,6 milhões de litros no total e 32,3 milhões no leite inspecionado, ou seja, a produção não inspecionada diminuiu. No Nordeste como um todo, o resultado não é tão vistoso, mas significativo. Do crescimento verificado de 2002 a 2005, cerca de metade foi no segmento inspecionado, número a se comemorar, considerando que em 2002 menos de 30% da produção era formal (os números só não são melhores porque no Maranhão e em Pernambuco, o crescimento na produção informal superou em muito o da produção formal).
A estruturação dos programas sociais em regiões como o Nordeste gera outros benefícios. Na opinião do consultor Raimundo Reis, o efeito do programa, se não impactante economicamente por produtor, já que o limite de compra equivale a R$ 7.000,00/ano, estabeleceu um parâmetro de preço para o setor nos estados, resultando no que é o maior benefício do programa: a menor oscilação do preço do leite durante todo o ano, mesmo para produtores que não participam do programa.
Outro benefício dos programas sociais é a criação de uma infra-estrutura de apoio ao produtor e à indústria que, em um cenário de estagnação, dificilmente ocorre. Empresas de ração, medicamentos, ordenha, inseminação e consultores passam a olhar para a região com mais atenção, o que melhora a qualidade e a oferta dos serviços e produtos prestados. Afinal, a tendência é que existam mais oportunidades em regiões em franco crescimento do que em regiões estagnadas.
Com o tempo, a iniciativa privada também se desenvolverá. Hoje, estamos assistindo à implantação (ou ao anúncio de futuras implantações) de fábricas de laticínios no Rio Grande do Sul. É possível que o Nordeste seja o próximo destino dos investimentos. A Parmalat, renovada, anunciou recentemente planos de ampliação de sua unidade em Garanhuns (PE) e construção de fábricas no Ceará e Feira de Santana (BA), além de uma unidade em Carajás (PA) - nesse caso na região Norte. A Perdigão, proprietária da Batávia, anunciou no final do ano passado o interesse em adquirir ou construir unidade no Nordeste, ao passo que a Danone colocou novamente o pé na região através de um acordo com a Betânia, no Ceará, para a produção de refrigerados, e anunciou a possível reativação de uma fábrica no estado. No ano passado, a líder de mercado, Nestlé, inaugurou unidade em Feira de Santana (BA).
Esses investimentos estão fortemente relacionados a outro programa governamental, o Bolsa-Família, cujos efeitos se fazem sentir no crescimento do varejo em toda a região, fazendo do Nordeste o foco de diversas empresas que vêem na região a resposta para a geração de valor desejada pelos acionistas.
Pessoalmente, tenho alguma restrição a forte interferência do governo, pelas razões apontadas acima e por dois outros motivos: o risco da gestão e eficiência dos programas serem inadequados e a possibilidade de irregularidades que podem distorcer e tornar desinteressantes para o estado determinados programas (a mídia regional tem trazido, eventualmente, denúncias de irregularidades na compra de leite em determinados estados). Porém, os dados mostram que, quando bem conduzido, os programas têm o mérito de distribuir renda, estruturar o desenvolvimento, criar mercado e, com isso, pavimentar o desenvolvimento da iniciativa privada em mercados antes pouco atrativos.