Mas é na China e, mais recentemente, no Brasil, onde esse forte estímulo de preços e de conjuntura positiva tem resultado nas taxas de crescimento mais expressivas. Não temos os dados de 2007 fechados, mas a estimativa é que a produção total brasileira tenha crescido por volta de 6%, com a produção inspecionada crescendo bem mais, talvez ao redor de 10% (saberemos isso nos próximos dias, quando IBGE divulga a pesquisa trimestral do leite referente ao quarto semestre). Segundo o USDA, o crescimento continuará neste ano. A produção no Brasil crescerá 8% em 2008, atrás apenas da China, com 8,6%.
A figura 1 sugere que a estimativa do USDA não parece tão exagerada. O Índice de Captação de Leite do Cepea/USP, calculado a partir das informações passadas pelas indústrias e que têm acompanhado os dados oficiais do IBGE, mostra que nos últimos 7 meses (até janeiro/08) a produção está nada menos do que 16,7% acima do que no mesmo período no ano anterior. E, mais do que isso, a taxa de aumento é crescente, com cada mês, desde maio - exceto em outubro - aumentando mais em relação ao mesmo mês do ano anterior, a ponto de janeiro ter verificado elevação de 22,5% em relação ao mesmo mês do ano passado. É um crescimento sem precedentes em porcentagem e em volume absoluto, caso os dados do IBGE assim o confirmem.
Figura 1. Variação na captação de leite nos últimos 7 meses em comparação ao mesmo período do ano passado.
Esse crescimento é a prova de que a produção de leite no Brasil tem potencial de sobra para crescer. Bastam condições favoráveis e uma boa sinalização de futuro que o leite aparece, ainda mais se atividades concorrentes passam por um momento menos atrativo, como foi o caso da cana e do gado de corte no ano passado. Percebe-se, pela figura 1, que após um início de ano marcado pelo desestímulo dos preços de 2006 primeiros meses de 2007, a produção foi subindo, mesmo na entressafra do Centro-Sudeste, respondendo aos preços mais altos e à melhor relação de troca dos últimos meses.
O crescimento da produção nesses níveis normalmente promoveria redução dos preços. Porém, se analisarmos a figura 2, veremos que, apesar de ter certamente havido uma forte redução de setembro até janeiro, os valores pagos pelo litro de leite estão quase 40% mais altos do que há um ano. E, em fevereiro, já começou a haver reação de preços e maior procura de leite, com laticínios que não estavam aceitando mais leite começando a buscar ativamente novos fornecedores. Sinal de que precisam de leite.
Figura 2. Evolução dos preços de leite ao produtor (em R$/litro de leite).
Em outras palavras, esse grande aumento na oferta de leite não resultou em uma queda igualmente fenomenal nos preços. Como explicar isso?
A explicação está na elevação do consumo interno (obs: as exportações em 2007 cresceram apenas 8,5% em volume, ou cerca de 150 milhões de litros, cerca de 0,5% da nossa produção). A disponibilidade per capita de leite vem crescendo de forma consistente nos últimos anos, apesar de pouco falarmos nela e do conceito arraigado de que o consumo está estagnado.
Considerando um aumento de 6% na produção de leite em 2007, atingimos 140,5 kg/habitante/ano, quase 5 kg a mais do que em 2006. De 2001 em diante, esse aumento médio foi de 2,53% ao ano, com 2007 apresentando 3,3% de acréscimo no consumo per capita, o maior valor desde 2001 (ano do apagão, onze de setembro, crise da Argentina) para 2002. A figura 4 mostra que esse aumento tem sido consistente nos últimos 4 anos. Se essa taxa de 2,5% continuar, chegaremos a 2020 com mais de 190 kg/habitante/ano, a estimativa mais positiva do trabalho "Cenários para o Leite no Brasil em 2020".
Figura 3. Variação no consumo per capita de leite nos últimos anos.
A conclusão é evidente: é a demanda interna que vem impulsionando o mercado. E há outras evidências desse fato, a começar pela constatação de que foi o aumento do consumo das famílias em 2007, 6,5% mais alto do que em 2006, que sustentou o elevado crescimento de 5,4% do PIB no ano passado. O aumento do consumo foi o maior desde 1996, quando a série foi iniciada. Por trás desse expressivo crescimento do consumo está o igualmente significativo aumento do PIB per capita que, com 4% de crescimento, só perdeu para os 4,2% de 2004. O aumento da massa salarial (mais 3,6%) do emprego (mais 3,0%) e da expansão de crédito (mais 28,8%), sem falar dos programas de transferência de renda, explicam porque não é mais a demanda externa, mas sim a interna, que movimenta hoje a economia.
Sabe-se que quando a renda aumenta, em especial nas classes menos favorecidas, há efeito imediato no consumo de proteínas animais, como os lácteos. Em matéria do jornal "O Estado de S. Paulo", de 16/03, Karim Nabi, diretor do Carrefour, diz que em 2007 as vendas de alimentos cresceram 10% na rede, mas que os iogurtes atingiram elevação muito maior: 30% em comparação a 2006. Dados do Latin Panel confirmam esse crescimento. As vendas de iogurtes cresceram 32% em valor em comparação a 2006 e 27% em volume. Ou seja, mesmo com preços mais altos, vendeu-se bem mais.
Outros produtos que não fazem parte da cesta básica também cresceram. Em 2007, donas-de-casa gastaram 27% a mais com bebidas à base de soja, 21% com leites fermentados e 20% com sobremesas prontas. E esse crescimento atingiu valores mais significativos ainda nas classes de renda mais baixa. Para se ter uma idéia do que isso representou, o volume médio de compras de sobremesas prontas cresceu 40% nas classes D e E, no ano passado; bebidas de soja cresceram 27% nas mesmas classes, contra um aumento mais "modesto" de 14% nas classes A e B. É definitivamente o crescimento na base da pirâmide.
Figura 4. Variação anual porcentual do consumo per capita de lácteos.
O fato é que a bicicleta está sendo pedalada - e rapidamente - pelo consumidor interno. Com isso, estimula-se a produção e mantém-se preços atrativos. A grande questão que permanece é até quando esse consumidor continuará pedalando a bicicleta, isto é, estimulando a produção e fazendo o mercado de bens de consumo se expandir.
A primeira nuvem nesse cenário vem do ambiente externo. Com a virtual quebra do Bear Sterns, um importante banco norte-americano, no final da semana passada, muitos analistas entendem que a onda de más notícias que se abate sobre a maior economia do mundo está longe de acabar, afetando em maior ou menor grau as demais economias. Qual será esse efeito, quando e como virá, não se sabe, mas o viés nesse sentido não é positivo.
A outra incógnita é a sustentabilidade desse crescimento interno. Alguns analistas acreditam que não será possível crescer a taxas superiores a 5% de forma continuada, pois faltam investimentos em infra-estrutura e capacidade produtiva (apesar do aumento de 13,4% nos investimentos em 2007), trazendo o risco inflacionário, que pode resultar em aumento de juros. Também, argumentam que será difícil o crédito manter a taxa de expansão verificada em 2007, além do que o aumento do custo dos alimentos já corroeu parte da renda dos mais pobres, lembrando ainda que as exportações tendem a cair (em lácteos, em fevereiro já exportamos 3% a menos do que no mesmo mês do ano passado em volume, apesar do aumento em volume).
Uma outra variável relevante é o mercado internacional de lácteos e o valor do dólar. As análises indicam preços dos lácteos abaixo dos valores de 2007 - embora ainda elevados para os padrões históricos - e câmbio deteriorado, reduzindo a competitividade das nossas exportações. A manter estas condições nos próximos meses, se não atrapalhar, o comércio internacional tampouco será a válvula de escape para a produção.
Resta, por fim, a produção interna. Espera-se, nos próximos meses, um desaquecimento na oferta, que já está ocorrendo, conforme a tendência histórica nessa época do ano. Dessa maneira, ainda que haja alguma desaceleração na economia, para os próximos meses é possível que a equação produção/consumo/comércio internacional feche e nos faça caminhar com relativa estabilidade e viés de alta. A questão será o comportamento dessas variáveis a partir de setembro, considerando que o estímulo ao aumento da produção de leite permanecerá, ainda que menos intenso do que o verificado em 2007 (fruto de preços médios atraentes e estáveis, apesar dos custos mais altos e de talvez um gargalo na oferta de animais). E que, segundo os analistas econômicos, é nesse período que as turbulências serão sentidas em maior intensidade.