Encontrei-me outro dia com um técnico do setor no aeroporto de Congonhas, daqueles da "velha guarda" (que ele não me leia), como eu já fui também, nos meus idos tempos de nutricionista independente, formulando dietas e atuando no manejo de rebanhos.
Como nossos vôos atrasaram - para variar um pouco - pudemos nos dedicar a relembrar algumas reminiscências do passado - passado esse, bom que se diga, não é tão antigo assim: refere-se ao período entre 1990 e 2000.
Apesar de estarmos falando de um período de cerca de 15 anos atrás e de termos às vezes a sensação de que pouca coisa mudou, uma rápida lembrança dos fatos é suficiente para que mudemos nossa percepção.
Até 1991, o mercado brasileiro era regulamentado pelo governo, com tabelamento de preços. Vivíamos a época da inflação elevada e do baixo crescimento da economia mas, para esses temas, sugiro a leitura do blog de Paulo do Carmo Martins, o Observatório, que trata destas questões com muito mais propriedade do que eu.
Naquele final de milênio, os técnicos recebiam uma influência muito forte da tecnologia norte-americana. Assinávamos as revistas técnicas de lá, íamos a eventos e, de forma pioneira, o primeiro Interleite, em 1994, no hotel Transamérica, em São Paulo, trouxe um time de notáveis dos EUA e Canadá para nos ensinar a produzir leite de forma eficiente. Eram aqueles que escreviam o que líamos. Hoje, além da influência norte-americana, recebemos crescentemente influência neozelandesa, além de desenvolver internamente sistemas de produção adaptados a nossa realidade.
Naquele tempo, não havia discussão sobre IN 51, Balde Cheio, Educampo e, obviamente, MilkPoint. Na verdade, mal havia internet, que começou mesmo em meados da década de 90 para uso mais comercial. O Brasil produzia praticamente a metade do leite que produz hoje e nem sonhava em exportar. Éramos importadores crônicos, mas por outros motivos: éramos vitimados pelo fracasso da nossa economia, e não pelo sucesso dela, como ocorre hoje (não deixa de ser irônico).
Mas é no perfil dos chamados produtores profissionais, aqueles que adotam tecnologia e têm escala de produção, que residem as principais mudanças que eu e meu colega saudosista nos propusemos a relembrar.
Naquela época, salvo exceções que via de regra resultaram em produtores que permaneceram e cresceram na atividade, a "nata" do setor, aquela que poderia pagar um técnico como nós, era composta de produtores que, na verdade, não eram exatamente produtores: eram banqueiros, médicos, empreiteiros ou empresários de outros segmentos, que ou haviam herdado a propriedade ou, por alguma razão que ainda hoje não consigo compreender, resolveram produzir leite, muitas vezes dedicando-se à genética de ponta, adquirida nas melhores fazendas canadenses e norte-americanas, fazendo da antiga Expomilk a grande vitrine da pecuária nacional.
Naquela época, início da década de 90, vale lembrar, praticamente não havia pagamento diferenciado pelo leite, nem por volume; a coleta era ainda em latões, mesmo para a maior parte desses produtores; os serviços das empresas de insumos eram incipientes; a qualificação da mão-de-obra era em geral muito ruim; um produtor de 5.000 litros/dia era considerado enorme. Em suma, não havia ambiente institucional que viabilizasse o desenvolvimento de um grande número de produtores que estivessem investindo em "tecnologia".
Claro que esse era apenas uma parte do problema. A outra se refletia no próprio perfil destes produtores, a maioria deles não envolvida de forma realmente profissional com a atividade (por desinteresse, inadequação de perfil ou por terem que se dedicar a outras atividades onde precisavam ganhar dinheiro) e/ou localizada em regiões com topografia desfavorável, encarecendo o custo de produção.
Outro aspecto que não pode ser esquecido é o custo de oportunidade destas propriedades, seja através da expansão da cana-de-açúcar, seja através da expansão das cidades e condomínios (muitas delas localizadas perto das cidades), cuja perspectiva de rentabilidade evidentemente não poderia se comparar com a atividade leiteira, ainda mais gerenciada com dificuldades.
Por tudo isso (claro que há também questões específicas, como problemas sucessórios), um grande número de propriedades de destaque no início da década de 90 deixou de existir, principalmente no eixo São Paulo/Minas Gerais. Regiões como o Vale do Paraíba, Campinas, São Carlos e o Sul de Minas, onde a maior parte se localizava, tiveram uma mudança significativa no perfil da produção e, em muitos casos, houve perda de produção em termos absolutos, no mesmo período em que o Brasil dobrou a sua produção.
A saída desses produtores do negócio, na realidade, foi algo natural, uma vez que eram empresários que tinham ativos investidos em uma atividade difícil, com um ambiente institucional ainda precário, que simplesmente inviabilizava o resultado a não ser que se tivesse dedicação, capital e disposição para aguardar. Nessas condições, certamente o capital poderia render mais de outras maneiras.
Como nosso vôo teimava em partir, demo-nos ao trabalho de relembrar alguns nomes que ficaram pelo tempo e que a geração mais nova certamente nunca terá ouvido falar: Bianco, Spaggiari, Fazenda Paraíso, Santa Ondina, Maria do Céu, Nova América, Canatuba, Márcio Mesquita Serva, Walter Mantovanini, Oscar Figueiredo, Santa Maria da Posse, Pedro Conde, Serramar, Veridiano Tavares, Stockler, Santa Cândida, Anhumas, Instituto Adventista, Pinhalzinho, Granja Itambi, Fregonezi, Salute, Remon.e, certamente, muitos outros nomes que compunham a elite daquela época (talvez um ou outro ainda esteja produzindo).
É interessante notar que muitos produtores contemporâneos destes permaneceram na atividade e, mais do que isso, expandiram, aperfeiçoando seu modelo de negócios, sua gestão, sua eficiência técnica. O núcleo de Castro/Carambeí/Arapoti, no Paraná; Agrindus, Jorge Gonzales, Herman Hoffman, Fazenda Colorado, Antônio Carlos Pereira, Boa Fé, Tainá, Olavo Barbosa, CFM (Hoje São Pedro), Fazenda Santa Luzia, Henrique Stédile, Waldir Junqueira de Andrade, entre outros, são produtores "daqueles tempos", e que continuam na atividade.
Além deles, há inúmeros novos projetos na produção de leite, acredito que com uma diferença básica em relação a maior parte dos grandes projetos de antes. São projetos em sua grande maioria embasados tecnicamente, com gestão profissionalizada e orientação técnica competente (havia bons projetos antes também, mas quem atuou naquela época sabe do que estou falando). Claro que tudo isso só tem condições de florescer em um mercado que premie volume, qualidade e constância de fornecimento, o que certamente ocorre hoje de forma muito mais prevalente do que naqueles tempos.
São esses projetos, seja de novos produtores, sejam da "velha guarda" e que cresceram, que iremos discutir mais profundamente no Interleite, a ser realizado no mês que vem em Uberlândia (6 a 8 de julho). Serão 11 produtores do Brasil, além de 8 do exterior, que apresentarão seus projetos e debaterão com um amplo público envolvido com a atividade. Aliás, se você ainda não se inscreveu para esse encontro que fará uma fotografia do presente e do futuro da atividade, faça o quanto antes clicando aqui, pois as vagas são limitadas.
Ao participar desse evento, será impossível não voltar no tempo e comparar com o início da década de 90, em que estávamos recebendo as primeiras informações do que deveria ser uma produção eficiente, ainda que meio por linhas tortas; hoje, passados 20 anos, estudaremos os frutos daqueles esforços pioneiros.
Após nossa longa espera, finalmente fomos chamados a embarcar. De positivo, a sensação de que poderia escrever um artigo dessa viagem ao passado.