Não há mistério: tanto se apertou os produtores que, nem bem a entressafra climática começou, já está faltando leite no mercado. O desestímulo à produção finalmente se materializou; por trás dos inúmeros leilões de liquidação ocorridos e agendados, começa a faltar leite no mercado. Em conversa com técnicos do setor, mesmo os produtores mais eficientes, seja confinado ou a pasto, não toleram mais um ano com a corda no pescoço. Desta forma, a situação atual não é surpresa para ninguém.
As informações que nos chegam é que o leite "spot", comercializado entre empresas, já chegou a R$ 0,45/litro em Minas Gerais e Goiás, ou até mais. A procura por leite é grande por parte dos grandes laticínios.
No caso da Nestlé, esta coluna havia previsto, no ano passado, que a empresa poderia mudar a forma de atuar no país e que, nesta mudança, a busca por mais leite poderia ser uma realidade. Veja o trecho da coluna de 1/11, intitulada "Vai ser mesmo um Fla x Flu ?", sobre a polarização entre Nestlé e Parmalat:
"A Nestlé tem tido estratégia oposta, permanecendo sem grandes aquisições e com crescimento lento na captação de leite nos últimos anos. Porém, isto pode vir a mudar daqui para a frente. Segundo matéria da Revista Exame (31/12/2001), a Nestlé, que vende US$ 2,5 bilhões no Brasil, acha que pode chegar aos US$ 5,0 bilhões, o que envolve, possivelmente, aumento da produção, com prováveis reflexos no processamento de leite, que poderiam vir pelo aumento da captação ou, de forma mais rápida, por aquisições. A Exame voltou a levantar, na mesma edição, a possibilidade da Itambé ser vendida, sugerindo inclusive que a Nestlé já se candidatara a comprar parte da empresa.
Verdade ou não, o fato é que a Nestlé parece ter planos mais ousados do que outrora, não só no Brasil, mas a nível global, sendo o exemplo mais contundente a associação com a Fonterra, esta resultado da associação entre as duas maiores cooperativas de lácteos da Nova Zelândia, com impactos que sentiremos em breve por aqui."
Em relação a esta última afirmação, a sombra da Fonterra em solo brasileiro vai crescendo e o mercado se enche de expectativas (clique aqui e leia matéria recente do MilkPoint). Afinal, como e quando vai funcionar a joint venture da empresa com a Nestlé?
Voltando ao mercado, já há quem diga que do mesmo jeito que o preço está subindo, vai acabar caindo lá na frente. Quanto maior o salto, maior será o tombo. Há quem especule que a busca por leite agora visa a produção de leite em pó, para a segurar os preços quando oportuno. É possível. Seja lá por que razão, é provável que o preço do leite volte em algum momento, dependendo de quanto subir agora. E isto ocorreria por dois motivos básicos. Primeiro, há um teto para o preço do leite no varejo. Experiências passadas nos mostram que o leite encalha nas prateleiras a partir de um determinado preço, talvez algo em torno de R$ 1,20-R$ 1,40/litro de longa vida. Se isto vier a ocorrer, a pressão (supermercadista, principalmente) para redução dos preços é imediata e o pêndulo volta para trás.
O outro fator é o risco Argentina. Com o real valendo mais do que o peso, a Argentina se torna o novo paraíso para produção eficiente de leite (sigo dizendo que o principal fator de eficiência de produção, ao menos em países do dito terceiro mundo, com moedas instáveis, é o câmbio). Na situação em que se encontra o país como um todo e, sem exceção, os produtores de leite, podemos esperar por aqui ao menos a tentativa de recuperação de mercados perdidos. Está certo que existem as salvaguardas para o leite em pó, mas dependendo do câmbio e da disponibilidade de leite na Argentina, até leite fluido pode cruzar a fronteira em grande quantidade. Afinal, o produtor argentino recebe, hoje, menos de US$ 0,10/litro, igual ou pior do que o produtor brasileiro (achei que não seria possível, mas está aí). Nessa conjuntura, estados do Sul, principalmente, que se cuidem.
Um fator que amenizaria a entrada de leite argentino neste ano seria o fato da produção por lá estar ainda mais desestimulada do que a nossa - e isso já há um bom tempo. Logo, a disponibilidade de leite pode não ser grande. Mas não nos iludamos: com o câmbio mais favorável à Argentina, cria-se a perspectiva e, com ela, voltam os investimentos na atividade. É assim em todos os setores. Na agricultura, não é diferente.
Com todos os senões, em matéria de otimismo, eu deixaria um pé atrás por causa da Argentina. Talvez os dois.
Por tudo isso, acho que o produtor deve buscar capitalizar a atual situação de mercado, negociando seu leite da melhor forma possível. Não é sempre (aliás, quase nunca) que seu poder de barganha lhe permite esta situação. É preciso aproveitar, portanto. Não deveria ser assim, como já colocamos anteriormente. Deveria haver maior harmonia entre os elos da cadeia do leite. Havendo harmonia, poderia haver maior planejamento e fidelidade, mas esta mudança de atitudade depende principalmente dos laticínios. Na falta disso, seria de bom tom ter mecanismos que evitassem a ocorrência de preços inviáveis para grande parte dos produtores e mesmo do leite produzido no país.
NOTA: Na esteira da desvalorização do peso, vale lembrar que quem está com o "mico do câmbio" agora é o Uruguai. Os produtores locais já perceberam que ficará cada vez mais difícil exportar commodities lácteas tendo que competir com a Argentina, esta agora com clara vantagem cambial.