Esse é o título de um estudo de duração de um ano que a AgriPoint conduziu em parceria com a Embrapa Gado de Leite e com o Instituto Ouro Verde (ONG com forte atuação em agricultura familiar), patrocinado pelo Sebrae, pelo MDA, pela OCB e pela CBCL.
No planejamento das organizações, raramente são avaliadas ou discutidas alternativas que estão um pouco além dos compromissos de curto prazo, o que resulta em uma miopia que torna o risco de descontinuidades e rupturas muito mais significativo e impede que se identifique e aproveite oportunidades que, hoje, ainda não estão claras. Em ambos os casos, ao não analisar sistematicamente os vários cenários futuros passíveis de existência, as organizações enfraquecem seu pensamento estratégico de longo prazo. Desta forma, a exploração de possibilidades futuras que nem sempre são consideradas permite, em última análise, aperfeiçoar o processo de tomada de decisão dos agentes envolvidos, contribuindo para que a geração de valor permaneça no tempo. Neste contexto, a avaliação de cenários futuros é altamente oportuna e permite às organizações e agentes do setor leiteiro testar previamente suas forças e fraquezas diante de cada alternativa.
O estudo procurou elaborar, através da participação de mais de uma centena de especialistas nas várias regiões do país e áreas de atuação dentro do segmento lácteo, possíveis cenários para o setor em 2020, construídos a partir de uma extensa pesquisa realizada pela internet. Esta pesquisa foi formulada com o intuito de captar, junto aos especialistas, suas percepções a respeito do futuro, em aspectos quantitativos e, fundamentalmente, qualitativos, que permitiram compreender e organizar o conhecimento coletivo existente.
As perguntas, abertas ou fechadas, foram precedidas de um texto contextualizador, de forma a embasá-las e permitir situar a questão dentro de um cenário mais amplo de informações. Foram realizadas duas rodadas, sendo que, após a primeira rodada, os resultados foram compilados, tratados estatisticamente e reapresentados aos participantes, de forma a permitir a reflexão a respeito da posição de cada um, que poderia ser alterada à luz dessas informações. De posse do material decorrente da pesquisa, a equipe responsável pelo projeto, envolvendo especialistas na metodologia de construção de cenários (o projeto teve a consultoria do Profuturo - Programa de Estudos do Futuro da Fundação Instituto de Administração), formulou quatro cenários possíveis.
É importante ressaltar que o objetivo do trabalho não foi o de prever um cenário para a cadeia leiteira, mas sim formular possíveis alternativas futuras que, uma vez conhecidas, podem ser influenciadas desde o presente. Com isso, o material em questão oferece uma maneira eficiente de se refletir acerca dos desdobramentos futuros em cada cenário e suas implicações, aperfeiçoando a tomada de decisões dos agentes envolvidos com o setor no presente. Além disso, é oportuno esclarecer que, embora os cenários sejam factíveis, é evidentemente pouco provável que qualquer um deles ocorra da forma exata como foram descritos. Na realidade, o mais provável é que haja, no desfecho real, elementos de um ou de mais cenários aqui apresentados, o que não invalida o exercício e a contribuição que o trabalho oferece para empresas, produtores, entidades setoriais, pesquisadores e formuladores de políticas públicas.
O primeiro cenário, "Crescimento continuado, mas heterogêneo", pode ser considerado o cenário tendencial, isto é, aquele que, no seu conjunto, o setor entende como mais provável, sendo resultado das forças atuantes e já conhecidas. Nele, o país cresce a produção de acordo com taxas históricas e superiores ao aumento do consumo, resultando em um superávit estrutural destinado ao mercado externo que atingiria, em 2020, quase 5 bilhões de litros ao ano. Permanece a tendência de concentração na produção e se intensifica a concentração na indústria. O setor mantém um nível de inovação suficiente para desenvolver o mercado de forma competitiva e logra algum sucesso em iniciativas envolvendo sustentabilidade do setor, como o marketing institucional. A qualidade da matéria-prima evolui, mas a infomalidade ainda persiste em níveis razoáveis. Neste cenário, o setor avança, mas vários desafios atuais continuarão por ser resolvidos.
A partir desse primeiro cenário e levando em conta as diferentes percepções dos especialistas acerca do futuro, foi possível trabalhar com dois cenários contrastados.
O primeiro cenário contrastado (portanto, o segundo cenário do trabalho) foi denominado "Leite, a Nova Estrela do Agronegócio". Respondendo às boas perspectivas para o setor no Brasil e no mundo, são realizados fortes investimentos em novas plantas industriais, o que estimula o aumento da produção de leite a taxas significativamente acima da média histórica. Mesmo com um satisfatório aumento do consumo interno, calcado no trinômio renda/marketing/inovação, os excedentes para exportação serão consideráveis, atingindo 10 bilhões de litros de leite ao ano em 2020 e o Brasil se inserirá definitivamente no mercado internacional. A concentração na produção será significativa e o mercado operará com um mínimo de interferência governamental. A região Sudeste continuará sendo a principal região produtora, seguida da região Sul, que diminuirá a diferença. Neste cenário, o leite adquire contornos mais próximos dos verificados em outros países como Nova Zelândia e Estados Unidos, com produção ancorada na escala e na eficiência de custos.
Nem tudo pode dar certo. É o que trata o segundo cenário contrastado (terceiro cenário do trabalho), "O Futuro Desperdiçado", formulado a partir da percepção de uma parcela dos especialistas de que o setor não conseguirá superar como deveria os atuais desafios. Neste cenário, o conflito entre os elos se mantém ou aumenta, inviabilizando iniciativas consideradas importantes para o crescimento sustentável da atividade. A ausência de coordenação setorial impede a organização do setor, o auto-monitoramento e a execução de ações em prol da sustentabilidade futura da atividade. A produção crescerá notadamente nas áreas de fronteira, muito mais por falta de opção de agricultores sem assistência e alternativas econômicas do que por atratividade como negócio. Fraudes e sonegação se tornam comuns, afastando empresas inovadoras e multinacionais, que optarão por investir em outros segmentos. O setor não se articulará em entidades de representação e pouco influenciará a regulamentação técnica relativa aos alimentos e as políticas públicas. A produção crescerá a níveis menores do que a média histórica e o superávit exportável será relativamente pequeno, pouco alterando o status brasileiro no mercado internacional.
Por fim, desenvolvemos um quarto cenário, o chamado cenário normativo ou desejado pelos participantes. Esse cenário foi redigido a partirdas respostas de uma série de perguntas feitas na segunda rodada.
Esse cenario (quarto cenário), entitulado "Agricultura Familiar e Competitiva", apresenta a pujança do setor, que crescerá mais do que na média histórica, ancorado na agricultura familiar, principalmente na região Sul, que quase se equiparará à região Sudeste em quantidade produzida. O enfoque na agricultura familiar e no cooperativismo é a principal diferença deste e do segundo cenário. As cooperativas crescem em importância, o relacionamento entre os elos se harmoniza e o setor consegue, através de ações setoriais, como o marketing institucional e a inovação, aproveitar as oportunidades de mercado existentes. As crescentes exigências ambientais e sanitárias serão bem assimiladas pelo setor, permitindo ampla inserção internacional. O país terá destaque em novas tendências que se consolidarão, como a produção de leite orgânico e a produção ambientalmente sustentável. O governo terá um papel importante na reestruturação do sistema oficial de extensão e na disponibilização de crédito para a agricultura familiar. Haverá, no entanto, espaço para produtores de grande porte, que encontrarão nas grandes processadoras um mercado crescente, estimulando o investimento em escala e qualidade.
A tabela abaixo traz resumidamente as principais variáveis estudadas e os resultados em cada cenário.
Os cenários apresentados acima de forma resumida indicam que, no geral, a percepção dos participantes é favorável ao desenvolvimento do setor. Mesmo se tudo der errado, como procurou representar o terceiro cenário, haverá crescimento. Apesar de ser importante apontar que a pesquisa foi realizada em meados do primeiro semestre de 2007, em meio a um dos melhores momentos vivenciados pelo setor nos últimos anos, decorrente dos elevados preços externos, é sensato argumentar que as pessoas participantes conhecem, em maior ou menor grau, o contexto mais amplo em que o setor está inserido, não se deixando levar em demasia por situações pontuais. Assim, pode-se concluir que a percepção dos participantes é, em geral, de que o Brasil manterá a trajetória atual de evolução, com boa probabilidade de se desenvolver de modo ainda mais intenso, como descrito nos cenários 2 e 4.
Tabela 1. Cenários para o leite no Brasil em 2020.
De posse desse material, é possível antecipar as ameaças, como aquelas que compõe o terceiro cenário, de forma a executar ações preventivas. Também - e mais importante ainda - é possível identificar as oportunidades apresentadas nos outros cenários, de forma a criar as condições para que sejam efetivamente exploradas.
A mensagem que fica a partir deste trabalho inédito é que o setor leiteiro que encontraremos em 2020 pode adquirir contornos muito distintos dependendo do contexto analisado. E, dentro dessa constatação, os agentes envolvidos têm um papel preponderante na construção do futuro. Serão necessárias ações efetivas, conseguidas através da mobilização setorial, para que a cadeia láctea se mantenha dinâmica e competitiva. Estas ações, significando uma participação mais ativa do setor, podem ser a diferença entre os cenários extremos aqui construídos. O estudo será de pequena utilidade caso as reflexões feitas por cada agente não sejam transformadas em um plano de ações em condições de ser executado e corretamente implantado.
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Esse trabalho resultou na publicação "Cenários para o Leite no Brasil em 2020", que traz um balanço da atividade nos últimos anos, as principais incertezas existentes hoje, a descrição dos cenários e implicações para o setor. Em breve, a publicação poderá ser adquirida no MilkPoint.