Em um momento de vendas difíceis no mercado de lácteos e petróleo nas alturas, fazer qualquer comparação entre ambos pode parecer ironia ou piada de mau gosto. Porém, alguns fatos recentes a respeito do chamado ouro negro podem ser aplicados ao nosso ouro branco. Não me refiro ao "affair"com a Bolívia, mas sim a tão sonhada auto-suficiência no consumo de petróleo, anunciada a quatro cantos na semana que antecedeu a nacionalização das reservas de petróleo pela Bolívia e que acabou sendo suplantada por ela em atenção.
O primeiro ponto que chama a atenção e que permite um relacionamento imediato entre leite e petróleo pode ser visto na figura 1. Nela, estão expostos os preços do leite em pó desnatado e do petróleo. Percebe-se que há clara correlação entre eles. Quando o preço do petróleo está elevado, como agora, o preço do leite também se eleva, e assim por diante.
Figura 1
Fonte: Richarts, IDF (2005)
Dois aspectos podem explicar dessa relação aparentemente improvável. O primeiro é que preços elevados de petróleo sugerem aumento da atividade econômica no mundo. De fato, é sabido que, apesar do nosso crescimento interno reduzido, o mundo vive um momento econômico especialmente interessante, com vários países crescendo a taxas acima de 5% ao ano. Muitos destes países possuem baixo consumo per capita, que em grande parte é dependente da renda e da atividade econômica. Com renda mais elevada, as pessoas consomem mais, principalmente se esse fenômeno ocorre em países com consumo que possui elevada elasticidade-renda, ou seja, países em que o consumo responde significativamente a elevações na renda per capita.
Em função disso, preços mais elevados para o petróleo tendem a refletir em preços mais elevados para alimentos como os lácteos. Analisando mais a fundo essa questão, constata-se que muitos dos principais importadores de lácteos são também grande produtores de petróleo, o que nos permite inferir que, se a atividade econômica implica em valores mais altos para o petróleo e para o leite, nesses países, como Argélia, Venezuela, Irã, Iraque, Arábia Saudita e outros, o fenômeno tende a ser ainda mais direto.
Além disso, conforme noticiamos no dia 10/05, os altos custos de petróleo afetam os custos de produção e transporte de lácteos, fazendo com que as empresas tentem repassá-los nos produtos (embora essa capacidade, em mercado de commodities, seja provavelmente limitada).
Mas a proximidade de leite e petróleo vai além disso, principalmente se analisarmos a questão interna. O Brasil, após décadas de balança comercial negativa em relação ao petróleo, finalmente atingiu a condição de superavitário, fruto de diversos investimentos como a plataforma P-50. O país, finalmente, se tornou auto-suficiente na produção de petróleo, da mesma forma que ocorreu recentemente com o leite. Em ambos os casos, a auto-suficiência não implica em importações zero ou exportações zero, mas sim em um fluxo de comércio em que produzimos mais do que consumimos internamente, resultando em sobras exportáveis.
Figura 2. Exportações e importações de petróleo pelo Brasil, de 2000 a 2006 (até fevereiro), em metros cúbicos
O déficit em relação ao comércio de petróleo sempre foi um tabu e a sua superação foi anunciada com grande dose de nacionalismo ("O Petróleo é Nosso", como colocou o Estadão em um caderno especial). Nesse processo um tanto ufanista, muitos comemoraram o fato de que, finalmente, não dependeríamos mais dos preços internacionais e poderíamos praticar preços mais próximos aos custos de produção.
Ledo engano. Mesmo na hipótese de não importarmos ou exportarmos 1 barril sequer de petróleo, a mera possibilidade de fazê-lo implica em alinhamento dos preços internos e internacionais. José Sérgio Gabrielli, presidente da Petrobrás, explica:
"O Brasil é uma economia aberta. Os preços da gasolina e derivados não podem ficar descolados do preço internacional.(...) O preço brasileiro não pode ficar permanentemente acima ou abaixo dos preços internacionais. Se ficar acima muito tempo, vai estimular que haja importação, o que vai forçar a queda do preço. Se ficar muito abaixo, vai estimular que outros agentes comprem da Petrobrás e exportem para o exterior. É impossível numa economia aberta manter os preços descolados do preço internacional".
Pois é. Tal cenário é muito parecido com o do leite. Mesmo com a auto-suficiência conquistada e volumes relativamente pequenos importados e exportados, o Brasil não pode se descolar do mercado externo, como já havia sugerido em editorial escrito em novembro de 2005, intitulado "O mercado internacional e o preço que o produtor recebe". Assim, é cada vez mais necessário acompanhar e compreender os preços internacionais, que, aliás, estão elevados, e os fatores que os influenciam.
David Zylbersztajn, primeiro diretor geral da ANP, coloca ainda a questão da competitividade a longo prazo como um fator determinante nessa análise. Caso os preços aqui sejam mais baixos do que os do mercado mundial em função da recém-conquistada independência, a capacidade de se investir em renovação dos estoques e em pesquisa e desenvolvimento, ingredientes fundamentais para a competividade neste segmento, seria altamente comprometida. Também, o estímulo ao desenvolvimento de alternativas mais econômicas, como o álcool, seria bem menor, bem como o estímulo ao uso racional de um recurso finito. Em resumo, criaria-se uma situação interessante de curto prazo, de alta popularidade, mas desastrosa a longo prazo. Esse tipo de populismo, segundo ele, foi adotado na Argentina, que congelou os preços do gás natural há alguns anos: no início, efeitos favoráveis; depois, queda nos investimentos e perda de competitividade internacional. Qualquer semelhança com os impostos de exportação de carnes e lácteos impostos pelo nosso vizinho neste governo podem não ser mera coincidência...
Zylbersztajn analisa mais a fundo a questão e aponta um aspecto relevante que permite encontrar mais um elo entre petróleo e leite. Para ele, ufanismos à parte e sem desmerecer a conquista da Petrobrás, uma parcela significativa da condição superavitária foi alcançada pelo baixo crescimento da economia brasileira, algo que encontra paralelo na redução do déficit comercial dos lácteos. É sabido que, desde o Plano Real, o consumo interno de leite vem patinando, crescendo muito menos do que a produção, culminando com o superávit. A mensagem é que, tanto no petróleo como no leite a conquista desta nova condição deve ser comemorada, mas há ainda muito o que se fazer.
A lição que podemos extrair do petróleo para aplicar ao leite é que cada vez mais estamos em um mundo integrado, o que nos força a acompanhar cada vez mais de perto as movimentações do comércio internacional, inclusive aquelas que causam distorções, como exportações carregadas de subsídios ou dumping.
Mesmo sem grandes volumes importados ou exportados, empresas vão exportar ou importar lácteos aos preços mundiais, que serão em larga medida refletidos nos preços ao produtor. Essa é uma condição fundamental para que consigamos criar uma cadeia produtiva e industrial capaz de competir de igual para igual com outros países, considerando que somos partidários do livre-mercado e da quebra de barreiras comerciais.
PS: apesar das semelhanças, há grandes diferenças entre leite e petróleo, a começar pelo preço. Enquanto o petróleo "ao produtor" está cotado a US$ 0,39 o litro, o leite custa pouco mais da metade, US$ 0,22 o litro...