A atividade leiteira vem se mostrando uma atividade interessante nos últimos anos, apesar de momentos de crise como os verificados no segundo semestre de 2005 e início de 2006. A prova disso é o crescimento muito acima da média histórica em 2005 (a produção formal cresceu 12%), com projeções de novo crescimento para 2006, embora a taxas mais alinhadas com as médias históricas.
Pode-se argumentar que esse crescimento se dá em áreas de fronteira ou a partir de um produtor que emprega mão-de-obra familiar, não analisa a atividade com o rigor econômico de um empresário e que, portanto, poderia estar crescendo às custas de seu futuro, cobrindo tão somente o desembolso, sem remunerar a si próprio e a sua família, e sem computar os custos com depreciação e correção da fertilidade do solo, por exemplo.
É possível que parte do crescimento esteja sendo alicerçado nesse produtor, que não encontra em outras atividades a combinação baixo risco/facilidade de comercialização/viabilidade em pequenas áreas/ receitas mensais. Mas isso não explica tudo. É impressionante o número de produtores hoje na faixa de 1 a 3 mil litros diários, a título de ilustração, e que querem chegar a 4, 5 mil ou mais. Esses produtores estão sendo valorizados por volume e qualidade, via de regra se dedicam com profissionalismo à atividade e são os que estão na faixa superior de preços, marcada ainda (ou cada vez mais) por uma amplitude considerável de valores.
Seja por representar uma alternativa interessante, se não a única, para produtores familiares em muitas regiões, seja por sinalizar um futuro atrativo para produtores que investiram em gestão, qualidade e escala, o fato é que o leite cresce e já há algum tempo não é colocado como a última das atividades em termos de rentabilidade e vigor no agronegócio. O advogado do diabo em cada um de nós poderia argumentar que outras atividades é que pioraram, melhorando a avaliação relativa do leite. Embora isso tenha sua contribuição, o fato é que o setor vem apresentando um dinamismo e novas nuances como a exportação de lácteos, a ponto de atrair novos entrantes como é o caso da Perdigão, já comentado nesse espaço.
Podemos, então, considerar que o leite vem ganhando espaço, seja como uma atividade estratégica sob o ponto de vista sócio-econômico, seja como alternativa rentável para produtores que poderiam explorar outras atividades.
Ocorre, porém, que o momento de relativa tranquilidade atualmente vivido não pode ser motivo de afrouxamento nas demandas do setor. Caso contrário, quando a oferta momentamente voltar a se sobrepor à demanda, os preços cairão e a velha ladainha voltará à tona: é preciso marketing, programas sociais, preços mínimos, balizamento de preços e assim por diante, como já ocorreu no passado. É sabido que os pleitos se avolumam nas crises, mas é preciso trabalhar o setor mesmo nos momentos de bonança ou estabilidade.
Em meio a esse texto, leio o artigo de Susanne Clausen, do Danish Cattle Agricultural Advisory Centre, na Dinamarca, e que foi apresentado no 9º Congresso Panamericano de Leite, em Porto Alegre. Ela diz que a União Européia está desenvolvendo um projeto para o quinqüênio 2006-2010, visando reforçar os parâmetros de bem-estar animal, cada vez mais fortes na Europa, principalmente nos países escandinavos, onde as pessoas se preocupam cada vez mais com as práticas de criação e manejo dos animais.
Esse projeto visa, entre outras coisas, introduzir parâmetros mensuráveis para avaliação do bem-estar animal, garantir que o público em geral esteja mais envolvido com a questão e seja mais bem informado a respeito de temas relativos ao bem-estar animal e incentivar/desenvolver iniciativas internacionais para elevar a consciência sobre isso, além de criar maior consenso sobre o tema.
Por fim, eureca....! Susanne diz que a UE vai levar essas questões para as negociações internacionais da Rodada de Doha, de forma a introduzir o bem-estar animal na agenda. A razão disso é evidente: os produtores europeus sabem que as condições que os mantém competitivos hoje - ajuda interna, barreiras comerciais e subsídios à exportação - tem trajetória declinante. Nesse cenário, dificilmente competirão com os produtores da América do Sul e Oceania em termos de custos de produção - a menos que novos parâmetros sejam analisados.
Aí que entra o bem-estar animal, assim como a proteção ambiental; na impossibilidade de manter barreiras comerciais, que entrem barreiras técnicas, daí o interesse em elevar a consciência para a questão e estimular iniciativas internacionais. Pedro Pimentel, secretário executivo da ANIL, Associação Nacional da Indústria de Laticínios de Portugal, já havia dito em entrevista ao MilkPoint: "Nenhum operador europeu pode aceitar que comportamentos que no espaço da EU são ilegais e motivo de penalização - financeira, ética e no mercado - sejam considerados vantagens competitivas quando referenciadas a outros países ou espaços econômicos".
A razão dessa "viagem" até a Dinamarca tem o objetivo de mostrar que é preciso criar e executar planos consistentes visando preservar as condições futuras do mercado. É isso que os europeus estão fazendo, ao se perguntar como competirão a partir de 2013, quando os subsídios à exportação cairão por completo, ou a partir de 2015, quando o sistema de cotas provavelmente será eliminado.
A despeito do momento favorável, o setor leiteiro por aqui tem ainda uma agenda extensa a ser seguida. Entre os vários pontos dessa agenda, está uma questão importante, referente a mecanismos de proteção dos preços de leite minimizando os efeitos da volatilidade do mercado. O setor começou a discutir esse assunto na crise de 2001, junto com as exportações. Estas decolaram, mas o mesmo não ocorreu em relação à proteção dos preços. É certo que a inclusão do leite na PGPM foi uma vitória, mas as discussões em torno de criação de um mercado futuro para o leite, por exemplo, não prosperaram. Mais recentemente, o setor discutiu a criação do PROP (Prêmio de Risco de Opção Privada) para o leite, que, ao menos até agora, também não vingou.
Sem entrar no mérito da viabilidade do PROP ou da negociação de leite ou lácteos em mercados futuros, o fato é que o setor precisa dispor de mecanismos que permitam ao produtor e laticínios lidar melhor com as flutuações do mercado. Ivan Zurita, presidente da Nestlé, já disse no passado que sua empresa pretende crescer consistentemente aqui no Brasil e que, para isso, seria necessário que o mercado, em termos de oferta, tivesse um comportamento mais previsível e mais linear, com benefícios para a cadeia toda. Ao dispor desses mecanismos, tanto o produtor quanto o laticínio podem gerenciar melhor seu negócio, reduzindo parte da variabilidade inerente de mercado.
Falando em crescimento do mercado, outra questão que não pode ser deixada de lado é o marketing. Cada vez mais surgem manifestações contrárias ao leite, às vezes até sem segundas intenções, mas que, juntas e com o tempo, vão corroendo o tamanho e a atratividade do mercado, podendo acumular um efeito devastador. Quer um exemplo? Ninguém comentou o anúncio do Banco Real em cadeia nacional, em que uma mãe diz que sua filha tinha alergia ao leite de vaca e que criou um capril com o apoio do banco. A temática escolhida sugere que se trata de um problema relevante na sociedade, a ponto de estrelar uma peça em TV, devendo ser vista como mais um sinal de que o leite terá uma batalha cada vez mais dura para manter seu espaço no mercado.
É justamente pelo fato dessas manifestações terem um efeito individualmente pouco significativo e gradual, que não demanda ações emergenciais, o que torna essa questão mais difícil de ser resolvida. O setor, aliás, mostrou que sabe se posicionar em questões que demandam ações imediatas, como é o caso das tarifas anti-dumping, da inclusão do leite na PGPM e na própria criação de estruturas para exportação. Mas ainda temos de melhorar nas questões de longo prazo, aquelas que criam condições para que o mercado seja atrativo no futuro.
Há outras questões relevantes visando o longo prazo, como as negociações internacionais, a produção de pesquisas em lácteos visando trazer inovações para o setor e muitas outras, mas o objetivo aqui é tão somente chamar a atenção para o fato de que, mesmo nos momentos de maior tranquilidade, é preciso estar atento a questões relevantes que delinearão o mercado nos próximos anos. Na verdade, é justamente nesses momentos de calmaria, nos quais não há a necessidade de dispender energia e recursos em aspectos emergenciais, que encontramos as melhores condições para refletir acerca da competitividade do setor como um todo e pensar soluções que nos permitam sempre apostar no leite como alternativa rentável e sustentável.