As discussões envolvendo a exclusão de produtores de leite principalmente em função das normas que entrarão em vigor a partir de 2005 ganharam as manchetes nesta semana.
No dia 3 de setembro, foi realizado um Seminário no Ministério do Desenvolvimento Agrária com o objetivo geral de elaborar uma agenda visando o fortalecimento da agricultura familiar na cadeia produtiva do leite. Os objetivos específicos deste evento foram levantar as necessidades de ajustes e medidas específicas para a agricultura familiar em função da implementação da Instrução Normativa 51 do MAPA; identificar possíveis estratégias em relação às empresas transnacionais que atuam no mercado interno; identificar possíveis estratégias em relação aos processos de negociação internacional e comércio exterior; e definir encaminhamentos gerais e diretrizes de políticas públicas para o fortalecimento da agricultura familiar na cadeia do leite. O evento contou com a participação de diversas entidades (CNA, Fórum Sul do Leite, Embrapa), além do governo (MDA, MESA, CONAB, MAPA - Selei/DIPOA, Comissão de Agricultura).
No dia seguinte (4/9) foi realizada audiência pública na Comissão de Agricultura da Câmara dos deputados para discutir novamente a questão da exclusão dos pequenos produtores.
A discussão é centralizada no fato da Instrução Normativa 51, ao preconizar a coleta de leite refrigerado e ao definir novos padrões de qualidade para o leite coletado, se tornar potencialmente um fator de exclusão de milhares de produtores. A questão, neste ponto, é contrabalançar melhoria da qualidade do leite com manutenção da renda do pequeno produtor, que tem menor disponibilidade de recursos para se adequar e, portanto, seria o mais afetado pela implantação da referida instrução normativa.
Esse tema (que transcende a questão da qualidade) voltou a ser amplamente discutido, como pode ser acompanhado no noticiário do setor. Este artigo não tem o objetivo de abordar esta problemática, mas sim de fazer algumas ponderações a respeito do número de produtores de leite existentes no país, visto que, na mídia, encontram-se referências muito desencontradas sobre este número.
Afinal, quantos produtores de leite efetivamente temos? 1,8 milhões? 1,2 milhões? 800.000? Ou menos do que isso?
Esta é uma questão complexa dada a falta de informações oficiais atualizadas. O último Censo Agropecuário do IBGE data de 1995/1996, sendo evidente que o mercado mudou muito de lá para cá. O Censo apontava 1.810.041 produtores de leite, sendo produtor de leite quem possuia ao menos uma vaca. Destes quase 2 milhões de produtores, consta que aproximadamente 800.000 tinham excedente comercial, ou seja os demais produziam apenas para consumo próprio. Neste grupo, por exemplo, pode estar um pecuarista de corte que possui algumas vacas leiteiras para alimentação de sua família e funcionários. É difícil aceitar que este produtor possa ser chamado efetivamente de produtor de leite. Pelo menos a ponto de afetar o mercado, ou do mercado afetá-lo.
Para ilustrar este fato, pode-se citar o trabalho realizado pelo Instituto Fernando Costa, na região de Pirassununga (SP) apurou que 217 produtores, ou 36,7% do total, produzem até 19 litros diários, mas que não tem na atividade leiteira qualquer forma significativa de geração de renda.
Fazendo uma simulação a partir das informações mais recentes é possível fazer algumas inferências a respeito do número de produtores de leite. Utilizamos o ranking dos maiores laticínios em 2002, organizado pela Leite Brasil, CNA, Embrapa Gado de Leite e CBCL, e o Censo das Cooperativas de Leite, realizado pela CBCL e OCB, com apoio do CEPEA/USP, para geração de alguns dados básicos.
O Censo das Cooperativas de Leite apurou que estas captaram, em 2002, 5,096 bilhões de litros a partir de 144.471 produtores, com média de 95 litros/produtor/dia. Utilizando o ranking dos maiores laticínios, descontando os que são cooperativas, chega-se a uma captação de 4,401 bilhões de litros a partir de 70.396 produtores, com média de 171 litros por produtor/dia.
Somando-se o que apurou o Censo e o que mostra o ranking dos maiores laticínios, tem-se uma captação total de 9,463 bilhões de litros a partir de 215.167 produtores, com média de 121 litros/produtor/dia.
O mercado formal em 2002 atingiu 13, 212 bilhões de litros, de forma que as cooperativas e os maiores laticínios foram responsáveis por 71,6% da captação formal.
Pode-se argumentar que entre os grandes laticínios, está a Elegê (com 28.665 produtores), que tem a maior parte de sua captação feita através do sistema cooperativista no Rio Grande do Sul. Portanto, os números estariam superestimados, com dupla contagem, visto que estes produtores também entraram no Censo das Cooperativas. Para efeito de simplificação e como forma de manter o conservadorismo na análise, não vamos considerar este pequeno erro.
Fica também a dúvida se os tanques comunitários que estariam sendo utilizados poderiam, por outro lado, subestimar o número de produtores especialmente nos maiores laticínios. Mas acredito que estes erros são insignificantes ante a magnitude das divergências numéricas que existem no setor.
Considerando que até aqui fomos bem, o problema começa na estimativa do restante do mercado: 3,749 bilhões de litros no mercado formal e - supondo produção de 20,4 bilhões de litros em 2002, dado estimado - 7,187 bilhões de litros no mercado informal.
Seria aceitável supor que, no mercado formal, estes 3,749 bilhões de litros fossem produzidos por um produtor médio que tivesse o mesmo volume do produtor médio apurado ao se considerar a ponderação entre o Censo das Cooperativas e o Ranking dos laticínios. Portanto, um produtor com produção de 121 litros/dia. Pode-se argumentar que o aumento da escala de produção se dá principalmente nos grandes laticínios e que os produtores de menor porte acabam fornecendo para laticínios menores, o que distorceria a análise. Mesmo que isso seja verdade, temos, por outro lado, o fato das cooperativas naturalmente abrigarem produtores de menor porte, dada sua própria natureza economico-social, de forma que haveria um contraponto entre os dois grupos, tornando 121 litros/dia um valor possível para estimar o produtor médio do mercado formal.
Mas, sendo conservadores, vamos considerar que os 3,749 bilhões de litros restantes que perfazem o mercado formal são produzidos por produtores que, em média, tem 50% a menos de produção diária, o que resulta em 80 litros diários e 127.862 produtores de leite.
Assim, o mercado formal reuniria 343.029 produtores de leite, com média de 105 litros/dia. Considerando os dados disponíveis, me parece bastante lógico estimar por volta de 350.000 a 400.000 os produtores formais, que teriam de se adequar às novas normas.
Quanto aos informais ... aí fica mais complicado, pois o perfil pode diferir do produtor formal. O trabalho realizado pelo Instituto Fernando Costa mostra que a pequena produção é altamente relacionada à informalidade. A correlação entre produção entre 19 e 99 litros/dia e informalidade é de 99% (P < 0,05), ao passo que entre 100 e 199 litros a correlação cai para apenas 9%.
Desta forma, podemos, arbitrariamente, supor uma produção média de 59 litros por produtor/dia para a produção informal, o que resultaria em 333.749 produtores informais.
No total, teríamos 676.778 produtores, quase a metade no mercado informal, embora produzindo menos do que os produtores formais.
Estes dados não têm, obviamente, a pretensão se tornar referências, mas são resultado de uma aproximação que partiu dos dados disponíveis e assunções mais ou menos lógicas. Se considerarmos que a produção média dos produtores informais é de 40 litros diários e não 59, chegaremos a um total de 835.309 produtores de leite. Se for de 30 litros, 1 milhão de produtores.
A partir destes dados, me parece pouco provável que tenhamos muito mais de 800.000 produtores de leite no país, sendo oportuno lembrar que, sob qualquer análise, este número é bastante significativo e demanda estudos e reuniões como os que vêm sendo conduzidos, no sentido de minimizar os efeitos sociais negativos sem, contudo, anular os esforços que no sentido de melhorar a qualidade do leite no país.
O estudo do Instituto Fernando Costa pode ser visto em:
Diagnóstico da Qualidade do Leite na Microrregião de Pirassununga Parte 1. Perfil e Percepções dos Produtores sobre Qualidade do Leite
Diagnóstico da Qualidade do Leite na Microrregião de Pirassununga Parte 2. Qualidade do Leite e Meios de Comunicação