O trabalho avaliou, a partir dos dados da Pesquisa do Orçamento Familiar 2002/2003, do IBGE, a variação de consumo de leite e derivados a partir de incrementos de renda, em diversas faixas de renda familiar mensal e nas várias regiões do país. Para isso, empregou o conceito de elasticidade-renda, que mede a propensão ao consumo para determinado bem estudado. A elasticidade-renda estima, para cada aumento porcentual da renda do consumidor, quanto deverá aumentar o consumo de determinado produto. Um produto com elasticidade-renda de 0,80, por exemplo, deve ter o consumo aumentado em 0,80% para cada 1,0% de aumento na renda do consumidor.
Em linhas gerais, produtos com elasticidade-renda acima de 1 são considerados elásticos, isto é, seu consumo responde significativamente a variações de renda. De forma oposta, produtos com elasticidade-renda próxima a zero são inelásticos, ou seja, seu consumo não aumenta com a renda do consumidor. Há ainda os chamados "bem inferiores", cujo consumo cai com o aumento da renda do consumidor. Vários alimentos se encontram nessa categoria, como mandioca, arroz e feijão, que têm seu consumo diminuído à medida que o consumidor tem mais renda à disposição e, com isso, opta por outros alimentos em intensidade crescente.
É importante ressaltar que a propensão ao consumo apresenta variações por faixa de renda, daí a necessidade de se segmentar a análise. Produtos que têm alta elasticidade-renda em determinada faixa podem se mostrar inelásticos em outra. Diferenças regionais, em grande parte, também podem refletir diferenças de renda, conforme discutido e analisado pelos autores.
Recomendo fortemente a leitura do artigo original, denominado "A renda do brasileiro se seus gastos com lácteos", e por isso, reproduzo nesse espaço apenas uma tabela, que mostra os dados de elasticidade-renda do leite e derivados como um todo, além de leite fluido, queijos e leite em pó, nas várias faixas de renda.
Tabela 1. Elasticidade-renda de leite e derivados em quatro faixas de renda
Fonte: Oliveira e Carvalho (2006)
Utilizando-se os conceitos acima, percebe-se que, ao contrário do que se imaginava (ou do que se esperava, com base em análises anteriores), os lácteos são relativamente inelásticos, ou seja, seu consumo não responde de forma tão significativa ao aumento de renda. O leite em pó, inclusive, cai na classe de bem inferior na faixa de renda familiar de até R$ 1200 mensais: seu consumo diminui com incrementos de renda, indicando que o consumidor o substitui por outros produtos à medida que tem mais dinheiro. Do grupo acima, o queijo é a exceção, apresentando elasticidade-renda mais alta, especialmente nas famílias mais carentes. Outros lácteos não apresentados acima, como iogurtes e sobremesas lácteas, provavelmente apresentam elasticidade-renda ainda superior, significando que são mais sensíveis à renda.
Antes que se conclua pela "não-importância" da renda como direcionador de consumo, é necessário situar a análise iniciada acima. É evidente que a renda é um componente importante para que se aumente o consumo, como bem comentado por Oliveira e Carvalho no referido artigo. O último grande salto de consumo per capita de lácteos ocorreu no Plano Real, fruto do aumento do poder de compra com o fim da inflação. Além disso, conforme pode ser visto na tabela, os valores mais altos são encontrados nas faixas de renda mais baixas, assim como nas regiões mais pobres. Também, não custa lembrar: sem renda, não há consumo.
O ponto relevante é que, embora renda seja um componente essencial para que o consumo cresça, o trabalho mostra que é preciso fazer mais caso o setor tenha o intuito de saltar de patamar em relação ao tamanho do mercado interno. Dada a baixa elasticidade-renda, depositar o aumento de consumo unicamente em incrementos de renda significaria contar com elevações brutais na renda média para lograr grandes impactos no consumo per capita.
Esse dados comprovam a percepção de que o mundo mudou muito nos últimos 15 anos e, às vezes, mesmo sem querer, nos prendemos a argumentos que eram válidos no passado. No final de setembro, tive a oportunidade de presenciar um pouco dessa mudança no Fórum Wal-Mart Brasil de Varejo 2006, um evento oferecido pela Wal-Mart (maior rede de varejo do mundo) para seus fornecedores. O evento tem certamente um cunho institucional, mas também tem o propósito de sinalizar aos fornecedores do Wal-Mart os aspectos valorizados pela rede e para onde o mercado caminha.
O evento foi focado basicamente em dois pontos: sustentabilidade (cuja abordagem deixarei para uma outra oportunidade) e o mercado de baixa renda, representado pelas classes C, D e E, que vem sendo "descoberto" por empresas antes focadas unicamente nas classes A e B.
Essa descoberta é alavancada por alguns fatores. Primeiro, a elevada concorrência nas classes A e B vem forçando as empresas a buscar novos mercados para manter a rentabilidade e o crescimento. Segundo, as classes C, D e E vêm apresentando ganhos de renda superiores às demais nos últimos anos, incorporando grande contingente de novos consumidores. Nesse ponto, os programas de transferência de renda e o aumento do salário mínimo têm contribuído signficativamente. Não por acaso, muito do crescimento nas vendas das empresas no último ano ocorreu no Nordeste. O estímulo final ao desenvolvimento de estratégias para baixa renda vem do exemplo bem sucedido de empresas como as Casas Bahia, que perceberam o enorme potencial de se atuar nas classes menos abastadas. Casos como esse vêm ganhando notoriedade crescente na mídia, especialmente após a publicação do livro "Riqueza na Base na Pirâmide", de C.K. Prahalad.
De fato, as classes C, D e E, sempre relegadas a segundo plano, têm uma importância considerável, ainda mais em se falando de alimentos. A figura 1 traz a distribuição da população, da renda e do consumo de alimentos em São Paulo. Embora seja evidente a concentração de renda, nada menos do que 54% do consumo de alimentos está concentrado nas classes C, D e E. No caso de alguns lácteos, isso é ainda mais significativo: 81% do leite fluido e 79% do leite em pó são consumidos nas classes C, D e E, que apresentam o dobro de crianças por família em comparação às classes A e B.
Figura 1. Distribuição da população, da renda e do consumo de alimentos em São Paulo, com base em diferentes faixas de renda (a partir da POF/IBGE 2003)
Além da importância econômica incontestável, as classes C, D e E vêm apresentando um padrão de consumo muito dinâmico. A figura 2 mostra, por classe social, o número de categorias que compunham a cesta padrão de consumo em 2004 e 2005. De um ano para o outro, todas as classes verificaram grande aumento no número de categorias consumidas, mas o destaque ficou para as classes D e E (mais pobres) que tiveram uma elevação de 28 para 49 categorias, ou seja, 75% de aumento no tipo de itens consumidos.
Figura 2. Cesta padrão por classe de renda (Faria, 2006, Fórum Wal-Mart de varejo)
Esse dado é surpreendente por sua magnitude em curto espaço de tempo e começa a explicar o porquê da elasticidade-renda não ser tão alta quanto esperávamos. O consumidor aumentou sua renda, mas ela não é mais necessariamente direcionada aos lácteos. As opções de consumo se multiplicaram, não só dentro do segmento de alimentos. Hoje, celulares, DVDs, internet, TV a cabo, gastos em educação são alguns dos itens que passaram a consumir recursos de uma parcela cada vez maior da população. De um ano para o outro, produtos de higiene tiveram praticamente o dobro do crescimento verificado com alimentos nas classes D e E. Falando da briga dentro da área de alimentos e bebidas, sucos prontos e bebidas de soja são algumas das categorias que apresentam forte crescimento e que brigam pela fatia de consumo de leite, amparados em ações bem coordenadas junto a médicos, nutricionistas e imprensa.
Como responder a esse contexto em que não basta mais ter renda para se ter consumo? São várias as ações possíveis, mas vou me ater aqui a duas delas: inovação por parte das empresas (novos sabores, novas embalagens, novos canais de distribuição, como os produtos para Food Service, alimentos funcionais) e marketing institucional como ação setorial.
Nesse ambiente em que o mercado se apresenta como uma batalha para atrair novos consumidores e manter os atuais, é fundamental que o setor lácteo se posicione e que, através do marketing, incluindo relacionamento com formadores de opinião, consiga se valorizar junto ao consumidor e melhorar sua atratividade. Pelas conversas que tenho tido, há empresas, inclusive de grande porte e com marcas fortes, que já perceberam a necessidade se de fazer um trabalho de base que complemente e legitime seus esforços de marketing.
O trabalho dos pesquisadores da Embrapa é traduzido na prática pelas informações debatidas no Fórum Wal-Mart. Em um mundo dinâmico, cheio de inovação e bem informado, os desejos de consumo se multiplicam e se sofisticam e quem esperar somente pela renda como uma salvação divina para o crescimento do consumo de lácteos pode ter uma grande decepção. Como disse o pensador Peter Drucker, "a melhor maneira de prever o futuro é criá-lo". É exatamente isso que o setor estará fazendo ao investir de forma estruturada em marketing institucional.