Conheci, enfim, a tão falada China. A China do crescimento vertiginoso, da ocidentalização, dos investimentos maciços e da competitividade imbatível. A China da Costa Leste, onde se destacam Hong Kong, Guangzhou (Cantão), Shenzen, Shanghai, Beijing. A China de 400 milhões de habitantes, responsável por um fenômeno que, sem muito exagero, se assemelha ao que ocorreu na Revolução Industrial, na Inglaterra. Não conheci a China do interior, onde ainda habitam 900 milhões de pessoas em condições que pouco mudaram nos últimos anos e que ainda não estão participando da festa. Afinal, não há espaço ainda para todos e os convites são contados e cuidadosamente distribuídos.
Em menos de 15 dias, certamente não é possível entender de fato como funciona esse país que tem sido o motor da economia mundial. Sua história muito particular, o fato de ser um país oriental, portanto distante das nossas referências ocidentais e o governo comunista são ingredientes que dificultam uma análise coerente em tão pouco tempo.
Porém, alguma coisa foi possível captar. Um ponto de partida básico é o planejamento da economia por parte do governo, indicando quais investimentos devem ser feitos, como devem ser feitos, como devem ser gerenciados, que resultados se esperam e em que grau a iniciativa privada poderá participar. A interferência do governo, no entanto, vai além disso. A Embraco, empresa brasileira líder do mercado mundial de compressores, tem como sócia simplesmente a prefeitura de Beijing. Isenção de impostos, apoio político e institucional, financiamentos atrativos, são exemplos de ações do governo chinês com o intuito de promover o desenvolvimento. Claro que isso pode abrir um perigoso espaço para corrupção e favorecimentos, mas é impossível negar que os resultados até então alcançados sejam consideráveis. Também, não se pode diminuir o fato de não haver democracia e liberdade de expressão, mas esta é uma área cuja análise vai além dos objetivos desse artigo.
Voltando aos aspectos econômicos, para se ter uma idéia dos números, alguns exemplos: até pouco tempo, cerca de 15% das gruas existentes no mundo (aqueles guindastes utilizados em construções) estavam em Shanghai; hoje, 350 milhões de chineses têm telefone celular; já são 72 milhões de usuários de internet, e assim por diante. Números chineses.
Outro aspecto básico é o custo de mão-de-obra, de menos de US$ 1 por hora, calcado em um contingente quase que interminável de pessoas que se sujeitam a trabalhar 60 ou 70 horas semanais, muitas vezes em condições aos nossos olhos desagradáveis, porém muito melhores do que a alternativa de permanecer no campo, ganhando ainda menos e em condição ainda pior. Visitamos uma empresa que produz ar condicionado, a Chigo, em Guangzhou, cuja fábrica mostrava baixo grau de automação e utilização de grande quantidade de mão-de-obra. Ao ser questionado como competir com modelos ocidentais altamente automatizados e eficientes, o diretor da empresa, com MBA na Lingnan University, foi direto: "o custo de mão-de-obra para montagem de cada aparelho é de menos de US$ 1. Dessa forma, acreditamos ser possível competir com sistemas mais automatizados". Lógico que a conversa acabou aí. Às favas com a automação...
Engana-se quem acha que a China será o celeiro dos produtos de baixa qualidade, sem marcas fortes e com produção ancorada apenas em vantagens comparativas (algumas que provavelmente não durarão para sempre, como o uso dos recursos naturais e as condições de trabalho da mão-de-obra). Os chineses estão aprendendo, e rápido. A Lenovo, fabricante chinesa de computadores, comprou a divisão de PCs de ninguém menos do que a IBM. Com isso, ganha espaço no mercado global, expertise de marketing e acesso aos mercados ocidentais. O plano é fazer a transição da marca e estabelecer a Lenovo como a marca principal. Sem dúvida, ousado.
A capacitação intelectual é outro aspecto importante. Cerca de 6-8% dos alunos de MBA nos Estados Unidos e Europa são chineses. Como a procura é extremamente elevada, a seleção é intensa e apenas os melhores são selecionados. O resultado é um contingente respeitável de profissionais altamente qualificados, que aprendem os conceitos de gestão empresarial ocidentais, aprendem o modo de vida ocidental, e retornam para a China. Conhecem bem a si mesmo e ao inimigo, como se receita em "A Arte da Guerra". O inverso também acontece. Para ficar em um único país, são cerca de 2.000 canadenses de origem caucasiana estudando hoje na China. Segundo informações que obtivemos, o número de brasileiros na mesma condição não chega a uma dúzia. É para pensar.
A China, por fim, conhece muito bem seu papel no mundo. Sabe do seu poder de barganha e da importância para a economia mundial. São os primeiros negociadores do mundo. Comprar nas pequenas lojinhas na cidade velha de Shanghai é uma verdadeira aula de negociação. Você acaba comprando sem precisar, até como reconhecimento pelo talento do vendedor. Os chineses utilizam sua condição de locomotiva da economia mundial a seu favor. Querem, por exemplo, que fique na China a principal bolsa de negócios envolvendo commodities agrícolas, hoje em Chicago, nos EUA. Querem comprar soja diretamente dos produtores mais eficientes, seja no Brasil, na Argentina, ou outro lugar.
Ao retornar ao Brasil, é impossível não pensar no desperdício de recursos e talentos que teimamos em produzir, como se por aqui estivessem sobrando. As discussões em torno da implantação ou não da Instrução Normativa 51 são um exemplo. Independentemente da factibilidade da implantação ou não nesse momento, da necessidade ou não de adiamento, é lamentável pensar que dez anos de discussões sejam superficialmente resumidos nos dias que antecedem à sua tão esperada oficialização. É lamentável pensar nos recursos, nas expectativas desperdiçadas, no trabalho que precisava ser feito e não o foi, por diversas razões, na falta de infra-estrutura que sempre se soube existir, na supressão do importante programa de treinamento e capacitação, sem o qual o PNMQL fica capenga, na esperada pressão, política ou não, que poderia se desenvolver nesse cenário às vésperas da implantação. Tudo isso, de certa forma, era previsível.
Não há culpados, senão todos. O governo? Sabe-se da dificuldade de recursos, da falta de apoio, da boa vontade que existe no âmbito técnico, nas armadilhas políticas que fazem parte do contexto. As indústrias? Vem fazendo a sua parte, pelo menos as de grande porte, que têm mais recursos e condições de pensar em mais longo prazo. Os produtores? Precisam garantir o seu, melhorar a eficiência, ter mais competitividade. O que vem faltando no processo, enfim, é o planejamento e a implementação chineses, um projeto que permita que, ao cabo de 10 ou 15 anos sejam alcançados os resultados esperados. Talvez esteja faltando um pai para a criança.
O problema não é o adiamento ou o não adiamento. O problema é fazer o que precisa ser feito. De nada adianta adiar para 2008 se a lição de casa não for feita. Pode-se, por outro lado, não adiar e colocar a mão na massa imediatamente, criando as condições para que os resultados sejam alcançados.
Um ponto que passa despercebido - e que é positivo - é que mesmo os grupos contrários falam em adiamento e ajustes, não em supressão. Ou seja, há consenso da necessidade e da inevitabilidade, o que reflete uma importante convergência, que vem sendo pouco explorada. Outra convergência é que ninguém considera que, do dia para a noite, a IN 51 estará implantada e todos os problemas superados. Outra convergência. A questão, no meu modo de ver, é se criar as condições para que se evolua como desejado. E, para isso, é necessário planejamento, execução e correção de rumos, se necessário.
Uma possível solução, considerando o impasse em questão, seria não adiar a IN 51, mas criar um período tampão de, digamos, 12 meses, período em que a IN 51 seria educativa. É como quando se instala radar nas cidades. Por um período, não haverá punição. Nesse período, os ajustes seriam feitos: seriam cadastrados os produtores, os laboratórios receberiam os ajustes finais, seriam definidas as políticas de ação em relação àqueles cujo leite estivesse fora dos padrões, seriam feitas palestras de esclarecimento pelo país inteiro, seria estruturar o programa de capacitação e treinamento, seria alterar e aprovar o RIISPOA. Enfim, seria fazer aquilo que precisava ser feito, sem abdicar da implantação imediata da lei.
O objetivo, ao trazer essa sugestão à mesa, é melhorar as condições para o sucesso da IN 51. A lei, se existe, precisa ser cumprida. Para tal, é necessário criar as condições para que seja cumprida. A lei não pode ser educativa, a não ser que sua própria redação comporte essa possibilidade por um período de tempo. O risco, ao não se fazer isso, é a lei "não pegar", como se costuma dizer. O risco de adiar mais uma vez é matar o programa pelo cansaço e descrédito. É o momento, talvez, de se espelhar no que a China tem de melhor: o planejamento, o foco na execução, a visão de longo prazo, o não-desperdício de recursos, tempo, pessoas.
PS1: O tema é polêmico e, dentro disso, gostaria que os leitores se manifestassem, enviando comentários, críticas e sugestões para nossa redação.
PS2: Leia artigo anterior sobre o tema: Instrução Normativa 51: Somente uma "boa idéia"?
PS3: a seguir, algumas fotos da China
Região de Pudong, em Shanghai (16 milhões de habitantes!), um campo de arroz há apenas 15 anos
Lácteos em gôndolas do Carrefour em Beijing. O leite UHT custa cerca de R$ 1,70-1,80 o litro
Escritório da Chigo, empresa que produz ar condicionado em Guangzhou