Uma das principais solicitações dos produtores de leite é o estabelecimento de um preço mínimo para o leite, abaixo do qual seria proibido pagar.
Sem dúvida, em uma primeira análise, trata-se de uma medida de segurança que evita reduções excessivas em determinados momentos, daí se constituir em uma bandeira do setor produtivo e das várias CPIs que se formaram para discutir a questão da cadeia do leite.
Porém, a questão, embora possa e deva ser esmiuçada, até por representar uma possível solução, está longe de ser simples. Vejamos porquê:
- divergências regionais: o Brasil é um país continental, com realidades muito distintas tanto no aspecto geográfico, como economico-social. Um produtor no Rio Grande do Sul, por exemplo, se depara com vantagens e desvantagens competitivas diferentes do paulista, ou do baiano, ou ainda do matogrossense. Disso, depreende-se que um preço mínimo universal - sem falar em possíveis diferenças de qualidade, que fazem também toda a diferença - é um foco de discussões eternas, como as que envolvem times de futebol, simplesmente porque o preço que remunera adequadamente uma região, não remunera outra. Aliás, essa é uma das razões (não a única, sem dúvida) pelas quais determinadas regiões vêm aumentando a produção, ao passo que outras estão estagnadas. Um preço de R$ 0,30/litro, por exemplo, pode ser interessante para determinado produtor em determinada região/sistema de produção e viável para a indústria mesmo incluindo fretes mais longos para os centros de consumo, mas pode não remunerar adequadamente outro produtor, às vezes localizado próximo aos principais centros de consumo. A conseqüência de um preço mínimo "médio" é clara: grande estímulo ao desenvolvimento de algumas bacias em detrimento de outras. Claro que um preço mínimo inflado resolveria esse problema para os produtores localizados nas regiões, digamos, de custo mais elevado, e poderia inviabilizar o transporte de leite das regiões de fronteira, pelo menos em relação aos produtos de menor valor agregado e maior teor de áua (principamente o longa vida) mas é preciso lembrar que esse preço não pode resultar em aumentos significativos nas gôndolas dos supermercados...
Além das diferenças geográficas e socio-econômicas, há a questão dos incentivos existentes em determinadas regiões, mas que inexistem em outras. Há programas de financiamento com juros reduzidos e longo período de carência; há governos interessados em fomentar a produção de leite. Tudo isso joga ingredientes no caldeirão da discussão do preço mínimo. Isso, sem falar nas diferenças de qualidade, inclusive com amparo legal, considerando que os produtores do Centro-Sul terão de adotar as novas recomendações de qualidade antes dos produtores do Norte e do Nordeste.
Pode-se argumentar que isso faz parte do mercado e que essas diferenças de competitividade devem ser exploradas, tornando o país mais competitivo. Ora, se produzir coco no cerrado é mais rentável, que seja produzido coco nessa região ! Porém, todos sabem que há mais fatores envolvidos nessa questão, como a importância política da atividade, a geração local de empregos, etc., daí a enorme dificuldade de se estabelecer um preço mínimo universal.
Dessa conversa, conclui-se que deveríamos pensar em preços mínimos regionais, uma vez que o desvio-padrão de cenários é muito grande. E aí, convenhamos, a porca realmente torce o rabo, porque os interesses regionais serão ainda mais expostos. Considerando que essas dificuldades sejam superadas, vem uma outra questão:
- problemas relacionados à planilha de custos: desde que acompanho o setor, existem divergências a respeito das planilhas de custo de produção. Parte das divergências é de menor relevância, mas outras são significativas no cômputo do custo de produção. Usa-se custo de produção, ou custo de oportunidade, por exemplo, em relação aos volumosos e grãos produzidos internamente ? Remunera-se a mão-de-obra familiar ? Computa-se o custo da não-aplicação de adubos e corretivos, que deprecia a terra, mas não incorre necessariamente em elevação dos custos no momento ? Considera-se o custo de oportunidade da terra ? Essas divergências não são meramente considerações teóricas e impactam definitivamente no preço que o produtor considera remunerador ou não. Obviamente, partimos aqui do pressuposto que a grande maioria dos produtores não avalia seu negócio do ponto de vista capitalista. A implicação prática é que, mesmo recebendo preços que teoricamente, de acordo com a correta avaliação dos custos, seriam insuficientes, a maior parte dos produtores se satisfaz, no curto prazo (e este curto prazo pode durar bastante !), com preços que cobrem pouco mais do que seus custos operacionais, mesmo porque suas outras alternativas de renda geralmente são de baixa atratividade.
Antes que o leitor considere que eu seja contra a aplicação de preços mínimos ou, pior, contra medidas que evitem distorções muito grandes na relação entre os elos, afirmo que não pretendi esgotar o assunto nesse artigo. Mais do que isso, esse comentário retrata mais minhas próprias dúvidas sobre o tema do que exatamente uma posição consolidada. Sendo assim, seria muito bom se recebessems comentários sobre os pontos acima mencionados, bem como outros que possam justificar ou injustificar a aplicação de preços mínimos, uma proposta que carece de uma análise mais aprofundada do setor, o que, definitivamente, não ocorreu até agora.