Em uma tarde de junho, estivemos na Embrapa Pecuária Sudeste para conversar com dois dos mais conhecidos técnicos que trabalham com leite no Brasil: Artur Chinelato de Camargo e seu colega André Luiz Novo. Juntos e com o apoio da CATI, desenvolveram o programa de Transferência de Tecnologia para Produtores de Leite, com foco em São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná. Através do programa, propriedades são transformadas em unidades demonstrativas e tem o compromisso, por quatro anos, de seguir as recomendações feitas em conjunto com a equipe da Embrapa e com o técnico local, responsável pela assistência. O programa, que decolou a partir de 2002, conta hoje com 145 unidades somente em São Paulo. Artur e André contam um pouco da experiência acumulada, mas muito mais do que isso: entram no debate a respeito da exclusão social, tangenciam a questão ambiental, comentam sobre os desafios que a produção de leite terá frente à expansão da cana-de-açúcar e mostram como é possível competir, mesmo (e principalmente) em pequenas áreas e partindo literalmente do nada. Vale a pena ler, reler e refletir sobre a entrevista feita pelos dois, de forma exclusiva, ao MilkPoint. Boa viagem!
MilkPoint: Como funciona o programa de Transferência de Tecnologia para Produtores de Leite, com foco na Agricultura Familiar?
Artur Chinelato de Camargo: É selecionada uma propriedade de leite por município, que é assistida por um técnico local. Essa propriedade passa a ser a unidade demonstrativa do município, onde serão implantados os conceitos técnicos que nós levamos. Ao entrar para o programa, o produtor dessa unidade tem direitos e deveres. O direito dele é ter assistência técnica da Casa da Agricultura, da Emater (Paraná), do Senar (no caso do RJ). Os deveres são deixar a propriedade aberta para receber visitas dos vizinhos e de técnicos e produtores de outras regiões e municípios, fazer o exame de brucelose e tuberculose no início (isso, aliás, não deveria nem fazer parte das exigências, pois é o mínimo que se espera) e fazer sempre o que foi combinado: se foi combinado plantar 1.000 metros quadrados de cana, tem que plantar 1.000 metros quadrados de cana! Se o ideal era plantar 1 hectare mas a pessoa não tinha dinheiro, tudo bem, que plante menos, mas uma vez combinado esse menos, tem que fazer.
Em Peruíbe (SP), por exemplo, semana passada combinamos com a proprietária de plantar 200 metros quadrados de cana e 1.200 metros quadrados de tifton em 18 piquetes. A propriedade dela tem 0,6 hectare possíveis de se trabalhar, mas chove muito e, com adubo, a lotação será alta. Agora, se voltarmos lá daqui a 4 meses e ela não tiver feito o combinado, sai do projeto. Já cortamos 60 municípios, a maior parte, diga-se de passagem, em função do técnico. Se o produtor "pisar na bola", o técnico pode substituí-lo por outro do município. Mas se o técnico não der conta do recado e só tiver ele no município, não tem jeito, exclui-se o município.
André Luiz Novo: No Paraná e no Rio de Janeiro, onde estamos desenvolvendo também o programa, é diferente. Se o técnico for ruim, troca-se o técnico. Na CATI é que não pode em função de se ter um técnico por município.
MKP: Como é o processo de seleção do produtor em cada unidade?
ACC: Antes disso, faltou falar de mais um dever importante: fazer anotações. E é o que mais corta produtores do programa. Ele precisa anotar 7 itens básicos, sendo 2 relacionados ao clima: temperatura máxima e mínima (e para isso ele recebe um termômetro) e índice de chuvas, através de um pluviômetro. Há 2 itens relacionados a dinheiro: o que ele gastou na atividade e o que ele ganhou, de forma a fazer o fluxo de caixa. Na dúvida, eu digo para colocar tudo. Tem gente que coloca corte de cabelo, mas tudo bem, pode por. Na hora de colocar na planilha de custos, evidentemente esse tipo de coisa precisa ser retirado. Por fim, há 3 coisas relacionadas ao gado: anotar as parições (quando, quem e o quê), as coberturas e controle leiteiro, pelo menos uma vez por mês, nem que seja no balde, para ter uma idéia. Feito isso, o produtor está dentro do projeto. Veja que independe do tamanho da propriedade, do dinheiro do produtor, etc. A maioria, aliás, é extremamente pobre.
A menor propriedade é essa de 0,6 ha em Peruíbe e a maior, de 200 ha em Águas de Santa Bárbara. Há produtores que não tinham nenhuma vaca quando começaram no programa; as vacas foram compradas depois via PRONAF ou FEAP. Não importa se é no morro, terra plana, areia, terra roxa...Quem seleciona não somos nós, mas sim o técnico, afinal de contas aquela vai ser a sala de aula para ele, não para mim ou para o André. Preferimos propriedades pequenas porque ela "agride" mais o visitante. O sujeito [visitante] chega, por exemplo, em Valentim Gentil e vê uma propriedade de 3,5 hectares produzindo 400 litros de leite por dia. Ele vê que o produtor tira nessa área mais do que ele produz em 25, 30 hectares. A reflexão é imediata, ele vê que tem mais terra, mais dinheiro, mais condição do que o outro, como afinal o outro tira mais leite do que ele?
Não temos, por outro lado, nada contra propriedades de maior porte participarem do programa, como é o caso de Águas de Santa Bárbara, onde o proprietário é referência no município. A única restrição é se o produtor tiver, além da propriedade, outra atividade, pois aí as pessoas vão dizer que o produtor em questão só faz o que faz porque tem outra atividade. Esse produtor pode entrar no projeto, mas não como unidade de demonstração. O visitante precisa se sentir atingido ao visitar uma unidade, precisa questionar como o produtor, na maior parte mais pobre do que ele, conseguiu fazer.
Artur: "A menor propriedade que está no projeto tem 0,6 ha de área a ser trabalhada. Preferimos propriedades pequenas por ela 'agride' mais o visitante".
Isso me fez também refletir a respeito do rebanho da própria Embrapa. Antes desse projeto, eu achava que ele tinha uma importância muito grande para difusão, e não tem, pois o sujeito vem aqui, acha tudo muito bonito, muito bacana, mas vai embora e diz que é coisa do governo, tem asfalto até a porta, tem 20 tratores, tem 200 pessoas, estagiários... Nosso papel aqui é gerar pesquisa e dinheiro para se manter, porque não vem dinheiro nenhum do Tesouro.
MKP: Aqui em São Paulo só técnicos da CATI podem participar?
ACC: Não, outros podem também, mas o técnico tem que se dispor a trabalhar nessa propriedade sem remuneração, pois ela não tem condições de pagar ninguém, pois é tudo propriedade muito pequena, gente muito pobre. Mas há técnicos autônomos trabalhando, como em Getulina, tem a Coonai, a Confepar no Paraná, a Cooperativa de Guaratinguetá. Já tivemos até laticínios participando, mas se o produtor mudar de laticínio no meio do projeto, como é que fica? O trabalho não pode parar no meio. Na cooperativa é mais difícil de ocorrer. Na Coonai, o trabalho é feito junto com a CATI e com o Sebrae. É muito importante também que o técnico tenha continuidade no projeto, pois ele será o multiplicador. Se o técnico não estiver interessado, não dá para trabalhar, a gente não pode perder o tempo com gente ruim, que não vai fazer a coisa andar.
MKP: Como surgiu a idéia do projeto?
ACC: Iniciou-se em 1998 e tudo surgiu de uma reunião que fizemos em Quatis, no RJ, onde um senhor chegou até mim e disse: "muito bonito, mas o que você falou de nada vai servir". Ao perguntar o porquê, ele respondeu: "você vai me ajudar a implantar o que disse?". Não, respondi, preciso ir embora. Ele retrucou: "então realmente não servirá, porque você nos mostrou o paraíso, como ganhar dinheiro com o leite, mas quem é que vai nos ajudar a chegar lá?"
Voltando para casa, pensei comigo que aquele homem talvez tivesse razão. Dar uma palestra e falar para a pessoa que "paraíso o existe", mas não explicar como chegar lá, não mostrar as ferramentas, é uma maldade. Era preciso dar um passo a mais, não ficar apenas na palestra. Dar palestra é algo muito bom para a gente que faz, mas para quem houve, aquilo é um tormento, pois ele vê que está fazendo errado, mas não sabe o que fazer para acertar. E não será em 2, 3 ou 4 horas de palestra que ele aprenderá, afinal não tem como ensinar um curso completo de manejo de pastagens, por exemplo, nesse tempo.
Conversei então com o André e outros colegas da unidade, sobre o que poderia ser feito. Assistência técnica não poderia, porque não é o negócio da Embrapa, isso deve ficar a cargo dos órgãos oficiais, CATI, EMATER, além de departamentos técnicos das cooperativas e laticínios, bem como profissionais autônomos.
Talvez, ponderamos, eles [técnicos] não estejam muito a par de todos os aspectos envolvidos na produção de leite, de forma que alguém sugeriu a possibilidade de treiná-los. Aí eu disse que não adiantava, pois podemos ficar 1 dia, 1 semana, 1 mês em treinamento, e o resultado será muito baixo, essa experiência já tivemos no passado. Coloca-se 50, 60, 300 pessoas e poucas vão absorver.
Era preciso fazer algo na prática. Levantou-se então a idéia de trabalhar com propriedades no campo, como se fossem salas de aulas. Trabalharíamos 4 anos com cada fazenda, com visitas a cada 4 meses, para poder entrar um bom número de propriedades. Com isso, vamos aplicando os conhecimentos que existem e o sujeito vai vendo, na prática, como funciona. Um desses técnicos nos disse uma vez que a teoria eles até sabiam, mas tinham medo de aplicar porque nunca haviam feito. O que eles [técnicos] faziam era repetir o que o produtor falava, pois assim a chance de ter a culpa pelo erro era zero. Em resumo, não se queimavam, mas não resolviam nada também. Tinham aqueles chavões, de que cana era só para vaca de até 10 kg de leite, vaca de alta produção tinha que levar junto o aparelho de ar condicionado, bobagens que não tinham sentido.
Daí começamos a aplicar os conceitos, deixando bem claro que o que desse errado seria culpa nossa, de forma a proteger o técnico local. Aí, vendo o resultado, o técnico se sentia encorajado a aplicar os conceitos em outras propriedades.
MKP: A falta de capital não é um limitante?
ACC: É possível contornar. Pegue por exemplo fosso de ordenha: é caro, não dá para fazer. Tem um produtor que fez na terra. Eu recomendo fazer fosso de ordenha na terra? Lógico que não, mas é para começar. Quando ele tiver um dinheiro, vai fazer de alvenaria. Agora, se para ir até São Paulo você precisa ter uma BMW, nunca vai... Me perguntam quanto custa a irrigação. Eu digo desde zero até R$ 6.000/ha. Como zero, me perguntam? "Ué, se conseguir tudo emprestado de cunhado, vizinho, parente, amigo...". Claro que isso é para começar, depois com o dinheirinho ganho ele vai colocar aspersores, um "timer", e aí por diante. Se para começar precisar ter tudo isso, ele não vai fazer.
ALN: Nós, técnicos, temos essa mania. Se há uma ferramenta espetacular, queremos aplicar essa ferramenta. E às vezes não é possível, algo muito mais simples resolverá o problema da pessoa.
ACC: Você precisa ganhar a confiança da pessoa. Quando você visita uma propriedade de mais de 10, 15 hectares, você já sabe o que deveria falar para ele, mas não pode falar da primeira vez, porque ele não acredita: não dá para dizer que ele pode arrendar parte da área para cana e investir para produzir leite no restante, com 10 vacas por hectare. Ele não vai acreditar, pois ele tem, nos 30 hectares dele, 30 vacas morrendo de fome. A primeira coisa que a gente faz é mostrar para ele, pegando uma área pequena. E ninguém é bobo. Ele vai passar um verão colocando 5 vacas em 0,5 hectare; ele vai ver que precisará de somente 6 hectares para todo o rebanho em lactação. Daí você pode falar sugerir a ele arrendar 20 hectares para a a cana, a R$ 1.000 o hectare. É quase 1.500 reais por mês - aliás, o casamento leite e cana é excelente - O sujeito fica olhando pensativo e nessa hora que entra a mulher no meio, dizendo "arrenda já"...(risos). A função do técnico é ajudar o produtor a fazer esse tipo de conta para auxiliar o produtor a tomar a decisão, mas ele [o produtor] precisa estar convencido.
MKP: Quantas unidades foram montadas?
ACC: Hoje, são 145 unidades somente no Estado de São Paulo, uma por município. São 60 no Paraná e 15 no Rio de Janeiro. São 250 técnicos hoje em treinamento. Sabemos que nem todos serão bons, mas se tivermos 15 a 20% de gente 'top", já estamos satisfeitíssimos, pois serão 40, 50 técnicos de primeira linha para fazer o mesmo serviço que estamos fazendo hoje. Inclusive na região de Itapeva (SP), quem já está comandando é um técnico de Cerqueira César (SP), que está está no quarto ano do programa e que hoje faz lá o papel que nós fazemos nas demais regiões.
MKP: Tudo isso ocorreu em menos de 10 anos?
ACC: Na verdade muito menos! De 1998 a 2001, estávamos aprendendo, testando a metodologia e a estratégia de ação. A coisa começou a pegar mesmo de 2002 em diante. Erramos muito no começo, não deixávamos nenhuma tarefa combinada, nós é que fazíamos tudo, o técnico só ficava olhando. Fazíamos todos os controles, dava um trabalho danado... um dia me peguei em um sábado com uma pilha de análises de solo, umas oitenta, e fazendo recomendação para todo mundo. Alguma coisa estava errada, porque eu sabia fazer; quem tinha que fazer era o técnico local! Essas coisas nós fomos mudando. A partir de 2002, o programa começou a tomar a cara que tem hoje, mas está sempre em constante evolução. De 2002 para cá, a coisa pegou fogo, virou uma bola de neve. O André teve há poucos dias em Rondônia, há demanda em Sergipe, Espírito Santo... Mas a gente só vai fazer se tiverem técnicos locais. Não vamos lá para dar palestra nem dar assistência, mas sim promover o desenvolvimento via esses agentes.
MKP: E qual é a estimativa do número de propriedades atendidas pelos técnicos?
ACC: Olha, mais de 1.000. Pegue por exemplo Pindamonhangaba. Já são 30 fazendas. Guarantiguetá, mais umas 20. Na região de Dracena (oeste de SP), umas 200 propriedades em 8 municípios.
Artur: "Quanto paga um arrendamento de cana? R$ 500, 600, até R$ 1000 por hectare nas áreas mais nobres? Isso é muito pouco perto do que estamos produzindo com leite. ".
MKP: Você acompanha de perto a situação do leite em São Paulo. Porque a produção vem caindo?
ACC: A cana sem dúvida é um dos motivos. Ou competimos com ela, ou entregamos os pontos. E claro que há como competir. Quanto paga um arrendamento de cana? R$ 500, 600, até R$ 1000 por hectare nas áreas mais nobres? Isso é muito pouco perto do que estamos produzindo com leite. A cana-de-açúcar vai invadir as áreas de pecuária de corte extensiva. Isso não tem dúvida, pois a cana necessita de áreas planas, por causa do corte mecânico, que vai eliminar dois problemas, os trabalhistas e os ambientais, tanto que se vendeu colheitadeiras de cana como água no Agrishow... E porque vai invadir a pecuária de corte? Porque tem produtividade de 4 arrobas/ano por hectare. A R$ 50, dá R$ 200 brutos, não chega nem perto do arrendamento de cana. Ou ele intensifica ou vai largar mão.
Na pecuária de leite, vão sobrar áreas muito pequenas, que não são nem Área de Proteção Permanente, nem áreas planas. E a pecuária de leite se faz em áreas pequenas. Pegue essa propriedade de Valetim Gentil, que produz 400 litros em 3,5 hectares. Isso dá 115 litros/ha/dia, dá quase 42.000 litros/ha/ano. Se considerarmos uma margem de lucro de R$ 0,05/litro - muito pouco, não? Todo mundo está conseguindo de R$ 0,10 para mais - dá mais de R$ 2.000 por hectare/ano de lucro. Isso compete com qualquer atividade. Se colocar R$ 0,10 de lucro por litro, então...
Agora, a pecuária leiteira vai ser feita em áreas pequenas, ninguém vai pegar 10.000 hectares e produzir leite, mas sim 10, 20, 30 hectares. E digo ainda que é sorte daquele que tem 50 hectares: pode arrendar metade para cana, se capitalizar, e a outra metade fica com leite; ou arrendar 80% para cana. O que você me diz da propriedade da dona Madalena, em Ibirá, de 2 hectares - ela vai arrendar para cana? Não dá, mas leite dá.
Trabalhamos em assentamentos também, em Presidente Alves, Birigui e Brejo Alegre, na região de Araçatuba. Precisa ver que festa que vira! Eles ganharam 20 hectares, mas quiseram "bater na gente", achando que era muito pouco, iam fazer greve, etc. Daí levamos os produtores para visitar a dona Madalena. Tomaram um susto, porque a propriedade dela tinha 2 hectares, tirando 130 litros e com projeto de chegar a 200 litros. Resultado: todos ficaram quietos. Chegaram em casa, pegaram três quartos da propriedade e arrendaram para cana. Sobraram 5 hectares, que são utilizados para o leite, sendo investido parte do dinheiro ganho no arrendamento na área restante. O que faltava? Só o exemplo, mais nada. E eles têm a sorte de ter mais terra do que a dona Madalena.
MKP: Você acha que esses pequenos produtores produzirão um volume significativo do leite?
ACC: Não estou preocupado com isso. Uma vez me perguntaram quanto esperávamos aumentar a produção no Estado de São Paulo com esse programa, e eu disse que nossa preocupação não era com os números, mas com as pessoas. É preciso criar uma alternativa para essa gente, caso contrário eles vão sumir. É preciso segurar esse sujeito no campo, se não vamos aumentar cada vez mais o problema social. E essas propriedades podem gerar mais dinheiro e melhorar a vida do produtor. Às vezes o sujeito está lá, com 20 hectares vivendo em uma miséria danada, quando não precisava. Há produtores no projeto que colocam todo mês R$ 3000 a R$ 4000 na poupança, com 6 alqueires de chão aproveitados. Ele já terminou de construir a casa, comprou carro, o filho está em faculdade paga, tirando hoje 800, 1000 litros, começando com 130 litros em 2001, 2002.
E tem um outro aspecto. A gente não quer que todo mundo produza leite. O que queremos é que o produtor ganhe dinheiro! Se não for com leite, eu falo para acabarem com a atividade e fazerem outra coisa. Mas precisam ganhar dinheiro, caso contrário vão viver do quê? Eu falo que já está difícil para quem tem nível superior. Abre um concurso para lixeiro e aparece dentista, engenheiro, médico, advogado... onde esses produtores vão parar? E a gente fica triste não pelo produtor abandonar a atividade, mas sim por não ter tido a chance de trabalhar. E quantos chegaram para mim e disseram: "puxa, se você tivesse chegado aqui há um ano eu não teria acabado com a atividade, pois não sabia que minha propriedade de 3 ou 5 alqueires poderia ser rentável".
MKP: Esse pessoal ficou à margem do desenvolvimento...
ACC: E como fazer chegar a informação a eles? Não dá para fazer um programa de televisão, pois há uma individualidade, para uma pessoa precisa ser falado de um jeito, para outra, de outro. A função do extensionista é fazer com que todos cheguem ao mesmo lugar, mas por caminhos diferentes, de acordo com as características de cada um.
Artur: "Às vezes o sujeito está lá, com 20 hectares vivendo em uma miséria danada, quando não precisava.".
MKP: O quanto do sucesso do trabalho é devido à informação técnica e o quanto é de conseguir motivar esse produtor?
ACC: Eu diria que 80% é motivação, 20% é conhecimento. Já limitação financeira, não tem, porque o sujeito começa do jeito que for, além do que existem recursos do PRONAF e do FEAP, em São Paulo, que dá para eles utilizarem.
ALN: E há também muito auto-financiamento, ou seja, utilizando recursos da propriedade o produtor consegue se financiar.
ACC: Sem dúvida. Em uma propriedade de Lurdes, na região de Araçatuba, o produtor tinha 3,5 hectares apenas e se surpreendeu de ter sido escolhido, pois não tinha dinheiro. Ele produzia 12 litros por dia, com 6 vacas no total, umas 3 dando leite. Uma miséria total. Ele tinha 2.500 metros quadrados de braquiária decumbens rapada, uma caninha vagabunda e o resto era forrado de "guanxuma forrageira", uma espécie nova que ele tentava fazer a vaca comer (risos). Ele cortava capim de beira de estrada, fazia bicos em outras atividades, mas queria ficar na propriedade se conseguisse se manter. Começamos pensando em dividir a brachiária em piquetes, mas ele não tinha recursos. O vizinho cedeu bambus, ele pegou resto de mangueiras no lixão, pegou o fio de um arame farpado, mas ainda assim faltava dinheiro para comprar o aparelho para a cerca elétrica, que custaria pelo menos R$ 40. Aí, em uma das nossas visitas, um produtor maior (aliás, nas visitas vai um monte de gente, vários produtores participam da discussão, o que é ótimo, pois cria-se um ambiente em que todo mundo quer resolver o problema do sujeito, e ao fazê-lo, resolve-se também o problema de cada um) disse que tinha um aparelho sobrando e emprestou ao produtor, condicionando o pagamento a quando este tivesse condições. Pronto, estava resolvido o problema do aparelho. Aliás, essa solidariedade, no meio rural, é muito importante.
Faltava, porém dinheiro para o adubo. Um outro produtor então disse que estava procurando alguém para limpar o curral e que, se o produtor quisesse, poderia limpar e ficar com o esterco. Para encurtar a história, essa conversa ocorreu em 2002 e hoje ele está com 150 litros de leite por dia. Ele foi melhorando as pastagens, aí se animou, plantou um pouquinho de mombaça, uma cana melhor, mas o salto grande que ele deu foi a compra de vacas, através do financiamento (FEAP). Se você falasse para ele tirar o financiamento no começo, nem morto ele faria, porque não tinha confiança. Na hora que ele viu que funcionava, que a vaca comia, dava leite, emprenhava, ele criou coragem para captar o recurso.
ALN: É importante dizer que ele teve também o apoio e o compromisso da Embrapa e do técnico do município de fazer um trabalho de longo prazo. Porque ninguém chega e já sai adubando pasto? Porque não sabe como fazer e nem quem vai acompanhar pelo período que precisa.
ACC: Teve um produtor da região de Tupã, que foi muito sincero. Na primeira visita, ele me perguntou quem garantia que voltaríamos lá a cada 4 meses nos próximos 4 anos. Eu falei para ele ligar para vários produtores que estavam no sistema há vários anos. Não falhamos nenhuma vez, de 2002 para cá. Após o término do período de 4 anos, a continuidade fica por conta do técnico, que passa por uma reciclagem anual, saber das novidades de manejo, etc. mas o "beabá" o técnico já sabe fazer, é com o "beabá" você muda a vida de muita gente.
MKP: Fico me perguntando aqui em relação à qualidade do técnico que é formado hoje pelo Brasil. Claro que há exceções, mas a impressão que fica é que ele vai aprender depois de formado.
ACC: O problema vem desde a formação. A quantidade de agrônomos que pegamos e que não sabia fazer uma recomendação com base em uma análise de solo era impressionante. Tem gente que não sabe fazer "regra de três", para fazer cálculo de porcentagem, é muito grave. E olha que é gente interessada em fazer as coisas, em aprender.
Tinha um produtor na região de Cerqueira Cesar cuja fazenda parecia uma lixeira, de tão suja e abandonada. Perguntei para a filha dele o que ela esperava da atividade no futuro e ela disse que nada. Isso em cima de uma terra roxa, terra de primeira... Aí fiquei pensando: "porque formamos tantos agrônomos, zootecnistas e veterinários, se não conseguimos dar uma resposta mínima para essa situação, para viabilizar uma propriedade de 6 alqueires?"
MKP: Você acha que o leite será predominantemente uma atividade de pequeno produtor, ao contrário do que ocorreu em outros países, como Argentina e Nova Zelândia, ou é uma questão de tempo para também termos uma concentração na produção?
ACC: O modelo da Argentina é tecnicamente viável e economicamente rentável, mas foi socialmente um desastre. Foi altamente excludente, em 10 anos sumiram metade dos produtores da Argentina. Aqui nós estamos tentando fazer um sistema que seja tecnicamente viável, economicamente rentável, socialmente justo e ambientalmente sustentável. Ou, pelo menos, para todo mundo que quiser. Se o sujeito quiser crescer, atingir por exemplo 20 alqueires com leite, que fique à vontade. Se um produtor vai fazer ou não, é uma decisão de cada um.
Em relação à produção de leite em São Paulo, vamos considerar o arrendamento em torno de R$ 1.000/hectare e a receita de um fornecedor direto de cana em torno de R$ 2.000 a R$ 2.500 livres por hectare. Se um produtor produzir leite como estamos recomendando, ele vai conseguir barrar a entrada da cana, mas ele não vai pegar 1.000 hectares e transformar em leite, caso contrário a gente produziria todo o leite do mundo aqui.
Artur: "Estamos tentando fazer um sistema que seja tecnicamente viável, economicamente rentável, socialmente justo e ambientalmente sustentável".
ALN: Quem começa com 50 a 100 litros, passa por um processo educacional, para conseguir produzir 300, 400 litros por dia, pega um financiamento e pode continuar crescendo. Mas o dinheiro no Brasil é muito caro. Até uma certa produção, ele toca com a família, com os vizinhos, mas e depois? Para passar de 1.000 litros para 5.000 litros/dia, precisa de capital.
ACC: Depende muito do desejo do produtor. Tem produtor que não quer produzir uma quantidade muito grande de leite, e é direito dele escolher. Nós acabamos de fazer uma planilha para planejamento de propriedade. A primeira pergunta é: "Quanto você quer ganhar?". Nós começamos então de trás para a frente. Por exemplo, um produtor falou que queria ganhar R$ 3.000 livres por mês. Nós fizemos a conta e precisava de 16 hectares, já incluindo a área de preservação. Então, depende do que ele quer.
ALN: Depende do objetivo de vida dele. Você pega um produtor que estava passando fome e em alguns anos ele passa a ganhar R$ 500 ou 600,00 por mês, ele está no céu. Você fala para esse produtor que ele tem terra para tirar 5.000 litros de leite por dia. Ele pára e diz que está bom assim.
ACC: Se ele for eficiente, tiver uma margem de lucro boa, ele vai permanecer na atividade. Se ele trabalhar com lotações altas, vai conseguir se manter. Por isso que estão vindo esses estrangeiros comprar terra aqui no Brasil. Outro dia veio um neozelandês aqui e perguntou como conseguíamos colocar tantas vacas por hectare. A questão é o clima que temos, que é muito mais favorável. Essa é a diferença básica.
MKP: Quais são as regiões do Brasil mais favoráveis para a produção de leite?
ACC: Quanto mais ao norte do país, melhor, pois há menos efeito do frio, além da proximidade com o equador. No Ceará, por exemplo, são mais de 400 propriedades no Projeto Pasto Verde. É uma loucura, se eu tivesse que comprar terra, compraria no Nordeste. Quanto mais ao sul, mais difícil é, pois menos se usa o pasto, sendo necessário trabalhar mais com o cocho, resultando em custo de produção mais alto, com menor tolerância à queda do preço do leite. Mas dá para se trabalhar também, embora seja necessário ser mais eficiente nas outras áreas da atividade.
Artur: "se eu tivesse que comprar terra, compraria no Nordeste".
E sempre há alternativas interessantes. Agora, por exemplo, está todo mundo [em SP] plantando aveia no inverno, em cima do capim de verão. A razão disso é simples: de maio a agosto, não havia pastejo e tudo parava, o pasto ficava seco. Além disso, até recuperar, levava o mês de agosto, setembro, só ia produzir mesmo em outubro. Em 2004, vimos no sudoeste do Paraná a semente de aveia sendo jogada no meio do mombaça. Mas lá chovia no inverno. Testamos então a aveia irrigada com um produtor do norte do estado. Foi um sucesso! Mas a grande vantagem é que, a partir de agosto, quando a temperatura começou a aumentar, o pasto tropical começava a se recuperar e, em setembro, já tinha pasto com lotação acelerada, por volta de 10 vacas/ha. Ganhamos, então, 1 mês, além da forrageira de inverno, que tem qualidade. A lotação, que era de 2 vacas/ha no inverno, pulou para 6, ou seja, tiramos mais 4 vacas do cocho, reduzindo o custo. Aí virou "o cão", todo mundo implantou. Hoje, na verdade nós plantamos aveia no inverno mais como uma desculpa para irrigar o pasto no inverno também... Se fizer calor, o pasto tropical vai ficar bonito, se fizer frio, será o temperado. Quando o clima esquenta, nosso capim já está em pleno desenvolvimento.
ALN: Cada microregião sempre tem vantagens e desvantagens. Pegue por exemplo o Vale do Paraíba: a topografia é ruim, mas tem água à vontade. O desenvolvimento depende muito da existência, por exemplo, de uma empresa que faz um bom trabalho na região. A Confepar, lá no Paraná, é um exemplo. É uma coisa espetacular. Às vezes é melhor você estar lá, que é um pouco mais frio, do que aqui, do ponto de vista de condições para produção. Mas pode-se produzir leite em qualquer lugar. Vamos pegar o sul: é mais frio, mas chove de forma mais regular e tem animais melhores para se comprar.
ACC: Quando começamos a falar em trabalhar no Vale do Paraíba, disseram que era ruim, uma região decadente. Eu perguntei: "Tem gente boa lá?". Isso é o que interessa. E tinha. Tinha um monte de gente animada, querendo fazer, mas completamente perdida. Quando você chega para o sujeito e diz que dá para colocar 10 vacas por hectare, ele fica maluco. Começa a trabalhar nesse sentido e as adubações não passam de 20% do custo operacional, ficam entre 10 e 15% normalmente. E quanto melhor a propriedade, mais trabalhamos a fertilidade.
Ontem mesmo saiu uma reportagem no Globo Rural sobre estilosantes, que dava para trabalhar com 3 bois por hectare. Daí os produtores ligam aqui e querem saber se dá para usar. Para uma propriedade de grande porte, é ótimo, mas para propriedade pequena, não serve, precisa trabalhar com alta lotação.
Cada caso é um caso. Esse é o problema de revista, televisão, palestra. O técnico precisa pegar o que foi falado ou escrito e explicar ao produtor em que contexto deve ser utilizado. Essa é a função da extensão rural, e que no Brasil foi relegada ao quinto plano. No sul é mais presente, mas de resto, quase acabou.
Artur: "Quando começamos a falar em trabalhar no Vale do Paraíba, disseram que era ruim, uma região decadente. Eu perguntei: "Tem gente boa lá?". Isso é o que interessa. E tinha".
Outra coisa é que nós ensinamos o produtor a ver a propriedade como um todo. O sistema de pastejo é só uma ferramenta, e das mais simples que nós estamos usando. O que vem por trás é muito mais complicado, como o manejo do rebanho. Outro dia fomos em uma propriedade de 3 ha em Flórida Paulista, que não cria o bezerro. É eficiência máxima, mesmo porque não pode se dar ao luxo de criar bezerro. Mas como é a reposição? Ele tem 2, 3, 4 fornecedores de vacas, que vão repor o descarte do rebanho. O manejo dessas variáveis pode ser bem mais complexo do que o pastejo.
MKP: Que tecnologias são utilizadas para produzir essa quantidade de leite por área?
ACC: Nós exploramos o potencial de produção das forrageiras tropicais, usando a irrigação para ampliar o período de pastejo no ano, principalmente de agosto em diante, quando normalmente se tem temperatura e duração do dia já favorável, mas falta água. A diferença entre alimentar uma vaca de 15 kg/dia no pasto comparado com cana no cocho é significativa, cerca de R$ 1 por dia a menos, sem considerar a mão-de-obra para picar a cana. Se você ganhar 100 dias por ano por irrigar, são R$ 100 por vaca, se tiver 10 vacas são R$ 1.000. O sujeito consegue começar com um sistema bem precário de irrigação e depois vai mudando, coloca um sistema em malha, já com aspersores fixos, coisas assim.
MKP: Um problema crescente é referente à questão ambiental. A utilização de grandes doses de adubo não gera contaminação do lençol freático?
ACC: A planta come tudo. O Odo [Primavesi, pesquisador da Embrapa Pecuária Sudeste] fez uns trabalhos aqui e constatou que até 1.000 kg de N por hectare, você não encontra nada abaixo de 1,6 metro. A planta tropical é um absurdo! O nosso recordista de produtividade está em Dracena, com 13 vacas em meio hectare durante o verão inteiro, o que dá 26 vacas por hectare. Será que atingiu o limite? Não sei. Aí você pega os estrangeiros, com 2 UA/ha. Na Argentina, fizemos uma visita e vimos um experimento em que aumentou-se a lotação de 2 para 2,5 UA/ha. O potencial aqui é muito maior; no nosso grupo, nessa viagem, tinha gente com 8, 10, 12 vacas/ha. Produtividade é uma conta muito simples: lotação por área multiplicado pela produção individual. Se o deles é limitado a 2, 3 cabeças por hectare, não tem muito onde mexer, a produtividade depende da produção individual da vaca apenas. Se você for aumentando muito a produção da vaca você sai do pasto e vai para o confinamento, que é excelente mas tem um custo de produção mais alto. A Argentina é exportadora de leite e fica em uma sinuca de bico. Porque os "gringos" estão comprando terra aqui? Porque além de ser barato, tem essa possibilidade de se trabalhar com essa lotação fantástica. E dá para trabalhar com vaca de 18, 20 kg/dia, não precisa ser com vaca de 10 kg.
ALN: Eles não estão comprando hectare de terra, mas sim hectare de clima.
ACC: Pois é. Voltando ao ambiente, o leite inclusive resolve problema ambiental. Uma das razões do crescimento do leite no oeste de Santa Catarina está na solução do problema ambiental: o que fazer com o desejo de suínos? Jogar no milho ou na soja, não resulta em grande produtividade de matéria seca por área, no máximo 10, 12, 15 ton de MS/ha/ano. Daí surgiu a opção de jogar no capim, no tifton, e assim por diante. Como as áreas são pequenas, não compensa gado de corte, de forma que a solução acabou sendo o leite. O leite surgiu para resolver um problema ambiental, em todo o oeste catarinense. Por isso que a Aurora de zero passou para 500 mil litros de leite [por dia].
André: "Eles [estrangeiros] não estão comprando hectare de terra, mas sim hectare de clima".
ACC: Nós temos um potencial fantástico na agricultura, com a tal da cana. Quando os japoneses e norte-americanos aumentarem a % de álcool na gasolina, isso aqui vai virar o "cão", vão plantar cana até nos canteiros da Avenida Paulista! As áreas planas vão virar tudo cana-de-açucar. Vão sobrar para o leite as áreas marginais, que não dá para mecanizar, bem como pequenas áreas. Agora, com pecuária de corte, a coisa está brava, vai sobrar só gado de elite ou intensificada. A pecuária extensiva está com os dias contados. Você vai na região de Araçatuba e não vê um boi mais, só cana. Agora, veja a região de Tietê, Piracicaba, nas partes que não dá para mecanizar. Uma opção vai ser o leite, além de horticultura, fruticultura.
ALN: Agora a produção de carne em SP está aumentando. Uma possível explicação é que o nível tecnológico médio é tão baixo que qualquer coisa que o produtor faça, já melhora significativamente, seja dar uma mistura protéica, etc.
ACC: Tem umas coisas que não dá para entender. Você pega às vezes aqui em São Carlos mesmo, áreas enormes sem nada. Será que a pessoa não faz conta? Esse período, nos próximos 10 anos, vai ser muito interessante. Quem tiver eficiência, seja em leite, carne, café, laranja, vai ficar. Quem não tiver, vai sair mesmo.
ACC: Ainda falando de meio ambiente, no nosso programa, a parte ambiental é levada a sério. Os produtores precisam ter outorga para usar a água, fazer curva de nível, proteger as áreas de preservação. Aliás, hoje temos produtores que não se importam de "perder" uma área em função da proteção ambiental, pois sabem que se adubar mais as outras áreas, vão compensar. E não é só adubo químico, usamos muito esterco de galinha.
ALN: E é possível caminhar para reduzir o adubo químico ao longo do tempo, usando mais orgânico.
Artur: "[falando da cana em SP] Vão sobrar para o leite as áreas marginais, que não dá para mecanizar, bem como pequenas áreas. Mas dá para competir."
MKP: Dá para se falar em sistema de produção ideal, pelo menos em se tratando de São Paulo?
ACC: Pelo tipo de produtor que trabalhamos, acabamos seguindo um certo padrão (pastagens de verão, cana-de-açúcar), mas se o sujeito quiser fazer silagem, que fique à vontade. Mas ele começa a colocar no papel, e fica horrorizado com o custo. Há um certo preconceito contra a cana. Um produtor em Buritizal tem 3,2 hectares e está com 250 litros de leite por dia. Tem vaca de 30-35 kg/dia comendo cana. Virou romaria, todo mundo indo lá ver. A cana tem suas limitações, mas temos de usar, para tapar o período de baixa produção das pastagens, maio, junho e julho (com irrigação, fica só nesses três meses mesmo). Nós queremos sair o mais rápido possível do cocho. Quanto mais ao norte do país estiver, sai mais rápido e quanto mais ao sul, mais demora. Nós trabalhamos com esse sistema porque o produtor que atingimos não tem dinheiro para comprar maquinário, nem nada.
ALN: Além do risco ser menor com a cana do que com silagem de milho, por exemplo.
ACC: E também se o produtor tiver que aluguel, o custo fica proibitivo, mas se quiser fazer silagem, não tem nenhum problema. Se quiser fazer um sistema híbrido, pegar por exemplo os animais até 120 dias de lactação e colocar no confinamento, funciona bem, mas tem que ser animais de mais de 30 kg/dia na média. Para baixo, todo mundo na pastagem no verão e na cana-de-açucar no inverno. À medida que o produtor começa a controlar os índices de produção, ele vai se dando conta. Ele vê que tem vaca dando 6 ou 7 kg no mesmo manejo de outra que dá 15 ou 16 kg, sendo que as duas pariram na mesma época. Ele começa a ver que está perdendo dinheiro com a vaca de baixa produção. Aí pronto, ele acabou de ser contaminado pelo vírus da seleção do rebanho, viu que tem animal que não pode continuar no rebanho. Aí ele caminha para o que ele quiser. Se quiser caminhar para o girolando, para o holandês, jersey, ele decide, mas você vai mostrando para ele: os cruzamentos com zebuíno, o que vira em relação a problemas de persistência e duração da lactação, vai mostrando quanto perde, e ele vai ficando horrorizado. Aí ele começa a tomar a decisão de mudar. Mas ele é que tem que tomar. A gente só encaminha.
MKP: Em relação a raças zebuínas, tem havido esforços no sentido de melhoria da persistência. Como você avalia isso?
ACC: Olha, é difícil. Quando ele [o produtor] começa a ver o controle, ele constata. Claro que há animais superiores com sangue zebuíno, mas precisa-se ter um processo de seleção massal violento. Mas ao se comparar uma vaca com 95% de persistência com outra de 80%, a perda é muito grande. Quando ele faz o cálculo, se dá conta.
ALN: E tem a questão da desvalorização do macho leiteiro também, no caso do cruzado. Pela situação em que se encontra o gado de corte, não tem mercado. Se tentar criar até 1 ano, nem tem preço. E isso é significativo. Em Rondônia, visitamos duas propriedades onde a noção é que o lucro está no bezerro. Uma produzia 350 litros por dia, vendidos a R$ 0,28 por litro, a partir de 90 vacas em ordenha. Se você fizer a conta, no final do ano são quase R$ 40 mil por ano. Ele vendia 100 bezerros por ano a R$ 120, dando R$ 12.000 por ano, mas a noção econômica, errada, era de que ele ganhava dinheiro mesmo era com o bezerro, pois o fazia de uma só vez, ganhando uma bolada.
MKP: E o oposto disso, ou seja, fazendas no norte de São Paulo, por exemplo, com gado europeu puro? Tem funcionado?
ACC: Tem, mas o que eles estão fazendo é partindo para o cruzamento com o jersey, para reduzir o tamanho do animal. E não é modismo, mas sim para colocar mais animais na mesma área. Em vez de colocar animais com média de 550 kg, coloca-se animais com média de 450 kg de peso, coloca-se 20% a mais de animais na mesma área. Uma propriedade com 2 Unidades Animais/ha pode ter uma produtividade maior do que uma com 12 UA/ha, basta mexer nos fatores de composição do rebanho, persistência de lactação, que a vaca muda.
ALN: No pasto, o animal não vai expressar todo o potencial dele, então passa a ser interessante trabalhar com um animal menor, mas que produzirá o esperado.
Artur: "Pastejo com gado puro tem funcionado, mas o que eles estão fazendo é partindo para o cruzamento com o jersey, para reduzir o tamanho do animal".
ACC: Vamos trabalhar, por exemplo, com 10 UA/ha. Divide por 1,2, que é mais ou menos o fator considerando o que a vaca vai pesar (540 kg, para converter em cabeças, considerando 1 UA = 450 kg de peso vivo). Dá 8,3 cabeças/ha. Vamos trabalhar com uma composição de rebanho em que 60 a 70% são vacas (secas e em lactação). Assim, 8,3 x 60% dá cerca de 5 vacas/ha. Daí considere que 80% disso são vacas em lactação. São 4 vacas em lactação por hectare. Isso é excelente, mas se você trabalhar com animais menores, na primeira conta, você não vai dividir por 1,2 - mas sim por 1. Você terá 10 x 0,6 x 0,8 = 4,8 vacas por hectare, 20% a mais.
Agora, vamos mexer com esses fatores, como por exemplo com 40% de vacas no rebanho, que é ruim, e 40% de vacas em lactação. Com 10 UA/ha, divididos por 1,2, multiplicado por 0,4 e novamente por 0,4, vai dar 1,3 vaca em lactação por hectare, que é muito ruim. Você pode ser ótimo no pasto, mas destrói todo um trabalho com um rebanho de má composição e com reprodução e persistência ruins. Não é só o trabalho de fazer pasto produzir, não. Multiplique esses 1,3 por uma vaca comum, de 10 kg de leite. São 13 kg de leite/ha/dia, ou 4.745 kg/ha/ano.
Por outro lado, você pode encontrar um sujeito que tem 2 UA/ha e ganha dinheiro. Pode ser um confinamento, por exemplo. Pegue 2 UA dividido por 1,2, dá 1,6. Mas suponha que ele seja eficiente do ponto de vista do rebanho: tem 70% de vacas no rebanho e 85% de vacas em lactação: 1,6 * 0,7 * 0,85 = 1 vaca/ha/ano. Mas essa vaca está no confinamento e produz, digamos, 25 kg/dia. Esse produtor produz mais de 9.000 kg/ha/ano. O confinamento não é nenhum problema, mas tem que ser trabalhado com eficiência na produção (e persistência) e na reprodução. Então, importa a produção por área, até mais do que a lotação.
Agora, voltando àquela propriedade de Flórida Paulista, em que ela não multiplicou por 0,7, mas sim por 1, porque todos os animais são vacas. A eficência é muito maior. Aí que está o caso por exemplo da Confepar, que está fazendo a criação de bezerros. Aí virou o "capeta", pois todo mundo quer os bezerros, pensando na eficiência. Eles têm 180 bezerros, que saem a partir da primavera. Mas só vai ter acesso aos bezerros quem tiver sendo assistido por eles, pois a novilha, que será disponibilizada com 5 a 6 meses de gestação, precisa ser bem manejada.
MKP: Olhando essa discussão sobre persistência de lactação, não há como não refletir que se trata de uma discussão de muito tempo...Vocês trabalham há algum tempo com leite. O que mudou nesse período? E o que não mudou?
ACC: Não mudou nada. Você fala isso aqui nas escolas, nas universidades, as pessoas ficam olhando para você como se estivessem vendo com um fantasma. É muito grave, o sujeito não sabe um negócio desses. Aí você abre o jornal e se fala de agricultura de precisão, zootecnia de precisão, mas nós estamos na idade da pedra lascada. E precisamos tirar esse pessoal da pedra lascada.
Artur: "O confinamento não é nenhum problema, mas tem que ser trabalhado com eficiência na produção (e persistência) e na reprodução."
MKP: Mas por outro lado, a produção está crescendo, inclusive em taxas mais altas do que antes. Porque cresce?
ACC: Milho e soja ficaram muito baratos nesses últimos anos, o sujeito pegou e agregou valor ao milho e à soja, transformando em leite.
ALN: A crise do suíno de três anos atrás. Todo o pessoal de Santa Catarina, pequeno, que mexia com suíno entrou no leite. O que dá para fazer em uma área pequena? Leite é uma alternativa.
ACC: A Cooperativa Aurora é um exemplo claro disso: até outro dia, não captava nada e hoje, após ter entrado no leite, já está pegando 400 a 500 mil litros/dia de leite.
ALN: Aqueles pequenos produtores de soja do Paraná, por exemplo, que tentavam sobreviver com 30 hectares, não suportaram mais essa variação de preços e entraram no leite. Por isso, o leite cresceu. Em São Paulo, tem sido diferente por causa do custo de oportunidade da cana.
André: "Aqueles pequenos produtores de soja do Paraná, por exemplo, que tentavam sobreviver com 30 hectares, não suportaram mais essa variação de preços e entraram no leite".
ACC: E pelo produtor não ter acesso. Nos lugares onde trabalhamos, na região de Dracena, por exemplo, não tinha nada de leite e hoje está coalhado. O sujeito agora tem informação, tem um grupo de 10 a 12 técnicos muito bons, que estão dando suporte para o pessoal. Eles vão crescer de forma estruturada, não porque o milho e a soja estão baratos. Aliás, esse é uma característica do projeto de transferência de tecnologia: ele é muito barato, não dá nada para o produtor, o produtor faz com o que tem lá, pois ao dar, perde-se a validade do trabalho.
ALN: E a questão de opção disponível. Veja São Carlos: há 15-20 anos, era grande produtor de leite. Quem produzia leite era quem tinha uma área até que grande, tinha outras atividades, minha de vez em quando na fazenda, dava uma olhadinha e ia embora. Isso foi enxugando, faltava a presença dele na propriedade, ele não conseguia pagar as contas. Os modelos mudaram.
ACC: Voltando a São Paulo, se alega muito a questão do preço da terra. Conversei com um técnico que está na Nova Zelândia e perguntei sobre o preço da terra lá. Um hectare chega a custar R$ 120.000. E lá leite é um negócio que está presente. A mão-de-obra é 6.000 a 8.000 dólares por ano. Isso, o menos qualificado. O bom é 13 a 14.000 dólares por ano. E como leite lá é um negócio e aqui não é? Esse negócio [de que leite é mau negócio] é outro chavão que se criou aqui, porque esses produtores que saíram da atividade é gente que não morava na propriedade, era um passatempo, deixado na mão de gente que não tinha nada a ver.
MKP: Quais são as características do produtor que vai para frente?
ACC: Primeiro, precisa gostar da atividade. Se não gostar, não tem jeito. E tem que ter força de vontade. O resto, o tamanho da área, a topografia, o solo, nada disso é limitante se ele tiver força de vontade e gostar do que está fazendo. É preciso ter também paciência para esperar os resultados.
MKP: A formação (escolaridade, preparo gerencial) tem sido uma barreira?
ACC: Não, não tem. Claro que há extremos. Tem um rapaz que está no projeto, por exemplo, que é analfabeto. Ele me disse que agora iria precisar estudar, porque, nas palavras dele, "estava começando a atrapalhar as vacas". Quando ele tirava 5 ou 10 litros por dia, não tinha problema, mas com 50, fica difícil.
ALN: Nós temos o desafio de motivar o produtor, de mostrar que é possível chegar lá, mas por outro lado gerenciar bem a questão do prazo, mostrar a ele que é preciso começar devagar, para aprender, além do que é preciso esperar aquilo que é natural da atividade, como o crescimento das forrageiras, uma bezerra entrar em produção, e assim por diante. Também, tem a questão do capital envolvido na atividade, não dá para aumentar muito rapidamente. Assim, o sujeito precisa ter determinação e paciência para aguardar 2 ou 3 anos para atingir os objetivos propostos. É preciso ter humildade, porque o produtor precisa estar ciente de que vai aprender conceitos novos.
ACC: Uma estratégia que tem dado muito certo são as visitas. Os produtores de Peruíbe, por exemplo, que entraram há pouco tempo no projeto, foram visitar uma propriedade de 1,5 hectare em Jacareí. Ao fazerem isso, se deram conta que é possível, voltaram animados. Nós promovemos isso bastante. O povo do oeste que vai para o Vale do Paraíba fica horrorizado com os morros, e o povo do Vale que vai para o oeste fica horrorizado com a falta de água. Tudo mundo volta para casa pensando que está no paraíso. Ele vê que a propriedade dele não é a pior do mundo, tem gente pior e que mesmo assim está vivendo da atividade.
Artur: "Um hectare na Nova Zelândia chega a custa R$ 120.000. Um funcionário, 14.000 dólares por ano. E como leite lá é um negócio e aqui não é"?
MKP: Vocês começaram a trabalhar na época em que as cooperativas dominavam o mercado. Hoje, a situação é outra, embora existam exceções e um esforço de várias cooperativas no sentido de se reestruturar e competir. Como vocês analisam hoje o papel das cooperativas e associações nesse processo de resgate desse produtor que ficou à margem?
ACC: O que a gente tem incentivado é o pessoal [produtor] se associar. No programa de microbacias, por exemplo, os produtores associados recebem até um tanque de expansão do governo, sem custos. Com mais volume de leite, você negocia melhor. Mas a gente não interfere nisso não, pois já é uma área fora de nossa área de atuação, não temos muito conhecimento nem capacidade para atuar nisso. Deixamos mais com o pessoal do Sebrae, que atua mais no "fora da porteira". Mas sem dúvida o associativismo é um caminho.
ALN: Se as empresas tiverem uma visão de longo prazo e definir qual vai ser o fornecedor dela daqui a 15 ou 20 anos, elas podem sem dúvida investir na capacitação desse produtor, mas no geral falta essa visão.
André: "Se as empresas tiverem uma visão de longo prazo e definir qual vai ser o fornecedor dela daqui a 15 ou 20 anos, elas podem sem dúvida investir na capacitação desse produtor".
MKP: O que vocês ainda esperam realizar junto ao projeto?
ACC: O que a gente desejava era que todos os produtores tivessem acesso à informação. Se eles vão ficar no leite, é uma decisão deles. O que queríamos, com o projeto, é que eles não saíssem da atividade leiteira sem ter tido a oportunidade de escolher. Isso é triste, porque significa que nós, técnicos, falhamos, pois não tivemos a capacidade de mostrar ao produtor que ele poderia ficar em sua propriedade, sem virar um problema social, sem ser mais um fardo para a sociedade. Quem mais tem apoiado esse trabalho são os prefeitos, pois eles dizem que cada um que conseguirmos segurar na propriedade, é um a menos que vem para a cidade pedir emprego, cesta básica... É bonito, mas é muito triste também. A gente vê esses casos desses sujeitos que estão crescendo e pensa como seria bom se pudéssemos levar todo mundo junto.