O Simpósio Interleite deste ano, realizado em Uberlândia, MG, entre 6 e 8 de julho, com quase 1.000 participantes, teve uma concepção diferente das anteriores. Ao invés das palestras mais técnicas, optamos por apresentar 19 produtores, sendo 11 do Brasil e 8 do exterior. Acreditamos, ao propor esse formato inédito, que era o momento de apresentar as características de um novo produtor de leite, que vem se consolidando sem muito alarde. Também, entendemos que seria o momento de trazer produtores de outros países, mostrando também as mudanças que ocorrem nestes locais.
A cadeia do leite tem sido historicamente considerada marginal no país, sendo muitas vezes mais uma alternativa para quem não tem outra alternativa, do que uma opção econômica de um empresário rural. É bem verdade que, em número de produtores, ainda predominam aqueles que estão à margem do processo, como pode-se atestar pelo sucesso de iniciativas como o Balde Cheio, que visam justamente dar dignidade e uma nova perspectiva a esses milhares de produtores.
Porém, é de se supor que boa parte da produção de leite esteja sendo cada vez mais produzida por produtores ditos profissionais: aqueles que têm escolha e que estão na atividade por considerar que esta permite uma rentabilidade compatível com o que se consegue com outras atividades.
Essa nova realidade reveste-se de importância para o futuro do setor, já que a elevação dos custos de oportunidade da mão-de-obra e da terra estimula o aumento da escala e da eficiência dos fatores produtivos (leia os artigos o Mito da Mão-de-Obra Barata e O que Acontece com o Leite em Goiás, que versam sobre esses temas).
Apesar das diferenças regionais e mesmo de escala de produção entre todos esses 11 produtores brasileiros retratados, algumas características parecem comum a todos - inclusive com semelhanças a produtores de outros países também.
A seguir, destaco alguns itens que me parecem constituir o fio condutor entre estes produtores, estejam eles em Coxinha, RS, como o gaúcho Fernando Stédile, ou em Carmo do Rio Claro, MG, como Leo Pereira.
Presença do proprietário na fazenda: quando não vive na fazenda, o proprietário participa diretamente da administração da atividade e procura conhecer técnica e economicamente a exploração. Em nenhum deles prevalece a tradicional figura do empresário dono de fazenda, mas que pouco conhece da atividade. Isso não quer dizer que o produtor não possa ter outra atividade, até principal, ou que não tem profissionais contratados para a gestão. O que se quer dizer é que exige da equipe o mesmo profissionalismo com que tocam seus outros negócios, quando isso acontece, e que conhecem o que fazem.
Preservação do núcleo familiar: como bem observou Luis Fernando Laranja, moderador do último painel, é muito interessante notar como quase todos os produtores mostraram fotos de sua família, com muitos integrantes já participando das atividades. Em um dos casos (Mário Sossella, da Fazenda Iguaçu), o produtor trouxe inclusive a filha, psicóloga, que já o auxilia na área de recursos humanos. A preservação do núcleo familiar como um dos objetivos da atividade foi notória não só entre os brasileiros - John Pagel, produtor-modelo dos EUA, com 4.500 vacas em Wisconsin e Jeremy Casey, produtor neozelandês que é sócio de uma fazenda no Brasil, enfatizaram esse aspecto como crucial em seus projetos.
Paixão pelo que fazem: apesar de encararem sua atividade como negócio, ficou evidente a paixão com que tocam suas explorações. Aliás, desconheço qualquer profissional de sucesso, ainda mais em uma atividade como o leite, que não gosta do que faz. A atuação no leite por parte destes produtores transcende a questão econômica (mas obviamente não a exclui), como pode ser visto nas palestras de Magnólia Martins da Silva, de Monte Alegre de Minas, MG, ou de Reinaldo Figueiredo, de Cristalina, GO, que "admitiu" que antes de produtor de leite, é criador de vacas holandesas, sintetizando com seu lema como pensa a atividade: quer ter vacas bonitas, produtivas e rentáveis: "mais que uma paixão, é uma obsessão", disse.
Baixa rotatividade da mão-de-obra e preocupação com a qualificação e gestão da equipe: outro ponto crucial em comum entre estes produtores. Em muitos casos, as famílias nasceram na propriedade e estão há gerações como a família, como é o caso da Agrindus, de Roberto Jank, e da Santa Luzia, de Maurício Silveira Coelho, assim como nas propriedades de Antônio Carlos Pereira, cujo tempo médio de serviço no leite é de 11,2 anos, com 75% dos funcionários tendo mais de 5 anos de casa. Isso faz toda a diferença. Em todos, há o reconhecimento de que lidar bem com a equipe é tão ou mais importante do que lidar com as vacas.
Controle de custos e planejamento: todos têm dados precisos sobre sua atividade, sabendo o terreno em que estão pisando, como pôde ser visto na apresentação dos mineiros Pedro Nunes, da Fazenda Brejo Alegre (32.200 litros/ha/ano), e Ronaldo Gontijo, da Fazenda Monjolo Velho, que está estruturando um projeto de 30.000 litros diários com base em pastejo irrigado.
Metas e escala: além de saberem o que fazem, estes produtores possuem metas claras e, sem exceção, buscam crescer na atividade. Escala de produção é um aspecto relevante a todas estas explorações.
Agricultura eficiente: saindo agora do campo gerencial e indo para o técnico, foi possível perceber em todos eles, mesmo nos que têm grande paixão pelas vacas, a importância que se dá à exploração agrícola eficiente como sustentáculo da atividade. Analisando o caso destes produtores de destaque, não há leite rentável sem agricultura competente, seja via pasto de alta produtividade, seja agricultura tradicional.
Irrigação: nos proutores localizados em regiões onde há risco de déficit hídrico (ou seja, quase todos), o uso de irrigação entra como uma ferramenta fundamental para aumentar a lotação e portanto a receita por área, e reduzir os riscos climáticos cada vez mais freqüentes.
Utilização eficiente dos dejetos: nos produtores confinados, a irrigação é geralmente combinada com a aplicação de dejetos animais para reduzir o uso de fertilizantes químicos, melhorar as condições do solo, resolver problemas ambientais e elevar a produtividade por área. Dos 11 produtores brasileiros, 2 já tem biodigestores para geração de energia. No quesito sustentabilidade, não podemos de deixar de ressaltar Franke Dijkstra, pioneiro do plantio direto e que abordou no evento como resolveu a sucessão familiar em seu negócio, além da questão da sustentabilidade ambiental e integração entre as atividades.
Instalações adequadas ao sistema de produção: via de regra, o que se viu foram instalações adequadas ao sistema de produção e feitas de acordo com as recomendações técnicas, assistidas por profissionais do ramo. Em nenhum dos casos se viu "aberrações" que eram tão comuns em projetos de grande porte há 10 ou 15 anos.
Diversificação: esse é um item interessante e que me chamou a atenção quando Luis Bettencourt, o maior produtor do mundo (62.000 vacas) e que veio ao Interleite assistir ao evento, sentenciou: "não vi nenhum produtor de leite aqui, todos eles têm várias atividades". Na cabeça do americano (ou melhor, no caso do português que imigrou aos EUA), produtor de leite é aquele que apenas produz leite, muitas vezes nem as bezerras cria. No Brasil, nota-se entre os grandes produtores a existência de várias atividades, muitas vezes complementares: avicultura, suinocultura, sementes, citricultura, genética bovina, etc. Talvez isso tenha se dado pela histórica insegurança do setor, impelindo os produtores a desenvolver alternativas para não colocar todos os ovos na mesma cesta.
Entendimento do modelo de negócios visando rentabilidade: mais um aspecto que gerou reflexões. Apesar de uma série de características parecidas, ficou evidente que cada caso é um caso e que o produtor precisa alinhar seus interesses e o mercado ao seu sistema de produção. Assim, a certificação da produção de leite da raça jersey faz todo o sentido para Geraldo Calmon, do Rio de Janeiro, que obtém um sobre-preço muito significativo ao fornecer o leite com essas características a uma multinacional especializada em queijos finos, mas pode não fazer sentido a Jeremy Casey, do projeto Leite Verde, que tem como meta produzir leite de qualidade a baixo custo.
Excelência no que fazem: uma última característica me chamou a atenção. Todos os produtores prepararam palestras de alta qualidade e se dedicaram a apresentar da melhor maneira possível, fazendo deste Interleite um grande evento para o setor. Neles, vi uma característica que sempre procuro identificar: a busca pela excelência, traduzida até na preparação das palestras. Pessoas assim não se contentam como nada que não seja o ótimo, e isso certamente se reflete na maneira como tocam seus negócios.
Obviamente, não tivemos a pretensão de retratar a pecuária de leite nesse evento. O objetivo, ao contrário, foi identificar um novo produtor de leite que surge no Brasil, que reúne as características acima e que, talvez, represente uma tendência, podendo vir a ser cada vez mais responsável pelo crescimento da produção de leite no país.