A primeira quinzena do mês trouxe boas novidades. O Boletim do Leite, editado pelo Cepea/Esalq/USP, informa que os preços médios nominais recebidos pelos produtores mantiveram tendência de alta, o que já se verifica há 18 meses seguidos. Também o levantamento da Scot Consultoria chega a essa mesma conclusão, como informa Maurício Nogueira, em artigo neste mesmo MilkPoint, na seção Panorama (clique aqui para ver o artigo). Até o presente, portanto, a recessão instalada na economia brasileira ainda não foi forte o suficiente para deprimir os preços recebidos pelos produtores. Ao que parece, outras três variáveis também importantes têm contrabalançado a favor dos produtores: mercado internacional sem grandes excedentes de oferta, câmbio favorável e período de seca na maior parte do Brasil.
Outras duas notícias relevantes ocorreram na quinzena, ambas relacionadas à qualidade do leite. A primeira foi o lançamento de um novo leite fluido pela Cooperativa Itambé - o maior laticínio brasileiro de capital genuinamente nacional, já considerando os parâmetros de qualidade exigidos pela Instrução Normativa 51, do Ministério da Agricultura, recentemente aprovada. Esse é um grande passo dado no sentido de melhorarmos o produto brasileiro. A outra notícia foi a realização da reunião anual do Conselho Brasileiro de Qualidade do Leite-CBQL, já em sua quinta edição, em Juiz de Fora - MG. Tive oportunidade de participar do primeiro painel, na condição de espectador, quando foi apresentado uma visão panorâmica da qualidade de leite nas regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste do Brasil. Os resultados de análises laboratoriais deixaram-me negativamente impressionado, ao ponto de procurar colegas da Embrapa Gado de Leite para inteirar-me de monitoramentos que esta Unidade vem processando, a respeito desse assunto. Leigo que sou nesta questão complexa, restou-me analisá-la sob o viés econômico.
Todas as vezes que quisermos entender o momento atual, é sempre bom voltar à década de oitenta e rememorar os fatos ali vividos. Para muitos, foi a década perdida, pois tivemos as duas maiores recessões econômicas da nossa história, juntamente com elevada inflação e desemprego. Mas é nesse ambiente turbulento e incerto que ficou claro o fim de um ciclo da vida brasileira e foram lançadas as bases para a grande transformação institucional iniciada na década seguinte.
Vejamos a questão da qualidade dos produtos. Este item começou a merecer atenção de empresas naquela década. Ao perceberem a dificuldade de atuar num mercado incerto e recessivo, viram no mercado internacional a alternativa de garantia de colocação de seus produtos. A preocupação com o item qualidade, portanto, não somente com produtos alimentares, é recente no Brasil. Buscar ganhos em qualidade significou transformar radicalmente o processo produtivo e, antes disso, redesenhar tudo que diz respeito ao marketing que, diga-se de passagem, é muito mais do que propaganda e vendas, como muitos imaginam. Ofertar produtos que satisfizessem o anseio do consumidor externo, enquadrando os seus produtos às exigentes normas internacionais, foi façanha importante. E, como toda inovação que se preza, uma vez iniciada e estando em consonância com o mercado, nada a detém.
No caso do leite, o processo foi mais lento e motivos há para isso. O primeiro e principal deles é o baixo nível de exigência do consumidor brasileiro. Acostumado a viver por anos seguidos sem opção de escolha, o consumidor de leite brasileiro atribui qualidade ao leite, naturalmente. Não deixa de ser um preconceito. É como se qualidade fosse característica intrínseca ao produto. Desde criança, aprendemos que leite é alimento saudável. Logo, leite é sinônimo de qualidade. Creio que isso e a renda baixa explicam a pouca seletividade do consumidor brasileiro até hoje, mesmo passada uma década de transformação.
Se a exigência do consumidor não é forte indutor de mudança, há então a opção institucional. Refiro-me a exigências legais. É no contexto de Segurança Alimentar recentemente introduzido no Brasil, que cresce em importância a Instrução Normativa 51. Este instrumento legal ficou entre o máximo possível e o mínimo aceitável. Máximo possível, porquê a maior parte das análises laboratoriais no Brasil apresentam resultados acima do mínimo aceito pela Instrução 51, ou seja, um milhão de Contagem de Células Somáticas no Tanque. E mínimo aceitável, dados os limites estabelecidos por países relevantes em termos de mercado internacional de lácteos, como Estados Unidos (750 mil), Canadá (500 mil) e Nova Zelândia e União Européia (400 mil). A existência desse diploma legal serve como parâmetro norteador das ações de Governo e, até mesmo, permite aos técnicos envolvidos pressionar para a alocação de recursos visando monitorar o seu cumprimento.
Há um ramo da Ciência Econômica, que afirma o que todo pai e toda mãe conhecem: uma boa educação se faz com punição e prêmios. Consumidor e legislação são, portanto, tópicos relevantes como indutores de transformação. Mas é relevante também o comportamento dos laticínios junto aos seus produtores. É nesse contexto, que preços diferenciados são de extrema relevância. Sua lógica é induzir o produtor a determinado comportamento, por meio de estímulos. Para que os estímulos sejam eficazes, é necessário que a política adotada seja claramente entendida pelos produtores. E além disso, rentáveis. Caso contrário, não é estímulo. Por outro lado, considerando-se que os estímulos adotados pelas empresas interferem diretamente no preço recebido pelo produtor, é de se esperar que, como interessado, o produtor conheça os critérios adotados e planeje o seu negócio com vistas a obter os melhores preços. Se assim não for, o estímulo será inócuo e sua resultante também, ou seja, a mudança de comportamento que se deseja atingir.
Procedemos na Embrapa Gado de Leite a um levantamento junto a produtores, localizados nos estados de Minas Gerais, São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul e Goiás. Todos os laticínios aos quais os produtores estavam vinculados adotavam, como estímulo, a diferenciação de preços por qualidade e teor de gordura. Dos 150 produtores pesquisados, apenas 29% conheciam os critérios de bonificação por qualidade a que estavam submetidos. Somente Ribeirão Preto e Sete Lagoas apresentaram maioria conhecedora da política adotada quanto a esse item. Em relação ao teor de gordura, o percentual não foi muito diferente: 21% dos produtores conheciam os critérios e nenhuma região apresentou maioria de produtores conhecendo a política de estímulo nesse quesito.
O produtor é homo economicus, ou seja, reage racionalmente a estímulos. Se o preço é considerado razoável, tende a aumentar a produção. Esse é o estímulo que vem naturalmente do mercado. Mas, para estimular modificações de práticas na propriedade, visando melhorias de qualidade, é necessário política clara nesse sentido. Os dados obtidos junto aos produtores entrevistados demonstraram que tal fato não ocorreu. Isso pode ter se dado por ineficiente ação dos laticínios junto aos produtores, por dificuldade de entendimento dos produtores, ou por que os produtores entenderam que o estímulo era inferior ao esforço. Em linguagem econômica, os custos adicionais seriam percebidos superiores aos ganhos adicionais privados na adoção de novas práticas. Qual ou quais das alternativas anteriores explicam este fato?