A nutrição animal vem sendo estudada e aprimorada a mais de 200 anos. Ao longo destes anos, grandes avanços têm sido obtidos no tocante ao conhecimento da composição dos alimentos, das exigências nutricionais dos animais, da digestão e absorção dos nutrientes e, mais recentemente, do metabolismo pós-absortivo desses nutrientes. Estes avanços no campo da nutrição e o grande progresso genético alcançado nas últimas quatro décadas têm possibilitado aumento expressivo da produtividade animal nos sistemas de produção de leite.
Isto tem pressionado os produtores e nutricionistas a fornecerem cada vez mais alimentos concentrados e ricos em carboidratos não fibrosos para conseguir atender as exigências energéticas desses animais. Os grãos de cereais, com destaque para o milho, têm se constituído na principal fonte concentrada de energia nas rações para altos desempenhos de bovinos de leite e de corte. Três aspectos importantes têm levado ao questionamento do uso intenso de grãos de cereais nas rações para bovinos: 1) competição por alimentos com o homem; 2) riscos de distúrbios metabólicos para os animais e 3) tendência de alta dos preços de grãos de cereais, com a demanda mundial crescente por etanol.
A principal e grande virtude dos ruminantes é a conversão de alimentos fibrosos em produto animal, processo possível devido à simbiose com microrganismos que habitam o seu retículo-rúmen, e que convertem boa parte dos componentes da dieta em uma fração importante chamada proteína microbiana. A mensuração da produção de proteína microbiana e o perfil de fermentação de novos alimentos tem sido uma importante área de estudo na nutrição desses animais.
Assim, quando queremos incluir um novo alimento na ração de vacas leiteiras, deveremos primeiramente saber qual será o comportamento deste alimento no trato digestivo do animal, quão intensa será a utilização deste pelo microbiota no retículo-rúmen e quão digestível será no intestino, qual é o seu padrão de fermentação e possíveis riscos de desordens metabólicas. Pensando nisso, o meu trabalho de tese avaliou os parâmetros ruminais dos subprodutos, alguns serão apresentados a seguir.
Perfil de ácidos graxos, teor de amônia e pH ruminal
Os ácidos graxos de cadeia curta, ou comumente chamados de ácidos graxos voláteis (AGV), podem ser vistos como o resíduo da degradação da dieta promovida pelos microrganismos ruminais. Entretanto, o que é descartado pelas bactérias é de suma importância para a vaca, pois os três principais ácidos graxos voláteis (acetato, proprionato e butirato) fornecem a maior parte da energia requerida pelo animal. Assim, dada a sua importância, modificações nas quantidades ou proporções desses ácidos são rapidamente sentidos no desempenho do animal.
A amônia é a principal fonte de nitrogênio usada para a síntese de proteína microbiana, sendo o produto final resultante do processo fermentativo de proteína ocorrida no rúmen. Segundo pesquisas, as concentrações de N-NH3 superiores a 50 mg/100 mL de fluido representam um excesso que não é utilizado para a síntese microbiana. A produção e absorção excessivas de amônia aumentam a excreção de nitrogênio e o custo energético de produção de uréia. O excesso de amônia é excretado via urina e pode contaminar solos e cursos d´água próximos a centros criatórios.
A degradabilidade ruminal da proteína dietética leva à conversão da mesma até amônia. Quanto maior for a degradabilidade da proteína da dieta, maior será a produção de amônia ruminal e, provavelmente, maiores serão as perdas urinárias de compostos nitrogenados na forma de uréia, caso essa amônia não seja totalmente utilizada dentro do rúmen ou caso seja liberada acima da capacidade de incorporação pelas bactérias ruminais.
O pH é um fator importante na atividade proteolítica do rúmen e o valor ótimo varia entre 6 e 7, sendo que, para grande número de microrganismos, a atividade máxima se situa em torno de 6,5. Com redução moderada do pH ruminal, até aproximadamente 6, a digestão da fibra decresce sem influenciar o número de organismos fibrolíticos. Porém, com redução para a faixa de 5,5 a 5,0, ocorre diminuição do número de microrganismos fibrolíticos, como também da taxa de crescimento, podendo causar inibição na digestão da fibra.
A seguir, serão apresentadas as avaliações desses três parâmetros nos experimentos que estudaram a substituição de milho por resíduos fibrosos na ração de vacas leiteiras. As Figuras 1 e 2 referem-se ao estudo com Refinasil, 3 e 4 com caroço de algodão, 5 e 6 com farelo de trigo e 7 e 8 com casca de soja.
Figura 1. Concentrações totais de AGV, relações C2:C3, concentrações de amônia e pH ruminal de vacas alimentadas com níveis crescentes de Refinasil em substituição ao milho no concentrado e pastejando capim elefante com 23 dias de intervalo de desfolha durante a estação chuvosa do ano.
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Figura 2. Concentrações ruminais dos ácidos graxos voláteis de vacas alimentadas com níveis crescentes de Refinasil em substituição ao milho no concentrado e pastejando capim elefante com 23 dias de intervalo de desfolha durante a estação chuvosa do ano.
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A redução no teor de amido do concentrado com a substituição do milho moído pelo refinasil não afetou nenhum dos parâmetros ruminais estudados. Esperava-se aumento no pH ruminal, na concentração de nitrogênio amoniacal e na relação dos ácidos graxos acetato:proprionato (C2:C3) com a redução de amido e aumento no teor de FDN do concentrado, mas isso não aconteceu.
Normalmente, o que se verifica com a inclusão de altos níveis de refinasil nas rações de bovinos, em substituição parcial a volumosos, é uma queda na concentração molar de acetato e aumento na de propionato, o que foi observado por vários autores que relataram suas pesquisas na literatura. Entretanto, há relatos de que quando o refinasil foi adicionado à ração (de 20 a 40% da MS total) substituindo milho grão e soja, houve um aumento na concentração molar de acetato e diminuição na de propionato, provavelmente devido à menor concentração de amido da ração.
O refinasil tende a diluir a concentração de amido em rações ricas em grãos, minimizando quedas acentuadas no pH após as refeições e, portanto, podendo melhorar o ambiente ruminal e assim reduzir problemas de acidose e laminite, possibilitando aumento de desempenho. Esta característica é muito interessante para animais de alta produção de leite e animais de corte confinados, que estão sujeitos a estes problemas. Entretanto, com vacas a pasto, normalmente esse benefício não é tão proeminente devido ao fato da ração controle não ser muito desafiadora.
Figura 3. Concentração de ácidos graxos voláteis totais, relação C2:C3, amônia e pH ruminal de vacas alimentadas com níveis de caroço de algodão em substituição ao milho no concentrado e pastejando capim elefante com 23 dias de intervalo de desfolha.
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Figura 4. Concentração de ácidos graxos voláteis totais de vacas alimentadas com níveis de caroço de algodão em substituição ao milho no concentrado e pastejando capim elefante com 23 dias de intervalo de desfolha.
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O pH ruminal não foi afetado pelos tratamentos onde se substituiu o milho grão moído fino por caroço de algodão, apresentando valor médio de 6,13. Na análise de perfil pode-se observar que o pH sempre se manteve acima de 6,0 não comprometendo portanto a degradação da fibra. Se observarmos a literatura, o pH ruminal geralmente não é afetado pela inclusão de 15 ou 16% de caroço na ração. Por outro lado, maior pH foi encontrado em estudos com inclusões superiores a 15% de caroço na ração, variando de 15 a 30%.
Em alguns estudos, o caroço de algodão não afetou a fermentação ruminal. Em outros, a relação acetato:propionato aumentou com o concomitante aumento de caroço na dieta, enquanto que em outros esta relação diminuiu. Assim, observa-se que ocorrerá uma flutuação na resposta à suplementação com caroço de algodão dependendo das particularidades fermentativas de cada dieta basal.
Em nosso estudo com caroço de algodão, a concentração de butirato não foi modificada, o que discorda de alguns estudos, mas concorda com várias outras. Entretanto, de maneira geral, e para inclusões de até 15% na ração, não se observa variação nos AGV em dietas contendo caroço de algodão. Isto sugere que o lipídio do caroço pode ser liberado lentamente dentro do rúmen, ou que mesmo com a ruminação, boa parte deste fica encapsulado dentro do caroço.
A concentração de amônia ruminal aumentou com a inclusão do maior nível de caroço na ração (cerca de 21%), concordando com alguns dados de pesquisas anteriores. A alta degradabilidade da proteína do caroço pode ser uma das explicações para este aumento. O aumento de amônia pode indicar baixa atividade de bactérias celulolíticas, pois caso a demanda por nitrogênio para síntese microbiana diminua, a tendência é de aumento de sua concentração. Por outro lado, alguns experimentos não observaram modificação na concentração de amônia ao incluírem 20% de caroço de algodão nas dietas, sugerindo que desde que a dieta basal forneça subsídio, a fermentação não será prejudicada.
A concentração média em nosso estudo foi de N-NH3 no rúmen foi de 34,86 mg/dL. Esse valor é aproximadamente cinco vezes superior ao mínimo preconizado para que não afete o crescimento microbiano, e também superior aos 20 mg/dL sugeridos para animais em produção, sendo portanto, suficiente para garantir a maximização da fermentação microbiana.
O uso de caroço aumentou a concentração de amônia ruminal e de N-uréico do leite. Com base nisso, pode se concluir que pode ter ocorrido uma falta de sincronia entre degradação ruminal da proteína e da energia, resultando em redução na síntese de proteína microbiana, uma vez que as bactérias ruminais necessitam de ambos simultaneamente. Além da falta de sincronia, pode ter ocorrido limitação de energia, uma vez que o caroço de algodão apresentou baixa degradabilidade ruminal.
Figura 5. Concentração de ácidos graxos , pH ruminal e concentração de amônia de vacas alimentadas com níveis de farelo de trigo em substituição ao milho no concentrado e pastejando capim elefante com 23 dias de intervalo de desfolha durante a estação chuvosa.
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Figura 6. Concentração de ácidos graxos voláteis de vacas alimentadas com níveis de farelo de trigo em substituição ao milho no concentrado e pastejando capim elefante com 23 dias de intervalo de desfolha durante a estação chuvosa.
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No experimento com farelo de trigo, a concentração total de AGV não foi afetada pelos tratamentos. Embora a concentração total dos AGV não tenha sido afetada, a proporção molar de acetato diminuiu e a proporção de propionato aumentou quando as vacas receberam farelo de trigo, o que diminuiu a relação acetato:propionato de 2,98 para 2,60, com concomitante redução do pH ruminal. A concentração de amônia foi de 14,8 mg/dL.
Entretanto, normalmente com rações contendo abaixo de 14% de farelo de trigo e em substituição ao milho, não ocorre diferença na concentração dos ácidos graxos voláteis e na relação acetato:proprionato, quer seja na presença e ausência de bicarbonato de sódio em substituição parcial ao milho e ao farelo de soja, em rações a base de silagem de alfafa, silagem de milho, milho grão ou farelo de soja.
A concentração total de AGV durante o dia foi afetada pelos tratamentos e relação acetato: proprionato, embora numericamente, foram bastante distintas durante o dia, durante a noite, e em relação a média diária.
Durante o dia a inclusão de farelo de trigo reduziu a relação C2:C3, enquanto que a noite ela aumentou. A proporção relativa dos diferentes AGVs produzidos varia amplamente, dependendo dos componentes químicos degradados e do pH ruminal, que numericamente foi menor durante o dia com a inclusão de farelo de trigo. Maiores proporções de propionato são produzidos na degradação da hemicelulose, enquanto que com a degradação dos carboidratos solúveis da planta (amido e açúcares), o padrão de produção de AGVs é alto tanto em proprionato, quanto em acetato e baixo em butirato.
Em contrapartida, a degradação de amido de cereais produz alta concentração de propionato. A proporção molar típica dos AGVs, produzidos quando o animal alimenta-se basicamente de forragens, representa uma relação de 73:20:7 (acetato; propionato; butirato), comparado com 60:30:10 em misturas de concentrado e forragens, e somente com concentrado obteve uma relação 50:40:10.
O pH observado no presente estudo (6,23) é considerado não limitante para digestão ruminal, uma vez que o pH é um fator importante na atividade proteolítica do rúmen e o valor ótimo varia entre 6 e 7, sendo que, para grande número de microorganismos, a atividade máxima se situa em torno de 6,5. Existem afirmações de que o pH ruminal é relacionado com a concentração de AGV, com a sua absorção no rúmen, com o fluxo da água através da parede ruminal, como fluxo da saliva e dos seus constituintes tamponantes dentro do rúmen, além da acidez dos alimentos e do fluxo direto da água do abomaso para os intestinos.
Figura 7. Concentração de ácidos graxos voláteis, amônia e pH ruminal de vacas recebendo níveis crescentes de casca de soja em substituição ao milho no concentrado e pastejando capim elefante com 23 dias de intervalo de desfolha.
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Figura 8. Concentração de ácidos graxos voláteis de vacas recebendo níveis crescentes de casca de soja em substituição ao milho no concentrado e pastejando capim elefante com 23 dias de intervalo de desfolha.
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De maneira geral, os tratamentos com casca de soja não afetaram os parâmetros avaliados. A alta fermentabilidade da fração FDN presente na casca de soja pode permitir alta fermentação ruminal, possivelmente resultando em maior concentração de ácidos graxos voláteis. Entretanto, a extensão desta degradação é muito dependente das condições da dieta. Por outro lado, quando se inclui altas quantidade de casca na dieta, entre 45 e 60%, ocorre um aumento linear na concentração de ácidos graxos voláteis totais e na relação acetato:proprionato.
A concentração de amônia ruminal não teve esfeito estatístico. Entretanto a literatura relata que a concentração de N-NH3 no fluído ruminal de vacas leiteiras alimentadas com casca de soja em substituição ao grãos de cereais varia amplamente nos estudos relatados na literatura.
Considerações finais
Os experimentos realizados também mostraram que a redução de amido promovida pelos tratamentos impostos, não resultaram em significativa melhoria de ambiente ruminal. As alterações observadas nas produções e concentrações de ácidos graxos voláteis e nas flutuações do pH ruminal foram bastante discretas. Todos os tratamentos estudados não promoveram severa redução do pH ruminal e as concentração de amônia não estiveram em concentrações que limitasse a síntese de proteína microbiana.
Observa-se uma redução do pH ruminal em vacas leiteiras em pastejo e suplementadas com concentrado, em quantidade superior a 8 kg de MS/dia. Observa-se interação com a quantidade, tipo de concentrado suplementado, o consumo de matéria seca e a qualidade da forragem (ex. estágio de maturidade e conteúdo de FDN) com o comportamento do pH ruminal.