Porém, ao mesmo tempo em que a cadeia produtiva do leite se organizava e em que o produtor investia na atividade, a assistência técnica no campo desfalecia. O órgão público de extensão rural no Estado passava por mudanças que dificultavam sua atuação junto aos produtores e, além disso, programas importantes de acompanhamento técnico oferecidos por grandes empresas captadoras de leite também foram extintos. O produtor passou a atuar praticamente sozinho em uma atividade complexa, que cada vez mais depende da aplicação de conceitos técnicos para a obtenção de bons resultados. Sem este apoio e incapaz de concorrer com outras atividades, como a cana-de-açúcar ― em expansão na época ― o crescimento da produção de leite desacelerou. A taxa de crescimento da produção no período 2000-2009 caiu para 3,6% ao ano, menos da metade da obtida no período 1990-2000. Os detalhes do cenário recente da produção de leite em Goiás são descritos com exatidão no levantamento intitulado “Diagnóstico da Cadeia Produtiva do Leite”, realizado pelo Prof. Sebastião Teixeira Gomes, a pedido da Federação da Agricultura e Pecuária de Goiás (FAEG) e do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR/AR-GO), de 2009. Dentre os diversos indicadores relevantes obtidos pelo diagnóstico, alguns deles refletem a situação da atividade leiteira em Goiás e permitem uma análise aprofundada da realidade das fazendas, conforme demonstrado na tabela 1:
Tabela 1: Indicadores do diagnóstico
Fonte: Faeg
Na tabela 1, o item 1 “% de vacas em lactação no rebanho” está relacionado à forma como o rebanho leiteiro está estruturado em Goiás. O indicador obtido (27%) mostra que de um rebanho hipotético de 100 cabeças, apenas 27 são vacas em produção ao longo do ano, ou seja, somente 1/4 dos animais efetivamente geram renda nas propriedades, fato que onera a atividade de maneira significativa pelo excesso de animais improdutivos na fazenda. Quando se pensa em um rebanho adequadamente estruturado, busca-se ao redor de 54% de vacas em lactação no rebanho, devendo os outros 46% ser composto por vacas secas, bezerras e novilhas. A baixa porcentagem de animais em produção deixa claro que a atividade em Goiás está intimamente ligada à pecuária de corte, a partir da qual muitas propriedades ainda produzem leite de animais não especializados, com a visão de que o bezerro é uma boa fonte de renda no negócio. O capital investido para se produzir um litro de leite nas fazendas de Goiás era alto, R$ 3.210,00, retrato de uma atividade inadequadamente conduzida, baseada em investimentos improdutivos. O uso inadequado da terra no que se refere à eficiência na produção de forragem, investimentos excessivos em máquinas, instalações e animais sem aptidão para a produção de leite, explica tal situação. É perfeitamente possível a produção de um litro de leite com menos de 1/3 do capital investido diagnosticado nas fazendas de Goiás.
Em relação à sucessão familiar, somente 42% dos filhos dos produtores têm interesse em continuar a atividade dos pais. E não é para menos: o que esperar de uma atividade que em 2009, ano do diagnóstico, remunerou o produtor goiano em apenas R$ 874,24/mês, em média (margem bruta da atividade, diferença entre a renda bruta e o custo operacional da atividade), valor que correspondia a menos de dois salários mínimos da época? A falta de renda é encarada atualmente como o principal problema da sucessão em propriedades rurais, sendo agravado pelo conceito errôneo de que a má remuneração está relacionada à falta de rentabilidade da atividade, e não à forma de conduzi-la.
Por fim, estima-se que do total de 60 mil produtores de leite de Goiás na época do diagnóstico, aproximadamente 48.000 não possuíam nenhum tipo de assistência técnica continuada ― 82% dos produtores entrevistados relataram não ter acesso a essa ferramenta de desenvolvimento, o que pode explicar as difíceis situações observadas nas fazendas de leite do Estado.
Na análise de nações já desenvolvidas na atividade leiteira, como Nova Zelândia, Estados Unidos e alguns países da Europa, evidencia-se que a evolução do setor não teria ocorrido sem o desenvolvimento de seus produtores. Estes conseguem manipular fatores produtivos para obtenção de renda suficiente para o pagamento das despesas de custeio, depreciações de máquinas, instalações e remuneração do capital investido com sobra de capital (lucro), além de produzir um alimento de excelente qualidade, capaz de concorrer no mercado internacional. Tal evolução se deve também ao trabalho de pesquisa, aliado à transferência de tecnologia, permitindo que o conhecimento chegue às fazendas pelo trabalho do técnico de campo. A ausência do elo entre pesquisa e produtor, representado pelo trabalho deste técnico, é sem dúvida um gargalo para o desenvolvimento da atividade leiteira no país. Diante deste cenário, o Sistema FAEG - SENAR/AR-GO buscou uma forma diferente de capacitação e apostou na metodologia do Projeto Balde Cheio, que apresenta excelentes resultados em várias regiões. Além de oferecer vários cursos e promover eventos de difusão de tecnologias, o SENAR/AR-GO também incentiva a capacitação prática do agente da extensão rural no Estado. Desse modo, os técnicos em agropecuária, zootecnistas, agrônomos e veterinários vinculados aos parceiros do programa são capacitados a oferecer uma assistência técnica continuada e consistente aos produtores, contribuindo para a mudança da realidade dos produtores de Goiás.
A implantação da metodologia do programa Balde Cheio no Estado foi iniciada no ano 2011 em três municípios, após estabelecida a parceria com a Cooperideal, sob coordenação do Engenheiro Agrônomo Carlos Eduardo Freitas, responsável pelo processo de capacitação dos técnicos. O Programa “Goiás Mais Leite”, como foi batizado, contabiliza 53 grupos de produtores, 54 técnicos passando pelo processo de capacitação e 671 propriedades sendo atendidas atualmente em todo o Estado. As entidades parceiras do Programa “Goiás Mais Leite” são prefeituras (15), cooperativas (15), laticínios (08), sindicatos rurais (05), além de ONGs, associações, universidades e até uma hidrelétrica. Estas disponibilizam técnicos e apoiam o trabalho em cada região, ajudando a aumentar o número de produtores participantes. Técnicos autônomos também podem participar do programa. O objetivo é a atuação em 80 grupos de produtores, atingindo mais de 1.000 propriedades assistidas até o final do ano, permitindo que mais produtores tenham a mesma oportunidade que Adélio Ribeiro, proprietário do Sítio Boa Vista, localizado no município de Petrolina de Goiás. Ele foi atendido pelo veterinário e prestador de serviço da Itambé, Leandro Braga, um dos técnicos capacitados pelo Programa. A situação desta propriedade após dois anos de acompanhamento técnico pode ser observada na Tabela 2.
Tabela 2: Evolução do Sítio Boa Vista
Fonte: Planilhas de avaliação econômica e zootécnica da fazenda nos dois períodos
As melhorias relacionadas à renda chamam à atenção no processo evolutivo do Sítio Boa Vista. Uma das estratégias utilizadas pelo Programa “Goiás Mais Leite” é o incremento na disponibilidade e na qualidade do alimento volumoso oferecido ao rebanho, aumentando o desempenho dos animais em produção, reduzindo despesas com gastos em alimentos concentrados e, por consequência, favorecendo o nível de renda da fazenda. No caso do Sítio Boa Vista, o fluxo de caixa teve um aumento de R$ 46.047,79, uma elevação de praticamente 100% do valor obtido inicialmente (de R$ 47.864,98 para R$ 93.912,77). O investimento foi 278% maior que no período inicial (de R$ 6.692,00 para R$ 25.300,00), o que demonstra um alto nível de confiança do produtor em relação ao trabalho executado. A melhoria no fluxo de caixa mostra que ações básicas como o manejo correto das áreas das pastagens no período das águas pode ter um grande impacto na renda das fazendas. No Sítio Boa Vista, as vacas com potencial de produção superior a 5.000 litros na lactação se alimentavam de maneira extensiva em uma área de 25 ha de B. Brizantha. Com a intensificação da produção de pastagens, em apenas 2,0 ha deste capim e, posteriormente, em outros 1,6 ha de capim Mombaça de um segundo sistema de pastejo, o produtor conseguiu alocar todas as vacas em lactação, promovendo melhorias de manejo e conforto aos animais. Elas gastam menos energia caminhando, direcionando mais nutrientes para a produção de leite. A concentração dos animais em produção em uma área total de 3,6 ha permitiu que uma área maior estivesse disponível para a alimentação dos animais secos e em crescimento. A melhoria da situação financeira da propriedade também foi refletida no índice “Despesa de custeio/receita”: Nos primeiros dozes meses de trabalho, 71,6% da renda era comprometida para o pagamento de despesas operacionais. Quanto maior a porcentagem dessa renda, maior a vulnerabilidade do negócio, que em momentos de queda de preços, ou de aumento nos valores dos insumos, enfrenta dificuldades de fluxo de caixa. No último período de trabalho, o comprometimento da receita com o pagamento de despesas operacionais havia sido reduzido para 57%, demonstrando a eficiência das ações técnicas direcionadas para a geração de renda na fazenda. Podemos observar que os índices referentes ao percentual de vacas em lactação no rebanho, média diária das vacas em lactação e litros/pessoa/dia não tiveram diferença significativa entre os períodos, pois estes resultados são obtidos em médio e longo prazo, e virão após um tempo maior de atuação na propriedade.
O que se busca inicialmente em um trabalho de assistência técnica é a conquista da confiança do produtor. Ele precisa acreditar no trabalho do técnico e tê-lo como parceiro, investir adequadamente na propriedade e assegurar a elevação da produção e o aumento da renda. Os benefícios alcançados fizeram com que o filho do produtor, o jovem Marcos Paulo, técnico em mecânica, retornasse para a propriedade e passasse a ajudar o pai a conduzir o negócio da família, abrindo mão de um salário mensal de R$ 4.000,00 que recebia trabalhando em Goiânia. Esse é resultado mais difícil de ser obtido em uma fazenda leiteira e é o que manterá a atividade viva no longo prazo.
Todo este processo que atravessa o Sítio Boa Vista é acompanhado por visitas periódicas trimestrais do instrutor do programa e por visitas mensais do técnico em processo de capacitação, que vivencia todas as mudanças, absorve os conceitos técnicos e reaplica o que foi aprendido, aumentando o alcance da rede de conhecimento e de cidadania representada pelo Programa “Goiás Mais Leite” e pelo Projeto Balde Cheio.
O conhecimento levado ao produtor rural, além de gerar maior riqueza e renda, promove expectativas de uma vida melhor no campo, tanto para os pais, que já conduzem o negócio há muitos anos, como para os filhos, que passam a enxergar a fazenda como uma fonte de realização pessoal e material, demonstrando que este é, realmente, o melhor insumo que o produtor rural pode adquirir. O Sistema FAEG - SENAR/AR-GO e os demais parceiros do Programa “Goiás Mais Leite” estão de parabéns. O produtor goiano agradece!