O mercado brasileiro de leite tem sido muito voltado para a produção de leite fluído e o brasileiro médio ainda não introduziu no seu dia a dia as teorias no relacionamento entre gordura dietética e saúde humana. A consequência destes fatos é que por aqui o leite tem sido majoritariamente remunerado com base nos litros produzidos, frequentemente acompanhado de um desconto por falta de teor de gordura. É importante ressaltar que desconto por falta de sólidos não é sinônimo de pagamento por sólidos. Neste caso ocorre perda de preço por falta de qualidade, mas isto não implica que ocorre remuneração quando a qualidade é acima da mínima exigida. Como atender ao limite mínimo sempre foi fácil, nossa cultura em sólidos de leite é praticamente nula. Por exemplo, tenho certeza que a grande maioria de nossos técnicos e produtores não sabe o que seriam valores de proteína baixa ou alta no leite de uma vaca. Considero este fato compreensível, já que qual seria a utilidade desta informação dentro do mercado de leite brasileiro?
Rumores recentes de pagamentos por sólidos parecem indicar que a vaca leiteira brasileira será finalmente valorizada como produtora de alimento em vez de ser uma mera produtora de água. Este fato, desde que implantado de uma maneira financeiramente justa, pode representar uma mudança de rumos nas áreas de melhoramento e nutrição de gado leiteiro no país. Nutrição e genética são certamente as duas avenidas mais promissoras para atuar sobre a composição do leite em proteína e gordura.
Uma questão, aparentemente simples, mas que não é, seria o relacionamento entre porcentagem de sólidos por litro de leite e produção de sólidos por unidade de tempo. A vaca leiteira tem se tornado cada vez mais eficiente em produzir alimento por dia. Sólidos no leite representam moléculas com origem dietética, por isto vacas de alta produção têm alta demanda nutricional. O aumento na capacidade dos bovinos leiteiros de excretar leite com sólidos tem sido marcante nos últimos 40 anos (Figura 1). É importante ressaltar que o limite fisiológico da produção ainda está longe de ser atingido, já que bovinos não produzem tanto leite por quilo de peso vivo quanto outros mamíferos. A vaca americana Lucy produziu 34.216 kg de leite em 365 dias de lactação; 93,7 kg por dia; 116 kg de leite no pico da lactação. Se uma produziu, todas podem produzir. Quando todas estiverem produzindo, uma estará produzindo muito mais. Produtores e técnicos só precisam se adequar.
Enquanto o crescimento na excreção mamária de sólidos tem sido evidente (Figura 2), a mesma tendência não é observada para a porcentagem de sólidos no leite (Figura 3). A produção de gordura por lactação tem aumentado cerca de 5,08 kg/ano enquanto a produção de proteína tem aumentado cerca de 3,69 kg/ano na população de vacas norte-americanas da raça Holandesa, indiscutivelmente a raça mais eficiente em produzir sólidos por lactação (Tabela 1). A produção de sólidos por lactação é a razão de ser da vaca Holandesa, justificando a sua predominância mundial como raça pura para produção de leite. Conseguir tão significativo aumento em produção sem a queda simultânea na porcentagem de sólidos pode ser considerada uma vitória da indústria leiteira. A correlação genética entre produção de leite e teor de sólidos no leite é sabidamente negativa. O lado negativo da queda na porcentagem de sólidos seria o alto custo de transporte por unidade de sólido. Apesar da vaca ser trabalhada para gerar a maior quantidade possível de queijo ou manteiga por unidade de tempo, a indústria tem interesse em aumentar o teor de sólidos por litro de leite para maximizar a eficiência de transporte de leite.
Cruzamentos entre raças é certamente um dos caminhos para aumentar rapidamente o teor de sólidos, já que algumas raças são mais eficientes que outras na produção de sólidos por litro (Tabela 1). Entretanto, esta estratégia pode penalizar a produção de sólidos por lactação. A estratégia a ser seguida pela fazenda, enfatizar porcentagem ou enfatizar produção, depende do sistema de pagamento do leite por sólidos. De nada adianta um leite bem remunerado por litro se a vaca produz pouco e, portanto, resulta em renda inferior à obtida com um leite menos bem remunerado por litro mas que aumenta o lucro por animal por dia, por vender mais sólidos.
Definir critérios de pagamento por sólidos não é tarefa simples. Cito uma fórmula que usei há anos para trabalhar dados financeiros nos EUA. Naquela época se dizia que este era o futuro na remuneração do leite no mercado americano, que valoriza proteína e onde combustível para veículos ainda não é item majoritário nos custos. Seria totalmente sem fundamento sugerir esta fórmula para adoção no nosso Brasil abarrotado de estradas ruins, combustível caro, uma indústria láctea cada vez mais dispersa graças ao objetivo de busca por leite barato nas áreas de fronteira agrícola e com nossas particularidades de produtos lácteos. O intuito é apenas mostrar uma proposta, e que ela contribua para que nossas cabeças pensantes achem seu caminho. Renda bruta por vaca (US$) = (kg de gordura x 1,5432) + (kg de proteína x 4,1888) + [(kg de leite - kg de gordura - kg de proteína) x 0,0982]. Esta estrutura de preço foi baseada em um valor de US$ 12,50 por 100 libras de leite contendo 3,5% de gordura e 3,1% de proteína, e valores de US$ 1,90 por libra de proteína e US$ 0,70 por libra de gordura. Espero que os definidores de preço do leite ao produtor mais uma vez não o penalizem em interesse próprio. Sugiro também que produtores pensem na política de pagamento antes de adotar determinada estratégia nutricional e de acasalamento dos animais. Tomara que o pagamento por sólidos venha recompensar aqueles que produzem leite de qualidade a partir de vacas produtivas e melhores com o passar das gerações, e que não seja apenas uma ferramenta para penalizar aqueles que não atingem critérios industriais mínimos e que penalizam a eficiência de transporte de leite pela indústria.
Figura 1: Crescimento proporcional ao ano de 1964 na produção de leite, de gordura e de proteína nas vacas da raça Holandesa nos Estados Unidos.
Fonte: USDA - Animal Improvement Programs Laboratory (Adaptado). (https://www.aipl.arsusda.gov/)
Figura 2: Evolução da produção de gordura e de proteína no leite na população de vacas da raça Holandesa nascidas de 1964 a 2002 nos Estados Unidos.
Fonte: USDA - Animal Improvement Programs Laboratory. Dados relatados na avaliação genética de Maio de 2004. (https://www.aipl.arsusda.gov/)
Figura 3: Evolução da porcentagem de gordura e de proteína no leite na população de vacas da raça Holandesa nascidas de 1964 a 2002 nos Estados Unidos.
Fonte: USDA - Animal Improvement Programs Laboratory. Adaptado dos dados relatados na avaliação genética de Maio de 2004. (https://www.aipl.arsusda.gov/)
Tabela 1: Produção de leite, gordura e proteína das vacas nascidas no ano 2000 nos Estados Unidos e relatadas na avaliação genética de Maio de 2004.
Fonte: USDA - Animal Improvement Programs Laboratory. (https://www.aipl.arsusda.gov/)