Engenheiro Agrônomo e Administrador
Secretário de Estado da Agricultura e da Pesca de Santa Catarina
A produção de leite no Brasil é uma das cadeias produtivas do agronegócio que tem os maiores ganhos marginais a incorporar em todos os seus elos da produção nos próximos anos. Trata-se de um setor que evoluiu menos em termos de profissionalização e organização do que outras cadeias produtivas, como a produção de frangos de corte e suínos, que hoje já são competitivos em nível de mercado global. Temos aqui uma boa má notícia: a cadeia produtiva do leite está atrasada, sim, mas tem um enorme potencial para melhorar, se resolver os problemas que o setor enfrenta atualmente. Felizmente são problemas que têm solução, alguns no curto prazo, outros no médio e outros ainda necessitarão de um prazo longo para serem solucionados.
De olho no potencial do leite, em setembro de 2014, os governadores dos estados de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, junto com suas Secretarias de Agricultura e entidades do setor público e privado, lançaram a “Aliança Láctea Sul Brasileira”. A aliança é uma iniciativa que tem por objetivo resolver problemas comuns e aproveitar as oportunidades que o setor apresenta na região sul do Brasil. Trata-se de uma agenda técnica, política e econômica que busca sinergias no setor lácteo, que deverá resultar em competitividade para abastecer o mercado doméstico e exportar leite. Juntos, os três estados têm cerca de 300 mil produtores de leite, que produziram em 2013, 11,3 bilhões de litros, representando um terço da produção brasileira. Nessa região, a produção vem crescendo rapidamente, sendo que o índice de captação de leite das indústrias cresceu 82% em 10 anos.
Como o leite bovino é um produto produzido por um animal ruminante, o potencial de produção de uma região está diretamente relacionado à capacidade de produção de biomassa de boa qualidade, em grande quantidade. Poucos países do mundo têm um potencial de fotossíntese, que é o processo básico para produzir pastagens e grãos, e constituem a base da alimentação das vacas de leite, como a região sul do Brasil. Na Europa e na Nova Zelândia as pastagens crescem durante apenas 6 a 9 meses do ano, por causa do inverno rigoroso que limita seu desenvolvimento. No sul do Brasil, chove nos doze meses do ano e podem-se combinar pastagens de verão com pastagens de inverno, aproveitando o solo durante o ano todo. Em Santa Catarina, índice pluviométrico médio é de 1800 a 2000 mm anuais, o que sem dúvida é um fator decisivo para apostar na produção de pastagens. Basta aplicar princípios agronômicos adequados, tratando a pastagem tão bem como cuidamos as lavouras de milho, soja ou arroz. Para maximizar sua produção com eficiência e baixo custo, o produtor de leite precisa antes transformar-se em um eficiente produtor de pasto.
Os agricultores familiares, que predominam no cenário da produção agropecuária dos três estados do Sul, têm forte tradição e habilidades na lida com animais. Muitos já foram produtores comerciais de suínos e não conseguiram acompanhar a demanda por investimentos necessários para a modernização da suinocultura. Acabaram excluídos da atividade, mas agora formam um grande exército de produtores de leite onde o custo de entrada e a escala de produção ainda são menores.
O cenário apresentado para o setor lácteo na região Sul do Brasil é muito favorável ao crescimento da produção em volume e qualidade. Há grandes desafios e oportunidades pela frente. O leite é o setor que mais vai mudar entre no agronegócio da região Sul e essas mudanças serão para melhor. Não há dúvidas de que vai haver “choro e ranger de dentes” nesse processo de modernização do setor. Haverá vencedores e vencidos. Fazer o dever de casa é necessário para que o produtor e as próprias indústrias de lacticínios possam se manter “em cima da esteira” que vai girar em ritmo rápido nos próximos anos. A estratégia de “parar a esteira do progresso tecnológico”, que leva a aumentos de produtividade, só para que não haja exclusão dos mais ineficientes, não é uma opção viável para o setor. O aumento do número total de empregos gerados pelo setor depende do crescimento da produção, e não necessariamente do número de produtores de leite. Alguns produtores que tenham escala muito pequena para manter uma estrutura de ordenha, ou que têm mão de obra mais idosa ou uma propriedade com relevo muito acidentado para vacas em produção, poderão participar da cadeia produtiva com atividades especializadas, a exemplo de criar novilhas, prestar serviços de fazer silagem, cercas, transporte, ou produzir pasto para vender aos produtores de leite.
PERSPECTIVAS
As perspectivas para o mercado mundial de lácteos são positivas, na medida em que os países mais populosos do mundo, como a China, a Índia, países que integram a União Africana e a América Latina melhoram a sua economia e aumentam a renda per capita de sua população. Nesses países, grande parte da população ainda vive com renda diária inferior que oito dólares por pessoa. Há estudos que indicam que até que a renda de uma família atinja esse limite, todo ganho a mais vai ser empregado prioritariamente no consumo de alimentos. Trata-se de uma grande notícia para o Brasil, candidato a ser um grande fornecedor de alimentos para o mundo, principalmente de proteína animal. A Organização Mundial da Saúde recomenda o consumo médio de 200 litros de leite e derivados por pessoa por ano. Hoje no mundo são produzidos 700 bilhões de litros de leite, para uma população de pouco mais de 7 bilhões de pessoas, o que resulta numa oferta de 100 litros por habitante por ano, a metade do recomendado pela OMS. Temos assim um mercado com grande potencial de crescimento.
No mercado doméstico, o Brasil já dispõe de 35 bilhões de litros de leite por ano, o que representa uma oferta de 175 litros por brasileiro por ano. Em breve nossa produção vai ofertar 200 litros/habitante/ano e então para crescer, teremos que estar prontos para exportar. Ainda não estamos prontos para isso.
DESAFIOS
Para ser competitivo, o leite produzido no Brasil precisa atender uma regra geral que já é realidade na suinocultura e avicultura: produzir produtos de qualidade, a custo baixo, em cadeias produtivas bem organizadas, que possam atender as exigências do mercado global. Já temos leite bom, mas a custo muito alto, e temos leite de custo baixo, mas de qualidade ruim. Precisamos por os dois atributos, qualidade alta e custo baixo no mesmo leite. Implantar de forma definitiva os padrões da IN 62 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento deveria ser uma opção inegociável do setor produtivo e não uma imposição do governo.
Respeitadas as diferenças entre os setores do leite com os de frangos e suínos, por conta da maior endogenia do sistema de produção com animais ruminantes que digerem pastagens, a organização da cadeia produtiva precisa melhorar para gerar eficiência e competitividade como nos dois setores de carnes já consolidados. Os debates na Aliança Láctea Sul Brasileira apontam que os desafios para o leite podem ser agrupados em profissionalização, qualidade, sanidade, organização setorial e tributação.
1. Profissionalização do produtor de leite e dos agentes da cadeia produtiva: Para conseguir um nível de produtividade maior, os produtores precisam de mais assistência técnica e gerencial. Tecnologias adaptadas à realidade regional, com pesquisas que resultem em inovações úteis aos produtores de leite. Já existem múltiplas entidades do setor público e do setor privado oferecendo serviços de assistência técnica e extensão rural (ATER), mas falta coordenação, sincronismo e planejamento dessas atividades. A ATER também precisa se preocupar com orientação gerencial, pois o sucesso dos produtores está relacionado a um maior número de escolhas certas e a um menor número de escolhas erradas que são feitas na administração da propriedade.
No nível de propriedade rural, precisamos desenvolver uma indústria de serviços para apoiar os produtores de leite em suas atividades ocasionais, como por exemplo, fazer silagem, mecanização agrícola, que devem ser serviços terceirizados. O resultado da atuação profissionalizada será mais eficiência, produtividade e qualidade.
2. Melhoria da qualidade do leite e conformidade legal: O leite é um produto altamente perecível e a sua qualidade precisa ser mantida ao longo de todas as etapas do processamento. Vacas saudáveis dão leite bom, mas ele se degrada rapidamente depois de tirá-lo de seu úbere. Para assegurar a qualidade, a higiene na ordenha é imprescindível e depois disso, só há uma forma de manter a qualidade do leite após a ordenha: submetê-lo a ambiente frio, isto é, refrigerá-lo tão logo entre em contato com o ar. Para conservar a qualidade do leite, os produtores precisam de energia elétrica de qualidade e sistemas de troca de calor que refrigerem o leite a 4 graus centígrados imediatamente após a ordenha. Os resfriadores ineficientes utilizados na maioria das propriedades do Sul do Brasil levam de 4 a 6 horas para atingir essa temperatura, e nesse período as bactérias se multiplicam e degradam a qualidade do leite. Os produtores precisam de equipamentos que refrigerem água durante a noite (quando a energia elétrica deveria ser mais barata), e essa água fria pode gelar o leite no ato da ordenha em placas de troca de calor. A Nova Zelândia, país que responde por mais de 30% de todo o leite exportado do mundo, produz leite de alta qualidade e a contagem bacteriana no leite já é problema do passado, a partir da instalação de equipamentos eficientes para a geração de frio. Pagamento por qualidade é imprescindível para alcançar a melhoria do leite. Leite bom tem que valer mais e leite ruim precisa ser penalizado, para mexer no bolso do produtor com incentivos e redutores de preço, conforme o caso. A qualidade do leite também está na sua composição. O teor de sólidos totais e principalmente o teor de gordura e proteína são fundamentais, porque afetam o rendimento industrial do leite. Na Nova Zelândia, que há muito tempo vem investindo no aumento de sólidos de leite, atualmente, a média nacional da soma do percentual de gordura e proteína é de 8,4%, o que significa 25% a mais de valor no leite em termos de rendimento de derivados de leite na indústria do que a média do leite brasileiro. O aumento de sólidos foi conseguido com melhoria da genética do rebanho, manejo e alimentação.
As fraudes no leite precisam ser definitivamente eliminadas do setor e para isso os fraudadores precisam ser identificados e punidos, como já vem sendo feito na região Sul do Brasil. As autoridades responsáveis, principalmente os sistemas de inspeção precisam mapear os pontos de risco e reduzir ao mínimo as chances de alguma fraude passar sem ser descoberta e punida.
3. Sanidade: Não há sustentabilidade na cadeira produtiva do leite sem rebanhos saudáveis. O estado de Santa Catarina já é livre de febre aftosa sem vacinação, com certificação pela Organização Mundial de Saúde Animal (OIE). Os estados vizinhos são considerados livres da doença com vacinação. Porém a Brucelose e a Tuberculose, que são zoonose, ainda preocupam muito no setor lácteo. A estratégia de eliminar essas doenças com certificação por propriedade não tem resultado num controle efetivo, pois as propriedades são muito pequenas e os rebanhos estão muito próximos uns dos outros, facilitando a re-contaminação. Uma estratégia de limpeza de brucelose e tuberculose por região ou zona parece ser mais recomendável, para não ficarmos “enxugando gelo”. Em Santa Catarina, um inquérito epidemiológico realizado em 2013 apontou uma prevalência de 0,67% das propriedades contaminadas e 0,28% do rebanho de 4,1 milhões de cabeças de bovinos. Em 10 anos, Santa Catarina já sacrificou e indenizou 13.735 bovinos por tuberculose e brucelose e gastou 18 milhões de reais com indenizações. Infelizmente as recontaminações continuam acontecendo, pois o diagnóstico ainda não é feito de forma compulsória em todas as propriedades.
4. Organização do setor: Para ter eficiência e competitividade no mercado global, o setor lácteo precisa eliminar todos os custos ociosos, os quais, via de regra acabam recaindo sobre o produtor rural. Por exemplo, no caso da coleta e transporte do leite, ainda encontramos linhas onde circulam até cinco caminhões de diferentes empresas, cada um carregando pequenos volumes de leite. O resultado é que hoje temos em média, menos de 30 litros de leite entregue na plataforma da indústria por km rodado do caminhão. Na Nova Zelândia, nosso potencial concorrente no mercado global, esse índice é superior a 200 litros por km rodado. Dentro das indústrias há outras ineficiências que reduzem a produtividade e a rentabilidade. Produtos de alto valor agregado devem ser desenvolvidos, sempre enxergando o leite como uma matéria prima industrial que pode ser transformada em milhares de diferentes produtos para agradar ao paladar de consumidores em todo o mundo. Também é preciso aprimorar os insumos utilizados na produção, desde equipamentos de refrigeração, qualidade da água e até produtos utilizados na limpeza.
A relação dos produtores de leite com as indústrias precisa ser formalizada por meio de contratos ou a fidelização por meio de cooperativas, para que haja mais segurança para todos os elos da cadeia produtiva. Formalizar os compromissos significa tirar os aventureiros e atravessadores do mercado, para resultar numa relação de parceria que leva benefícios ao produtor, como assistência técnica, zootécnica e veterinária e também vai resultar em melhores resultados para as indústrias.
5. Tributação: Não pode haver competição deletéria entre os estados por conta das diferenças de tributação. Evitar o “passeio” do leite é reduzir custos e aumentar a eficiência setorial. Não se trata de mais ou menos impostos ou tarifas mais altas ou mais baixas. Trata-se de igualar o ambiente tributário para que deixe de ser fator de diferença na capacidade de progresso do setor em cada estado.
O setor lácteo do sul do Brasil apresenta vantagens comparativas que podem ser transformadas em vantagens competitivas. Isso requer ação humana, com emprego de inteligência, conhecimento, tecnologia de ponta que geram aumento de produtividade com sustentabilidade. A agenda ambiental também precisa ser respeitada, combinando produção com preservação.
Pode existir uma forte complementaridade entre a produção de suínos, frangos e leite, que precisa ser explorada. Os suínos e frangos consomem grãos, na forma de milho e farelo de soja, que são em grande parte trazidos do Centro Oeste do Brasil. Esses animais deixam para trás os dejetos que podem ser um grande problema ambiental. A integração da produção de leite na mesma região dos suínos e frangos permite transformar os dejetos em adubo para produzir pastagens e forragens, transformando o lixo em luxo. O sucesso da produção de leite vai depender do perfeito ajuste na equação solo – clima – planta – animal e mercado.
Não há uma resposta única para qual modelo de produção de leite devemos escolher para a região sul do Brasil, mas sim, devemos optar por um sistema que dê lucro com sustentabilidade. Nesse sentido, é preciso manter um olho no custo de produção e outro na qualidade. Produzir leite a base de pasto parece ser a melhor opção, porém sem deixar de utilizar qualquer insumo que passando pela digestão da vaca resulte em lucro, o que significa dizer que, quando o preço do leite compensar o custo de concentrados e suplementos, devem ser utilizados junto com o pasto. Como no meio rural do Brasil a mão de obra está se tornando cada vez mais cara, reduzir dependência de “garçons de vacas” deve ser um alvo, trocando vacas que precisam ser servidas por vacas que saibam se servir no pasto.
No Brasil temos o privilégio de ter um grande mercado doméstico composto de 200 milhões de consumidores e por isso não precisamos fazer todo o dever de casa em uma noite só. Mas não devemos esquecer que para poder crescer na produção de leite, teremos que exportar, e para encarar o mercado global, qualidade, custo e logística eficiente são atributos inegociáveis.