Claro que Darwin tem enorme importância. Há quem diga, talvez com propriedade, que a teoria da evolução é a ideia mais genial que alguém já teve, colocada à frente das contribuições de Einstein e Newton. Richard Dawkins ("O Gene Egoísta") questiona o fato dela não ter sido proposta séculos antes, dada a sua simplicidade, o que a valoriza ainda mais. Suas aplicações se estendem a diversos campos, da biologia à medicina, passando pela psicologia e até pela computação. É uma proposição simples, convincente e poderosa.
Mas a ênfase nas comemorações dessas datas vai além da simples lembrança de grandes feitos e de ideias que mudaram nossa concepção a respeito da história humana. Há, no ar, um resgate dos princípios por trás das ideias que embasaram a origem das espécies e a evolução, uma ânsia renovada por explicar e fazerem-se entendidas as premissas que nortearam a grande descoberta de Darwin.
É como se houvesse uma oportuna coincidência entre a comemoração dessas datas e a aplicabilidade das idéias e dos conceitos, que estariam encontrando agora um ambiente propício para serem discutidas e analisadas, talvez sob um novo contexto. Nada é tão poderoso quanto uma ideia cujo momento finalmente tenha chegado. Talvez as ideias de Darwin tenham encontrado uma segunda vida nesse início de milênio, em que a vulnerabilidade humana e o precário equilíbrio ambiental vêm sendo reafirmados todos os dias, expressos nas mudanças climáticas e no uso crescente de recursos, em uma equação que não tem como ser resolvida se algo de muito significativo não mudar.
Mas, afinal, em que ponto nossa realidade encontra Darwin? A Teoria da Evolução baseia em alguns aspectos essenciais. Primeiro, que as espécies são não imutáveis; pelo contrário, sofrem ação de mutações aleatórias, ocorridas em indivíduos, e que são transmitidas à prole. Segundo, nascem mais indivíduos do que o meio é capaz de suportar, de forma que há competição entre eles (um insight que Darwin teve lendo a obra de Malthus); assim, as mutações que de fato resultam em vantagens adaptativas a determinadas condições ambientais e/ou em vantagens reprodutivas tendem a predominar, ao passo que outras que conferem desvantagens tendem, ao longo de várias gerações, a ser eliminadas. As espécies que hoje aqui estão, sem exceção, são as vencedoras do processo de seleção natural que age há milhões de anos sob todas as formas de vida. Se o ambiente mudar, as características que conferem às espécies de hoje vantagens adaptativas podem, dependendo da mudança, ser prejudiciais, estimulando o desenvolvimento de outras espécies com características mais favoráveis ao novo ambiente.
Ao mostrar que o homo sapiens não era produto da criação divina, do design perfeito, mas sim o resultado de mutações aleatórias adaptadas ao ambiente como qualquer outra forma de vida, Darwin colocou o homem em seu devido lugar; éramos, afinal, parte de uma engrenagem que abrangia todas as formas de vida. Em maior ou menor grau, tínhamos parentesco com elas, em especial com os macacos, com quem dividíamos um ancestral comum. Éramos, na verdade, um tipo de macaco. Um choque de humildade que, no início desde século, estamos novamente presenciando à medida que o ambiente é alterado pela ação humana, com consequências ainda em sua maioria desconhecidas no que se refere ao equilíbrio vital (isso sem falar na crise econômica no centro do capitalismo, mais um ingrediente para o choque de humildade).
A famosa árvore genealógica de Darwin. "Eu acho", anotou ele.
Sustentabilidade talvez seja um dos termos mais repetidos na mídia, ainda que não saibamos exatamente o que significa e como praticá-lo. Sem dúvida existe um oportunismo de mercado, mas é inegável que a consciência ambiental vem crescendo. Os efeitos das mudanças climáticas e a percepção de que os recursos naturais não são infinitos nos são lembrados com freqüência cada vez maior. Como conciliar o aumento de mais 2,3 bilhões de pessoas no mundo até 2050, dada essa nova conjuntura ambiental para a qual caminhamos, em maior ou menor velocidade? Como conciliar o aumento da renda média nos países emergentes, resultando em maior consumo e uma convergência a hábitos e padrões ocidentais?
Tim Bond, do Barclays Capital, diz que a elevação do consumo de energia da Índia e da China aos padrões ocidentais, em base per capita, está fora de questão. Sozinhas, consumiriam 160 milhões de barris de petróleo por dia, contra 85 milhões que o mundo todo consome hoje. As reservas de energia conhecidas seriam exauridas em 15 anos. As emissões de CO2 triplicariam, a temperatura subiria 5°C, haveria colapso social, econômico e ambiental. Mesmo aumentos moderados não parecem cabíveis.
Ainda: como produziremos alimentos diante das mudanças climáticas e como lidaremos com a escassez crescente de água? Estas são algumas questões essenciais e que nos remetem a Darwin: o ambiente está mudando, um novo equilíbrio se faz necessário; as premissas sob as quais nos desenvolvemos como civilização precisarão ser revistas. Ainda não sabemos aonde e como ir, mas sabemos que precisamos ir. É um começo.
Isso envolve uma enorme ruptura. Sérgio Besserman Vianna diz que "o apogeu do modo de produção capitalista e do fetichismo da mercadoria nos afastou da qualidade das coisas, deixando-nos envoltos na névoa cinza das quantidades. O tempo exclusivo das quantidades sempre pode ser menor, cada vez menor. Tudo o que é sólido, desmancha no ar. Superar esse paradoxo vai exigir rupturas. Rupturas na extensão da consciência histórica, na relação da natureza com o planeta, no modo de produzir e consumir".
Ralph Waldo Emerson escreveu que "quando se patina sobre gelo fino, a segurança está na velocidade". No mundo de hoje, o importante é seguir rapidamente; o que ficou para trás não importa, é descartável como o gelo fino que se quebra quando passamos. Da mesma forma, o futuro resume-se a permanecer de pé, nos próximos metros. Não há espaço para olhar muito adiante.
Mudaremos esse paradigma? Jared Diamond, na conclusão de Colapso - Como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso, diz-se um otimista cauteloso: de um lado, reconhece a seriedade dos problemas que enfrentaremos; de outro, lembra que há soluções existentes ("o futuro está em nossas mãos; estamos lidando com problemas que nós mesmos criamos", diz ele), a consciência ambiental cresce em todo mundo e a interdependência do mundo moderno globalizado, onde a informação flui rapidamente, são os motivos de esperança. "Esta é uma oportunidade (de mudança e de escolhas) que nenhuma sociedade do passado desfrutou nesse grau. Minha esperança é a de que muita gente escolha tirar proveito dessa oportunidade para fazer diferença", finaliza.
O Prof. Ricardo Abramovay, da FEA/USP, mostra que as escolhas já estão sendo feitas. Ele diz que "é notável o avanço de vários países da OCDE na formulação deste problema. Os termos decisivos são descasamento ou desligamento (decoupling, delinking): eles sinalizam para a quebra do vínculo entre crescimento econômico e uso dos recursos. Isso supõe o estabelecimento de uma contabilidade dos fluxos de insumos e detritos que se encontram não somente nos processos produtivos, mas também no consumo. Além da famosa (e muito criticada) pegada ecológica, existe hoje um conjunto amplo de indicadores e de institutos de pesquisa voltados a conhecer de perto as bases materiais e energéticas em que repousam o funcionamento da sociedade".
O desafio é considerável. Os efeitos das mudanças climáticas e do uso de recursos que um dia acabarão transcendem as gerações; como conciliar o imediatismo do consumo e a valorização do momento com a necessidade de deixar um mundo melhor para as gerações futuras? A sustentabilidade remete a um futuro que, até então, não nos tem importado. A questão temporal, aliada a própria ruptura nos padrões comportamentais, demanda uma ação de cima para baixo, a partir das lideranças, ainda que a consciência ambiental venha crescendo mundo afora. Marcos legais e mecanismos de mercado precisam ser aperfeiçoados para nos colocar na direção correta.
A teoria de Darwin nos lembra que não somos tão especiais assim, nem tão invulneráveis, como ocorre com qualquer outra espécie. A competição por recursos é uma realidade crescente, assim como a mudança no ambiente, nesse caso produzida por nossa própria ação. Nesse sentido, o seu enaltecimento, 200 anos depois, pode significar a compreensão e o reconhecimento de que algo precisa ser feito para que as condições em que nos desenvolvemos enquanto civilização não sejam drasticamente alteradas em um futuro próximo. Parece, enfim, que estamos redescobrindo Darwin. A sua releitura chegou em boa hora.
PS: Sugiro o livro "Charles Darwin - Em um futuro não tão distante", organizado por Maria Isabel Landim e Cristiano Rangel Moreira, do Instituto Sangari, que analisa a obra e a vida de Darwin, além das implicações atuais.