Essa tendência vem mudando nos útimos anos de forma desapercebida, mas é agora notável com recentes investimentos indústriais. O país caminha para autossuficiência e tem substituido importações com o aumento da produção doméstica.
Gráfico 1. Valor e volume importado de soro de leite desde 1996.
Fonte: MDIC / Alice, elaborado por Milkpoint.
Os volumes anuais de importação incluem:
- Soro de leite em pó "doce" que advém da produção de queijos; é o produto mais simples (ou, pode-se dizer, "integral");
- Soro de leite em pó desmineralizados, com 25% a 90% dos seus minerais extraídos;
- Soro delactosados, com até 30% de concentração de proteína;
- Concentrados protéicos de soro de leite conhecidos como WPC (sigla em inglês para Whey Protein Concentrate) com mais de 30% de concentração de proteínas;
- Isolados protéicos de soro de leite (sigla em inglês para WPI - Whey Protein Isolate) a partir de 80% de concentração de proteína de Soro.
Do processamento dos concentrados e isolados protéicos de soro de leite, ainda se obtém o soro de leite "desproteinizado" ou permeato de soro de leite, geralmente com 80% mínimo de lactose, além de uma porcentagem residual de protéina cujo perfil e qualidade é menos relevante nutricionalmente.
Gráfico 2. Soro de leite e suas frações
Fonte Rabobank, adaptado por Otavio A. C. De Farias
Suas aplicações indústriais são diversas como ingrediente na produção de alimentos ou indústria farma/nutracéutica (panificação, sorvetes, misturas lácteas ou leites modificados, chocolates, suplementos esportivos e nutricionais, fórmulas infantis e outros); é também aplicado na indústria de nutrição animal em premixes e núcleos para suínos, principalmente, e gado de leite.
O ingrediente é valorizado na substituição total ou parcial do leite in-natura ou leite em pó integral (e desnatado) em tais aplicações, suprindo parte do perfil nutricional e funcional do leite, sobretudo no que se refere à lactose (carbohidrato ou "açúcar" natural do leite) e a proteína de soro (basicamente alpha-lactalbumina and beta-lactoglobulina).
A proteína de soro de leite tem grande valor nutricional; é de fácil absorção durante a digestão (alta biodisponibilidade) se comparada às proteínas vegetais e animais, conforme quadro a seguir:
Quadro 1. Biodisponibilidade: Proteínas vegetais e animais
Fonte: USDEC - U.S.Dairy Export Council, adaptado por Otavio A. C. De Farias
Outro índice importante, quanto à digestibilidade da proteína do soro de leite, é o chamado PDCAAS (Protein Digestibility Corrected Amino Acid Score):
Quadro 2. Digestibilidade: Proteínas Vegetais e Animais
Fonte: USDEC - U.S.Dairy Export Council, adaptado por Otavio A. C. De Farias
No Brasil houve, principalmente nos últimos 15 anos, discussões e escândalos sobre adição ilegal do soro de leite para a extensão do leite longa vida (UHT) e do leite em pó. Tal prática foi então regulamentada, com maior rigor das autoridades, passando a exigir denominação dos produtos como "leite com adição de nutrientes do leite" e posteriormente "leite modificado" e também as "bebidas lácteas".
A prática de adição de soro de leite a formulações desse tipo é perfeitamente comum no resto do mundo, mas é devidamente regulamentada; tais mesclas lácteas são definidas como tal (milk powder blends e milk/dairy beverages), para aplicação industrial ou em produtos de varejo e consumo direto em reconstituição como o leite em pó.
O soro de leite "doce" advém da produção de queijos.
Gráfico 3. Leite e sub-produtos
Fonte Rabobank, adaptado por Otavio A. C. De Farias
A produção brasileira de queijo inspecionada (SIF, Serviço de Inspeção Federal do Ministério de Agricultura) é de aproximadamente 500 mil toneladas (ABIQ, Associação Brasileira das Indústrias de Queijo) e dá origem a um volume estimado de 4,5 bilhões de litros de soro de leite. Este volume corresponde a cerca de 281.250 toneladas equivalentes de Soro de Leite em Pó, sem retirada ou concentração de nenhum de seus nutrientes ou componentes. Deve se considerar a diferença entre o soro de leite em pó "doce" (em inglês sweet whey powder) que advém da produção do queijos (exceto cottage) e o soro de leite em pó "acido" (em inglês acid whey powder) que advém da produção de caseína ácida e também queijo cottage; Esses dois tipos de soro de leite têm perfil de minerais distintos, assim como acidez, além de propriedades organolépticas e, portanto, aplicações indústriais e funcionalidades distintas.
O soro de leite no Brasil tem sido usado historicamente em bebidas lácteas, produção de Ricota e também usado em combinação com leite para produção das misturas lácteas ou "leites modificados" e também bebidas lácteas, conforme já comentado. Outra aplicação comum tem sido banida por questões ambientais e sanitárias - o uso direto em nutrição de suínos.
No Brasil, parte destes 4,5 bilhões de litros de soro de leite têm sido processados em sistemas de torre de secagem (spray-dryer), sistemas utilizados nas principais áreas de processamento de leite e soros de leite ao redor do mundo.
Algumas indústrias de queijo como Italac e a pioneira no passado a Elegê (inicialmente CCGL - Cooperativa Central Gaucha de Laticínios e hoje parte da BRFoods) entre outras, investiram em suas próprias torres de secagem cujo investimento pode atingir US$ 15 a 30 milhões ou mais, dependendo da escala e tecnologia aplicada, assim como o produto final que se deseja obter.
Estima-se que a capacidade industrial instalada no Brasil para processamento (secagem) do soro de leite em pó esteja entre 120 e 150 mil toneladas. Porém, muitas indústrias alternam o processamento com o leite em pó em períodos de safra devido aos excedentes de matéria-prima (o leite), reduzindo a produção de queijos, conseqüentemente reduzindo a disponibilidade do soro do leite. Esta capacidade industrial supriria a demanda doméstica, portanto se conclui que o Brasil teria já, em tese, atingido autossuficiência nesta área. No entanto, esta produção nao supre a demanda de produtos mais sofisticados como os concentrados e isolados protéicos, ou frações das proteínas de soro. Investimentos para estes produtos são mais elevados, demandando escala de produção do soro líquido maiores para justificar a atividade.
A tecnologia de secagem permite não somente dar destino ao soro de leite, antes considerado um resíduo do processamento de queijos, mas também evita impacto ambiental, já que o soro de leite líquido é um poluente. Sem seu processamento (secagem ou processo de bebidas lácteas, liquidas ou em pó), o mesmo deve ser descartado de forma apropriada, ou passar por tratamento de efluentes nas queijarias.
Uma solução pioneira no Brasil foi desenvolvida pelo grupo gaúcho Renner-Herrmann S/A, mais conhecidos pela atuação em tintas e vernizes - a RELAT (Laticínios Renner S/A) coleta e processa soro de leite originado de um pool de indústrias de queijo no sul do país. A capacidade instalada de 1,2 milhão de litros diariamente equivale a mais de 25 mil toneladas de soro de leite em pó ao ano. Em parceria com a RELAT, queijeiros da região destinam de forma segura seus fluxos de soro de leite, evitando um possível passivo ambiental.
Assim como no Brasil, nos Estados Unidos, países Europeus, Mercosul e Oceania, a secagem do soro de leite em produtos mais simples ("doce" ou desmineralizado) foi o caminho mais econômico e mais rápido para se dar vazão do grande volume diário resultante da produção de queijos. Com o tempo, a indústria desenvolveu frações do soro de leite, desde minerais isolados até proteínas concentradas e também frações isoladas da proteína de soro do leite como lactoferrina, lactoperoxidase, globulinas, além da lactose, componente encontrado em maior porcentagem no leite e no soro líquido. Nos Estados Unidos, o consumo de concentrados e isolados protéicos foi também alavancado pelos body-builders (fisiculturistas) devido à qualidade nutricional da proteína de soro.
Uma vez atingida a autossuficiência no Brasil, o próximo passo neste setor será agregar valor ao soro de leite, evitando que todas as indústrias estejam presentes no mercado com produto "comoditizado"; sendo uma commodity, seus preços têm variações bruscas, devido às oscilações constantes no complexo leite e suas principais commodities negociadas mundialmente como leite em pó, gorduras (amf/butteroil e manteiga), queijos, soros de leite e proteínas (caseínas, caseinatos e proteínas de soro).
De qualquer forma, a conclusão a que se chega é que finalmente o Brasil passa a cuidar de um problema ambiental, agregando valor em grande escala ao setor de laticínios, com potencial de gerar faturamento anual de mais de R$ 500 milhões.