Um outro tema ligado à atividade leiteira também era muito discutido: a iminente exclusão dos pequenos produtores de leite. Essa questão preocupante era tida como certa e era também recorrente a afirmação de que aquele que não crescesse estaria condenado à extinção, fora do mercado. Para muitos havia, inclusive, uma linha de corte: 500 litros/dia. Por essa lógica, não haveria escolha, era crescer ou desaparecer. Os argumentos eram muitos: os preços não mais controlados pelo governo seriam cada vez mais baixos para os pequenos, inviabilizando a continuidade do negócio; as fazendas teriam que ter tanque de expansão para o resfriamento do leite e o pequeno produtor não conseguiria arcar com o investimento (os equipamentos de resfriamento de leite eram importados e bastante caros na época); o pequeno produtor não teria leite de qualidade; o custo da coleta granelizada era inviável para pequenos volumes de leite, e assim por diante. Indiretamente, a produção de leite a pasto também estava com os dias contados. Muitos defendiam que a produção com o uso de pastagens era coisa de produtor pequeno. E se eles estavam condenados à extinção, logo não haveria mais produção de leite a pasto no Brasil.
Os anos se passaram e, realmente, muitos produtores deixaram a atividade. No excelente artigo “Quem desiste de produzir leite?”, escrito pelo Prof. Paulo do Carmo Martins, no Blog Observatório, de acordo com o IBGE, 470 mil produtores desapareceram do mapa leiteiro do país no período entre 1996 e 2006. O autor estima que, nesse período, a cada 11 minutos um produtor de leite tenha deixado a atividade. Mas, não sobrou somente para os pequenos. Em função das mudanças de extrato de produção, é difícil precisar quem exatamente saiu da atividade, mas muita gente conhecida na produção de leite em 1996 não produzia mais em 2006, inclusive muitos grandes produtores. O fato é que, guardadas as devidas proporções, produtor de tudo quanto é tipo saiu da atividade: grande, pequeno, com ordenha manual, com ordenha mecânica, com tanque de expansão, sem tanque nenhum, com vaca boa, com vaca ruim...saiu de tudo um pouco. Ainda de acordo com informações do IBGE, até 1996 o Brasil possuía 98,1% de seus produtores com produção até 200 litros/dia; em 2006, esta porcentagem subiu um pouco, para 99,0%; excluindo-se o fato, sem dúvida importante, de que a produção cresceu mesmo com a exclusão de uma multidão de produtores, pouca coisa mudou em relação à participação dos pequenos no processo produtivo. Somente 1% dos produtores brasileiros em 2006 produziam mais que 200 litros/dia, ou seja, os pequenos continuavam no negócio. Para a alegria de uns e tristeza de outros, a previsão de que os pequenos produtores de leite desapareceriam não se concretizou.
Mesmo em situação de grande dificuldade, os pequenos produtores têm resistido e, em muitos casos, conseguido virar o duro jogo de se manter na atividade. No prefácio do livro Sítio Esperança (Camargo, Artur Chinelato de. Sítio Esperança. Londrina, PR. Editora Midiograf, 2008. p. 09-11), o Prof. Vidal Pedroso de Faria, maior caráter e maior autoridade do país na área de produção de leite, e que ensinou muita gente boa a observar a atividade por outros ângulos, descreve de maneira singular a importância do pequeno produtor na evolução da atividade leiteira nos EUA: “Quem não acredita na possibilidade de inserir os pequenos no mercado competitivo ignora que, nos Estados Unidos, o maior produtor mundial, a fazenda média, em 1950, tinha 6 vacas e produzia 40 litros; em 1970, somente 31 vacas vendendo 250 litros, e na virada do século existiam 110 vacas e 2.500 litros por produtor. A redução no número de fazendas, de acordo com estudos, não foi somente devido ao fato de se produzir pouco, mas também a fatores como ampliação do setor de serviços nas cidades absorvendo mão-de-obra com escolaridade, dificuldade de adaptação às exigências do mercado, aparecimento de atividades mais rentáveis com pouco trabalho, como manutenção de hotéis para cavalos, e dificuldades na sucessão, porque os filhos formados em outras áreas não tinham interesse em continuar na atividade. O processo de mudança foi lento, impulsionado pela adoção de tecnologia; muitos produtores pequenos cresceram, e hoje a média por vaca do rebanho/ano é alta por causa de mudanças nos sistemas de produção, mas a área média continua por volta de 100 hectares. A análise do que ocorreu com a atividade leiteira ao longo do tempo revela que ninguém começou grande, a não ser por herança, e que negar ao pequeno produtor a possibilidade de crescer e contribuir para o desenvolvimento do setor é ignorar a história do desenvolvimento da pecuária leiteira no mundo, menosprezar um potencial latente e negar ao homem do campo, que vive ainda num estágio rudimentar de conhecimento tecnológico, a possibilidade de ser inserir no mundo moderno, e não sentir necessidade de migrar para os centros urbanos aumentando problemas sociais nas regiões em desenvolvimento”. Falou e disse Prof. Vidal! Certamente, poderíamos encerrar a conversa por aqui, mas como cada um de nós carrega um pouco do apóstolo Tomé (aquele que precisava ver para crer), sempre haverá alguém que dirá: “Isso é lá nos ‘states’, quero ver por aqui!”. Então, vamos analisar o caso de um produtor que nos ajudará a ilustrar um pouco de tudo o que foi dito até aqui em relação ao potencial produtivo da pequena propriedade e ao fato de tanta gente seguir acreditando na produção de leite como opção de negócio.
Grande parte dos produtores atendidos pelo trabalho técnico da Cooperideal está situada no sul do país, região onde 194 mil produtores abandonaram a atividade entre os anos de 1996 e 2006 (IBGE). A atividade leiteira nessa região é caracterizada por produtores pequenos, seja em relação à área disponível para a atividade, seja pela baixa produção diária. Em dezembro de 2004, visitamos uma pequena propriedade localizada no município de Bom Jesus do Sul, situado na divisa entre o Estado do Paraná e a Argentina. O município faz parte da região sudoeste do Paraná, que possui aproximadamente 28 mil produtores de leite, com predomínio da produção em pequenas propriedades (em média 19,0 hectares) e normalmente conduzidas pela família (Caracterização Socioeconômica da Atividade Leiteira no Paraná - 2009). Nessa propriedade, o Sítio Casa Feliz, com área total de 5 hectares, viviam e ainda vivem o produtor Rudi Mauro, sua esposa Teresinha e os filhos Eliseu e Valéria. A situação era de extrema dificuldade, na propriedade afloravam pedras por toda parte, sua área parte da base ao topo de um morro, mais de 50 metros de desnível. A situação econômica da propriedade era terrível, produzia-se ao redor de 30 litros de leite por dia a partir de 4 vacas emprestadas pelo vizinho. Pelas características e pela situação encontrada, essa seria a típica propriedade fadada ao desaparecimento, naquele momento talvez ela não tivesse mais que onze minutos de vida.
Foto 1: Área com pedras, entrada da propriedade (2004)
Iniciou-se então um trabalho de estruturação da propriedade, priorizando sempre a geração de renda de maneira a suprir as necessidades da família e a geração de recursos para investimentos produtivos. Na maioria das propriedades, por mais que haja restrições em relação à capacidade de investimento do produtor, normalmente, se consegue fazer alguma receita com a venda de animais improdutivos (machos, vacas secas vazias e animais em crescimento), de maneira a priorizar investimentos que venham a beneficiar aqueles animais em condições de gerar renda na fazenda (vacas em lactação). Mas não era esse o caso do Sítio Casa Feliz que, por não possuir um rebanho próprio, necessitava buscar outras alternativas que pudessem viabilizar algum investimento na propriedade. Antes de mais nada, era necessário que pedras fossem retiradas das áreas onde se iniciaria o trabalho de produção de forragem, principal carência da propriedade naquele momento. O início da remoção das pedras foi um trabalho pesado e demorado, e enquanto ia sendo realizado, acompanhado pelo técnico da Cooperideal, Carlos Eduardo Freitas, que atendia a propriedade na época, o produtor foi conhecer a propriedade do produtor Sedimar Zanquettin (tema desta coluna na edição passada) e ver de perto detalhes sobre o estabelecimento e o manejo de uma área de pastejo intensivo, pois isso com certeza lhe daria confiança e segurança na execução das tarefas.
No final do ano de 2005, estava estabelecido o primeiro sistema de produção intensiva de pastagens da propriedade (0,8 ha de Tifton 68, formado por meio de mudas conseguidas sem custo junto a outros produtores assistidos na região). Um canavial também foi estabelecido, com 0,4 ha de cana-de-açúcar plantado no alto do morro, com o objetivo de suprir as necessidade de alimento do rebanho no período do inverno. O fato de estar no ponto mais alto da propriedade diminuía o risco de queima do canavial pelas sucessivas geadas que ocorrem na região no período de inverno. Todo investimento possível naquele ano de 2005 foi direcionado para estas duas áreas. Ao final deste primeiro ano de trabalho, os números mostravam o quão difícil tinha sido o período para a família. O fluxo de caixa anual (sobra) da atividade em 2005 foi negativo (R$ - 5.035,51), e o produtor teve que trabalhar para os vizinhos para complementar a renda necessária para a manutenção da família e para os investimentos necessários na propriedade, como a aquisição de algumas vacas e novilhas que seria feito no início de 2006. Apesar das dificuldades, a propriedade aos poucos começava a mudar.
Foto 2: Primeira área de pastejo (2005)
Foto 3: Vacas em pastejo
Nos anos seguintes, novos sistemas de pastejo foram sendo estabelecidos e, com ajuda do crédito rural, animais e equipamentos foram sendo adquiridos. A propriedade investiu na fertilidade do solo, na irrigação de pastagens, na modernização da sala de ordenha e no resfriamento do leite. Eliseu, o filho mais velho, foi para o colégio técnico e, hoje, formado, trabalha em um banco da região e ajuda os pais nos finais de semana. A filha, Valéria, estuda e ajuda no dia-dia da propriedade. No ano de 2013, a família construiu uma casa nova na propriedade e a renda gerada pela atividade, finalmente, começa a ser suficiente para trazer o conforto que a família merece.
Foto 4: Casa antiga
Foto 5: Casa Nova
Quanto aos números, eles podem detalhar quais foram as estratégias e as armas utilizadas, e que permitiram que esta propriedade pudesse resistir, crescer e se manter produtiva diante de tantas dificuldades. Vamos a eles:
Os índices zootécnicos nos ajudam a compreender a evolução econômica da propriedade, porém um deles, em especial, resume um pouco de tudo o que foi feito e dos fatores que propiciaram a virada de jogo do Sítio Casa Feliz. O índice “Vacas em Lactação por hectare (VL/ha)” é composto pela participação de uma série de outros índices e seu valor encerra todas as perdas ou ganhos obtidos por eles, tendo grande impacto sobre o resultado econômico da propriedade. Por ser obtido de maneira simples (divisão do número médio de vacas em lactação no período pela área utilizada), esconde sua grande complexidade; em uma outra ocasião detalharemos os fatores que dão origem ao VL/ha; por hora nos atentaremos ao seu impacto no resultado financeiro da propriedade.
Foto 6: Vacas em pastejo
Em 2005, o Sítio Casa Feliz trabalhou com 1,35 vacas em lactação/ha; foram em média 6,1 vacas em produção na área de 4,5 ha utilizados para a atividade. Em 2013, esse número subiu para 3,43 vacas em lactação/ha (15,4 vacas em lactação nos mesmos 4,4 ha). O acréscimo de 2,08 vacas em lactação/ha, foi obtido em 2013 pela melhoria na capacidade de suporte da propriedade, com a intensificação no uso da terra, pela adequação na estrutura do rebanho (68% de vacas no rebanho ante 49% de 2005) e melhoria na porcentagem de vacas em lactação (78,8% ante 61,5% de 2005). Aliado ao aumento da produção das vacas em lactação, em função da melhoria genética, alimentação e manejo do rebanho (17,7 litros/vaca ante 10,5 litros/vaca em 2005), este índice promoveu um impacto grande sobre o volume de leite produzido no ano (acréscimo de 60.470 litros) e sobre a renda gerada (acréscimo de R$ 55.027,95), mostrando que o trabalho realizado realmente potencializou a capacidade de geração de renda da propriedade. Esse acréscimo de renda foi calculado da seguinte maneira: acréscimo do número de vacas em lactação/ha x área utilizada na atividade x produção média por vaca em lactação x preço médio do leite no período x 365 dias.
Acréscimo de renda pela intensificação no uso da terra:
Acréscimo de Renda (2013) = 2,08 VL/ha x 4,5 ha x 17,7 litros/vaca x R$ 0,91/litro x 365 dias
Acréscimo de Renda (2013) = R$ 55.027,95
Existe uma grande dificuldade para a definição do valor da mão-obra utilizada nas propriedades familiares pelo fato de, normalmente, o próprio proprietário executar as tarefas diárias da atividade, além de ser o responsável pela gestão do negócio. No caso analisado, o valor definido no item “salário do produtor”, refere-se a esta remuneração e foi definido levando-se em consideração a quantidade de vacas do rebanho e o custo mensal do manejo de cada vaca no sistema. Em 2005, foram em média 9,9 vacas com um custo mensal de R$ 30,00/vaca, definindo um valor mensal da mão-de-obra de R$ 297, equivalente a 32,3% do custo operacional efetivo ou R$ 0,155 por litro de leite produzido. Em 2013, o rebanho teve em média 19,8 vacas com um custo mensal de R$ 55,00/vaca, o valor mensal da mão-de-obra foi, portanto, de R$ 1.090, equivalente a 21,0% do custo operacional efetivo ou R$ 0,13 por litro de leite produzido. Outra possibilidade para a definição do valor da mão-de-obra familiar é deixar que o próprio produtor defina quanto vale seu trabalho na propriedade, sob o risco do valor não ser compatível com a capacidade de pagamento da atividade em determinado momento. Vale lembrar que o valor deste item possibilita a obtenção de índices que necessitam da remuneração da mão-de-obra para serem calculados; seu valor não limita o valor do ganho do produtor, na prática o fluxo de caixa é que determina a sobra de renda disponível após o pagamento de todos os compromissos operacionais e de investimentos relacionados à atividade.
Foto 7: Aveia irrigada. Na foto, Eliseu, filho do casal.
Como visto anteriormente, a propriedade passou por muitas dificuldades financeiras nos primeiros anos de trabalho mas, com a aplicação cuidadosa de estratégias que visavam à melhoria da renda na propriedade, os resultados econômicos apareceram. O fluxo de caixa, valor efetivamente embolsado pelo produtor, no ano de 2013, foi de R$ 45.639,87 (R$ 3.803,32/mês), permitindo que a família começasse a usufruir dos benefícios gerados por tanto trabalho. Para efeito de comparação, segundo a pesquisa mensal de emprego do IBGE, a renda média das pessoas ocupadas no setor privado na região metropolitana de São Paulo, onde o custo de vida é o mais alto do país, foi de R$ 1.924,00, no mês de dezembro de 2013. Com a sobra mensal obtida no leite, o produtor poderia contratar um paulistano para trabalhar em sua propriedade e ainda teria como sobra um ganho superior ao salário médio de R$ 1.847,80 de um carioca. Vale lembrar que, além do valor embolsado com o fluxo de caixa, em 2013 a família teve como ganho outros R$ 10.180,00 que foram investidos no pagamento de financiamentos obtidos durante o processo de estruturação da fazenda, principalmente para aquisição de animais e equipamentos. Como costuma dizer o técnico da Cooperideal, Juliano Alarcon, que atualmente assiste a propriedade, em 2013 a fazenda teve de receita por mês (R$ 8.768,85), aquilo que em 2005 tinha por ano (R$ 8.351,96). O patrimônio cresceu 254%, saindo de R$ 85.885,00, em 2005, para R$ 218.115,00 em 2013. Mesmo com uma evolução patrimonial tão significativa, a remuneração sobre o valor do patrimônio ainda foi de 12,5% no ano. A propriedade que, em 2005, utilizava quase a totalidade de sua renda para o pagamento de despesas de custeio, 94,8%, atualmente trabalha com muito mais segurança, gastando somente 47,0%. A margem bruta por área, obtida pela diferença entre a margem bruta anual (R$ 55.819,87) e o salário anual do produtor (R$ 13.090,00) e dividida pela área utilizada na atividade (4,5 ha), está em R$ 9.495,53 /hectare/ano, demonstrando o potencial de geração de renda do leite em áreas de produção intensificada. O que mais impressiona, neste caso, é que a propriedade ainda pode dobrar a sua renda, uma vez que possui potencial para a produção média diária de 500 litros/dia. Cabe ressaltar que, apesar de pequena, esta propriedade tem objetivos econômicos claros, o produtor inclusive paga do próprio bolso pela consultoria que recebe.
Foto 8: Rudi Mauro, sua esposa Teresinha e os filhos Eliseu e Valéria
O caso do Sítio Casa Feliz nos mostra o quanto é difícil tentar prever o futuro da atividade leiteira no que se refere ao perfil de produtores que ficarão e que deixarão a atividade, mas uma coisa parece clara: para aqueles que estiverem dispostos a trabalhar com eficiência, aceitando as mudanças necessárias e aplicando conceitos tecnológicos naquilo que fazem, o futuro é promissor. A evolução técnica dos pequenos produtores poderá transformar em solução aquilo que anunciadamente seria um grande problema para o país, pela extinção da estrutura produtiva da pequena propriedade. O limão poderá ser transformado em uma bela limonada. Não se trata aqui de defender pequenos, médios ou grandes produtores, e muito menos de colocar a questão social na dianteira da discussão, o objetivo é demonstrar o potencial produtivo das fazendas, e que há espaço para todos na nova pecuária leiteira do Brasil. Nas próximas edições apresentaremos casos de propriedades consideradas grandes que aplicam os mesmos conceitos discutidos aqui. Até breve!