Respondendo a pergunta do título: no, non, nicht, nope... pois o teste do alizarol já deixou de ser usado em muitos países, como Austrália, Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia e outros. Mas e no Brasil? O teste ainda é confiável? Surpreendentemente a resposta também é não.
Para entendermos melhor, vamos voltar para o final do século XIX. Nessa época, o principal problema da indústria era o leite azedo. Os pesquisadores então buscavam um método simples para detectar se o leite estava ou não estava fermentado.
Até que em 1890, Martinn, um pesquisador alemão, publicou na revista Deutsche Molkerei Zeitung o primeiro relato concluindo que misturar partes iguais de leite e álcool poderia indicar acidez de origem microbiológica: “quanto maior a acidez do leite, maior era a coagulação observada”.
A partir daí, vários outros pesquisadores europeus começaram a investigar o teste do álcool. Um dos mais famosos foi Wilhelm Morres, que em 1910 deixou tudo colorido, adicionando um indicador de cor no teste do álcool, a alizarina.
Por esse motivo o teste é conhecido até hoje como “Alizarol segundo Morres”. O teste do alizarol foi muito utilizado em várias indústrias de todo o mundo. Era o primeiro teste de qualidade do leite: se houvesse a formação de grumos (coagulação), o leite não era industrializado, pois, estaria azedo.
Qual o princípio do teste do alizarol?
O álcool diminui a constante dielétrica do meio, favorece a interação entre cargas na superfície da caseína, diminuindo então as cargas negativas micelares e a sua força de repulsão, o que finalmente promove a coagulação.
Esquecemos de dizer que é simples apenas para os químicos. Em outras palavras, o álcool neutraliza as cargas negativas das proteínas do leite. Como em um ímã, essas cargas são responsáveis por manter as proteínas afastadas umas das outras. Sem cargas negativas, elas tendem a se aproximar e coagular.
A indústria se beneficiou muito do teste do alizarol. Ele impedia que leites ácidos (devido à fermentação microbiológica), com colostro ou leites de vacas com mastite fossem industrializados, fatos que causariam problemas de qualidade e coagulação nas placas aquecedoras do pasteurizador.
Até 1930, as principais causas conhecidas para a coagulação do leite de conjunto no alizarol eram: acidez microbiológica, mastites e colostro. O teste media de forma indireta a resistência térmica do leite. Coagulando no alizarol, coagularia também no pasteurizador.
Com o avançar dos anos e da tecnologia, surgem trabalhos colocando a confiabilidade do teste do alizarol em cheque. Em 1931, Ramsdell afirmou que nenhum teste conhecido era fidedigno para determinar se o leite iria suportar o aquecimento.
Na década de 50, os estudos de Davies & White (1956) não encontraram relação entre estabilidade térmica e estabilidade alcoólica. Nos anos 80 as publicações concluíam sobre os efeitos do pH e do cálcio iônico na estabilidade alcoólica do leite.
Assim, a resistência térmica do leite não está ligada somente a acidez bacteriana ou a acidez total, havendo outros fatores que interferem na instabilidade das proteínas.
Esse cenário científico teve grande peso na extinção do teste do alizarol dos regulamentos técnicos de vários países. O teste do alizarol apresentava muitos resultados falso-positivos: o leite coagulava sem realmente estar ácido. Isso gerava prejuízos para a indústria e para os produtores, pois havia descarte desnecessário do leite. O resto da história a gente já conhece.
Voltando para o Brasil, o teste do alizarol também foi muito benéfico para nós. Foi antes da obrigatoriedade da refrigeração na propriedade, quando a causa mais frequente de grumos no alizarol era a acidez causada por bactérias. Nessa situação, o alizarol possuía uma boa relação com a estabilidade térmica. Mas evoluímos, e tudo mudou com a refrigeração do leite regulamentada pela instrução normativa 51.
A refrigeração muda o metabolismo dos microrganismos. No leite quente (20º-30ºC) eles (os mesófilos) degradam a lactose e produzem ácido, que deixa o leite azedo e com grumos no alizarol. No leite refrigerado (4º -10ºC) eles preferem degradar as proteínas e não produzem ácidos, não coagulando no teste do alizarol. Apesar de passar no teste, leite com esses microrganismos do frio (psicrotróficos) causam prejuízos imensos para a indústria. Você pode conferir em outros artigos do MilkPoint.
Como dissemos, a causa mais frequente de grumos no alizarol é a acidez causada por bactérias. Mas não a única! Outros fatores promovem a precipitação do leite na prova do alizarol. São inúmeros e você confere no esquema abaixo:
Ao refrigerarmos o leite e excluirmos o principal fator de coagulação no alizarol (acidez pelas bactérias mesófilas), os outros fatores ganham um peso maior ainda, o que gera muita confusão no teste. É o chamado efeito confundidor, responsável pelos resultados falso-positivos no teste do alizarol.
Esse fenômeno é bem conhecido e tem até um nome específico: LINA (leite instável não ácido) ou SILA (síndrome do leite anormal). Nesse caso o leite é instável no alizarol (grumos), mas não é ácido na prova de acidez Dornic, a qual mede a quantidade de ácido lático (proveniente das bactérias).
Com tantos fatores confundidores assim e considerando que a maioria do leite brasileiro é refrigerado, a prova do alizarol definitivamente não é um indicador confiável para predizer sobre a estabilidade térmica ou sobre a qualidade microbiológica. Mas por que ainda a utilizamos? A nossa legislação é de 1952, época em que o leite não era refrigerado.
Em 2002, surge uma nova legislação sobre a refrigeração do leite nas propriedades, a IN51. Como o período era de transição, o teste do alizarol fazia sentido e foi mantido. Em 2011, a IN51 foi atualizada pela IN62, e o alizarol ainda foi mantido. Seus autores levaram em consideração que a qualidade microbiológica do leite brasileiro ainda deixa a desejar, por isso mantiveram o teste.
Nos países que já aboliram o teste do alizarol, o problema da qualidade microbiológica já foi superado, restando apenas os fatores confundidores. Por isso o alizarol não faz mais sentido nesses locais.
Enquanto isso não acontece no Brasil, podemos driblar o problema em dois momentos. Em casos de dúvidas e coagulações misteriosas no alizarol, o caminhoneiro deve ser orientado a ferver o leite na propriedade.
Caso não coagule na fervura, muito provavelmente estamos diante de um caso de SILA ou LINA. Na plataforma de recepção, o teste sempre deve ser interpretado com o resultado da acidez Dornic. Leites LINA estarão com a acidez entre 14º e 18ºD. Confira a chave prática abaixo:
Se o problema está ruim, ele pode ficar pior. A legislação normatiza o uso de uma solução alcoólica “no mínimo” 72%, deixando margem para a indústria usar concentrações maiores. Com boas ou más intenções, grande parte dos laticínios utiliza álcool 76%, 78% e até 80%. Isso faz com que a ocorrência de LINA e SILA seja ainda maior, gerando descarte indevido de leite ou desvalorização da matéria-prima.
Para termos uma ideia, a probabilidade de uma amostra de leite positiva no alizarol 72% ser realmente ácida no Dornic é de 40%. Ou seja, é melhor aplicarmos o “cara ou coroa”, pois a probabilidade aumentaria para 50%. Esses dados foram retirados de um artigo que avaliou 322 amostras, com aproximadamente 43% de casos classificadas como LINA.
Em termos epidemiológicos o teste do alizarol é sensível, mas com uma especificidade muito aquém do desejado (em relação à acidez de origem microbiológica). A ocorrência do LINA varia com as estações do ano, mas na média fica entre 30% e 40%.
Poucos são os estudos que avaliam se o leite LINA causa algum prejuízo tecnológico na indústria, como baixo rendimento de queijos e iogurtes. Algumas publicações relatam problemas tecnológicos em licores cremosos.
Nesses produtos, a estabilidade alcoólica é fundamental e está diretamente relacionada à vida útil da bebida. Os principais problemas são o fat plug no pescoço da garrafa e a separação da mistura dentro da embalagem.
Portanto, fica claro que o teste do alizarol não é um indicador confiável no momento, devendo sempre ser realizado com outros testes, como a fervura ou a titulação da acidez Dornic. Será que já estamos prontos para abolir o alizarol, como os EUA e Canadá?
Enquanto a qualidade microbiológica do leite brasileiro não for satisfatória, é muito provável que o teste permaneça regulamentado… mesmo com todos esses problemas. Para saber mais, entrem em contato.
Também convido a todos a curtirem a fan page do Mestrado em Ciência e Tecnologia de Leite da UNOPAR. Até a próxima!