A realidade, porém, é bem mais complexa e afeta todo o setor. Primeiro, temos como pano de fundo uma crise internacional de proporções ainda desconhecidas em sua totalidade, mas certamente grave, afetando a demanda. A recuperação da produção de leite no mundo, resposta aos preços recordes de 2007, coincidiu com a demanda mais fraca decorrente da desaceleração da economia mundial e do aumento dos preços das commodities em geral, afetando a inflação principalmente nos países emergentes.
Falando da oferta global, a Nova Zelândia, por exemplo, está perto de seu pico estacional de produção e esta apresenta por volta de 8% de aumento sobre 2007. A Austrália, que vinha caindo 5% a cada ano, ensaia uma recuperação, com 1,4% de aumento. Os EUA estão com 1,6%, mas o aumento do número de vacas indica que talvez a produção cresça nos últimos meses do ano. O Brasil, como já mencionado em outros artigos, teve forte elevação no primeiro semestre.
Além da composição entre a oferta e a demanda, falando ainda da conjuntura externa, a restrição de crédito força empresas a vender para fazer caixa e honrar seus compromissos. Contratos são renegociados com o produto já embarcado; as oscilações no câmbio colocam risco adicional nas transações e modificam, a cada nova rodada, a competitividade dos países. O mundo está, afinal, passando por forte turbulência e incerteza, em um momento em que o leite já se encontrava em algum grau bem ofertado (leia o editorial sobre o assunto).
O resultado foi o derretimento das cotações externas, que estão cerca de 40% mais baixas do que em junho. Os Estados Unidos já venderam cerca de 20.000 toneladas de leite em pó desnatado ao governo, a um preço de menos de US$ 1.800/tonelada, indicando pessimismo futuro. A Europa, por sua vez, não poderá lançar mão dos estoques de intervenção até março, de forma que tecnicamente não há piso para as cotações, que estão abaixo dos US$ 3.000/tonelada (para o leite em pó integral), mais precisamente casa dos US$ 2.700-2.800. A valorização do dólar norte-americano é outro fator que contribui para a queda nas cotações.
O cenário externo não é, portanto, favorável. Como "boa" notícia, está o fato de que, na Europa, há indicações de que para manteiga e leite em pó os mercados parecem ter atingido o piso. Nada muito reconfortante diante de todo o cenário.
O cenário interno, apesar da brusca queda de preços ao produtor nos últimos meses, parece acenar com possibilidades mais favoráveis. De um lado (figura 1), a oferta acusou o golpe e, de acordo com o Cepea, setembro terminou com menos leite do que o mesmo mês do ano anterior, uma mudança e tanto para um ano em que a produção chegou, em alguns meses, a aumentar mais de 25% em relação ao mesmo mês de 2007. A oferta vinha crescendo muito desde o segundo semestre de 2007 e perdeu todo o fôlego diante da reversão de cenário.
Essa mudança na oferta apresenta nuances regionais. Algumas empresas do Sul reportam quedas de 10 a 20% em outubro, sobre setembro. As pastagens de inverno já se foram e as de verão ainda não estão prontas. Já se fala inclusive em algum aumento de preços para o leite de novembro, pago em dezembro.
Também, pudera. De acordo com o Cepea, Paraná e Santa Catarina tiveram as maiores quedas de preços dentre os principais estados entre junho e outubro (figura 2) e, junto com o Rio Grande do Sul, apresentam os preços absolutos mais baixos entre esses estados.
Figura 1. Variação da captação em relação ao mesmo mês do ano anterior (%).
Figura 2. Diferença de preços entre outubro e junho, em alguns estados.
A situação no Centro-Oeste e no Sudeste é ainda complicada. Há a expectativa a respeito do aumento da oferta em função das chuvas, principalmente no início da estação, com o leite de pastagens. Porém, acreditamos que o acréscimo não será significativo e o mercado talvez já tenha caído tudo o que precisava, com preços médios entre R$ 0,60 e R$ 0,65 por litro (quedas marginais e localizadas ainda podem ocorrer no pagamento de novembro). A rentabilidade da atividade está comprometida e, por mais que haja aumento da oferta, há produtores desestimulados, compensando parcialmente essa situação. Considerando que a produção de setembro (pelo índice de captação de leite do Cepea) foi inferior a de setembro de 2007, e que a produção do último trimestre de 2007 foi muito forte, a aposta é que os valores devem ser parecidos com o ano anterior. O vilão, nesse momento, não é mais a oferta interna, mas sim a demanda, tanto nacional como internacional.
Os tempos difíceis podem ser vistos na figura 3, que traz os dados da Receita Menos Custo da Ração (RMCR), corrigida pela inflação. Esse índice representa o quanto em tese sobra por vaca para pagar os demais custos (que não a ração) e gerar lucro. Em outubro, atingiu-se o menor valor desde fevereiro de 2007. Como nesse período os demais custos também subiram, a situação do produtor se deteriorou.
Figura 3. Receita menos custo de ração.
Talvez ironicamente, o processo verificado nos últimos meses reflete a recomposição da situação da indústria, que desde meados do ano anterior remunerava o produtor a uma porcentagem mais alta do preço de atacado do que em épocas imediatamente anteriores. A figura 4 mostra o preço ao produtor e, com base na estimativa do preço médio de atacado para uma cesta de produtos lácteos, utilizando a destinação industrial do SIF e a utilização de leite fluido para produzir cada produto, a % que o produtor recebeu, bem como a diferença (preço de atacado - preço ao produtor), desde setembro de 2006.
Figura 4. Preço do leite ao produtor, diferença entre preço do atacado e preço ao produtor e porcentagem recebida pelo produtor.
Nos primeiros meses dessa análise, o produtor recebia algo em torno de 50% do preço de atacado e o preço ao produtor era praticamente igual a essa "margem bruta" da indústria. No momento dos picos de 2007, a indústria teve seu melhor momento: a diferença entre o preço de atacado e o preço ao produtor foi significativa. Embora a % recebida do preço do atacado pelo produtor tenha caído significativamente nesses meses dourados, os preços ao produtor atingiram valores recordes. Com bons preços no atacado, dá para repartir e todos ganham.
A partir de setembro de 2007, a indústria verificou quedas acentuadas no preço de atacado, apenas em parte repassadas ao produtor, que finalizou 2007 recebendo por volta de 56% do preço de atacado e invertendo a situação imediatamente anterior: o preço do leite ao produtor superou essa "margem bruta" (entre aspas, porque não é o conceito de margem bruta contábil, sendo utilizado para facilitar o entendimento do leitor) da indústria. Essa situação perdurou até o início de 2008, quando então os preços internos no atacado iniciaram uma tímida reação, que logo foi repassada aos preços pagos ao produtor, que foram inclusive inflados por outros fatores: expectativa, por parte da indústria, de repetição do padrão do primeiro semestre de 2007; concorrência entre laticínios, visando aumentar captação; economia interna crescendo e cenário externo ainda favorável, e custos mais altos de produção, forçando correção nos preços ao produtor. O resultado é que se chegou ao final do primeiro semestre com o produtor recebendo mais de 58% do preço do atacado.
De junho a agosto, porém, os preços no atacado começaram a cair e essa queda começou a ser repassada ao produtor. Não temos os dados do atacado em setembro e outubro, mas certamente não refletem as quedas de preços ao produtor nesses meses, que foram muito mais intensas.
É possível dizer, analisando esses dados, que as quedas de preço ao produtor verificadas em setembro e outubro refletem não só o cenário atual, mas a tentativa de recomposição das perdas relativas verificadas de setembro de 2007 em diante, quando o produtor passou a receber uma % maior dos preços do atacado e as expectativas de melhores preços para a indústria acabou não vindo na medida esperada. A "correção", enfim, veio a cavalo e de forma drástica, o que gerou protestos de produtores por todo o país, amargando preços bem mais baixos em uma época de custos elevados.