O Projeto Porteira Adentro tem me permitido rodar o Brasil e conhecer projetos inovadores, bem gerenciados e, acima de tudo, rentáveis envolvendo a pecuária leiteira. Em um momento em que o leite tem ganho as manchetes com temas geralmente negativos (fraude, dificuldades em laticínios, perda de competitividade), é salutar e inspirador nos depararmos com projetos que mostram como a atividade pode ser competitiva e altamente rentável.
No entanto, uma coisa me chama a atenção nestas breves andanças. Nos 3 projetos que visitamos, notamos que são casos isolados nas regiões em que estão localizados. Claro que não se pode exigir de todos os produtores o grau de inovação e ousadia daqueles que se destacam, mas o que notei é algo mais contundente: em alguns casos, sequer há produtores de leite próximos, sendo as fazendas virtuais oásis de prosperidade leiteira em meio a outras atividades.
O caso mais recente – ainda não publicado – foi o da Fazenda Santa Thereza, em Aparecida do Rio Doce, em Goiás, região de gado de corte extensivo. Em meio a paisagem seca desta época, encontra-se um projeto em franco desenvolvimento, com um pivô central instalado sobre pasto e mais 7 projetados até 2019. Ocupando cada espaço útil entre os pivôs, 1.100 hectares de eucaliptos que camuflam 48 granjas de suínos e aves. Um verdadeiro oásis.
O cenário de ilhas de prosperidade leiteira contrasta-se com o que temos visto em outro projeto nosso – o das viagens internacionais (a propósito, faremos nova edição da viagem ao meio-oeste dos Estados Unidos em final de setembro – apesar do dólar em elevação, vale a pena conferir!). Em países como a Nova Zelândia e Estados Unidos, nota-se uma forte concentração da produção em áreas específicas do país. Veja abaixo o mapa de coleta de fazendas da Fonterra em uma região da Nova Zelândia.
Mas qual é a relevância disso? Quais são as vantagens que se tem ao reunir diversos produtores em uma mesma região? O argumento central desse artigo é que a existência de um grande número de propriedades na região, com grau de tecnificação semelhante, é fundamental para que tenhamos maior eficência na cadeia produtiva do leite.
A concentração geográfica de fazendas leiteiras tende a trazer inúmeras sinergias. Com grande número de fazendas na mesma região, a oferta de serviços de qualidade tende a ser maior: colheita terceirizada de forragem, serviços terceirizados de criação de bezerras e novilhas, assistência em ordenha e outros maquinários, serviços de informação e assistência técnica, universidades e centros de pesquisa com programas voltados para a realidade da região, mão-de-obra qualificada e treinada na atividade, compartilhamento de maquinário e atividades entre fazendas, associações que viabilizam ações conjuntas de forma mais efetiva, e assim por diante.
Assim, regiões com grande concentração na produção tendem a ter em seu entorno uma maior gama de serviços e produtos que são essenciais para que se tenha maior competitividade. Em função disso e da proximidade entre os produtores, a tendência é que o aprendizado seja mais rápido, de forma que regiões com concentração tendem a se destacar de outras em que prevalecem produtores isolados. Cabe bem aqui o velho ditado que diz que “uma andorinha não faz verão”.
Além disso, há a questão logística, tanto para a entrega de insumos como para a compra de leite. De acordo com estatísticas que vimos na Nova Zelândia, a Fonterra capta 6 vezes mais leite por km do que os melhores laticínios brasileiros. Isso, claro, impacta no preço a ser pago pelo leite que nosso produtor recebe, se considerarmos que, em um ambiente de competição global, o mercado a ser conquistado é o mesmo para as regiões mais competitivas e menos competitivas. No que se refere à venda de leite, faz sentido assumir também que regiões com grande concentração na produção tendem a ter mais laticínios atuando, acentuando a concorrência e levando a preços mais altos.
Em suma, regiões com maior concentração tendem a ter custos mais baixos e/ou serviços melhores e melhor preço de venda. Talvez não seja coincidência o fato de que Castro, no Paraná, tenha se destacado como município com maior produção de leite no país. São centenas de produtores em uma área restrita, o que configura o que se chama de cluster produtivo (“aglomeração produtiva”).
O fato é que, não só no agronegócio, mas em diversas áreas da economia, os clusters são uma realidade e atuam no sentido de elevar a competitividade, o empreendedorismo e o aprendizado. Um exemplo evidente é o Silicon Valley, na Califórnia, polo de tecnologia e onde nasceram empresas como o Google e Facebook. No agronegócio brasileiro, temos, entre outros, o polo de frutas de Juazeiro e Petrolina, o polo de vitivinicultura no Sul do país, bem como o polo de avicultura e suinocultura no Oeste Catarinense e em Rio Verde, Goiás, próximo da Fazenda Santa Thereza, que é inclusive uma integrada da BRF na região. As próprias montadoras de veículos hoje operam no formato de “cluster”, com vários fornecedores inclusive tendo unidades dentro das próprias fábricas, acelerando a inovação e reduzindo custos com estoques e transporte.
E porque não temos clusters no leite brasileiro? Talvez fosse interessante fazer um estudo mais aprofundado, mas arrisco-me a tecer algumas hipóteses. A primeira é que, de certa forma, tínhamos polos no passado, quando o consumo era restrito a leite pasteurizado que, por definição, precisava ter produção próxima ao consumo. Assim, as regiões com maior população (à exceção do Nordeste) desenvolveram bacias leiteiras relevantes – Sul de Minas, Campinas, Vale do Paraíba, Vale do Taquari, etc. Com o tempo e com o crescimento do leite UHT, a vantagem comparativa dessas regiões tradicionais se perdeu, com novos arranjos ainda em formação.
No entanto, nesse ponto é oportuno diferenciar uma bacia leiteira de um cluster, que pressupõe uma organização, uma coordenação que, numa bacia, não necessariamente ocorre. Daí surge a segunda razão para a existência de quase nenhum cluster produtivo de leite no Brasil: falta coordenação e aproximação entre indústria e produção, impedindo que de fato haja a formação de um cluster. Dentro disso, um dos aspectos críticos para a formação de clusters pressupõe relacionamento de longo prazo que, por sua vez, pressupõe confiança, regras claras e transparência, características que não exatamente tem feito parte das relações comerciais no setor como um todo.
Porém, dada a necessidade de aproximação entre os elos para aumento de competitividade, é de se esperar que a força dessa barreira contrária tenda a ser cada vez menor no futuro. Afinal, como já escreveu Michael Porter em 1990, a articulação vertical na cadeia produtiva afeta diretamente o desempenho das empresas. Mais do que chegou a hora de colocar a mão nessa ferida.
Um terceiro possível motivo é o fato do leite não ter ainda o mesmo grau de padronização e profissionalização da atividade daquele verificado em outras atividades. Na verdade, é impossível caracterizar a produção brasileira sob a ótica de um sistema ou de um perfil produtivo único. Há diferenças de qualidade e de custo de oportunidade do trabalho e terra, refletindo em preços distintos.
Exemplificando, em determinado momento do mercado, pode ser mais barato comprar leite spot oriundo de regiões com preço mais baixo, ainda que distantes, do que de um cluster produtivo, de alta qualidade, na porta da fábrica. E porque isso? Porque hoje, no Brasil, percebe-se uma discrepância significativa de preços, mesmo considerando que a diferença de preços entre alguns estados tem diminuído (entre Sul e Sudeste, por exemplo). Mato Grosso, Tocantins, Pará, Rondônia, todos têm preços cerca de 30% mais baixos do que os verificados em Goiás, São Paulo, Minas Gerais, e os estados do Sul.
Em função disso, não há necessariamente uma ligação forte entre a produção local e a planta de industrialização. Em outras palavras, as vantagens do conceito tradicional de cluster não são válidas de forma generalizada como em outras atividades, isto é, nem sempre há claras vantagens competitivas do ponto de vista do articulador, no caso a indústria. Mas isso irá mudar com o tempo.
Por fim, acredito que há um aspecto cultural também envolvido nessa questão. O produtor de leite dificilmente migra para outras regiões mais propícias ou que encontram um ambiente de negócios mais favorável. Via de regra, o produtor quer viabilizar sua atividade onde nasceu, ou onde escolheu viver ou ter sua propriedade, sem muitas vezes seguir critérios técnicos. A rigor, não há nada de errado nisso sob o ponto de vista pessoal, mas talvez sim, do ponto de vista do negócio. Isso ajuda a explicar a existência de projetos de produção espalhados geograficamente, muitas vezes em regiões sem um ambiente de negócios ou mesmo natural favorável à exploração rentável da atividade.
Voltando ao início do artigo, acredito que a formação de clusters tende a ser uma realidade cada vez mais presente no setor, ainda que demore para ser a regra. Afinal, como já colocamos em diversas oportunidades, é necessário atuar na retomada da competitividade e a criação de polos de eficiência produtiva e industrial é um dos pilares dessa retomada, até porque atividades concorrentes já o fazem, com resultados mais do que comprovados. Nesse sentido, é importante a articulação das empresas, tendo também os governos um papel importante ao fomentar e apoiar a instalação de clusters, com serviços de infra-estrutura de qualidade e incentivos, entre outros.